sexta-feira, 8 de julho de 2022

Julian Barnes – O Papagaio de Flaubert

 

Quetzal, 2019


Julian Barnes é o mais continental dos escritores anglo-saxónicos. Entre outras coisas, vê-se isso pelo fascínio que ele demonstra por autores franceses em muitos dos seus livros, de que este é o mais claro exemplo.


Este livro pertence a um género literário que me enche particularmente as medidas: o romance-ensaio.

Ora, há muitos tipos de romance-ensaio:

  • Com tema ou temas explícitos – Vergílio Ferreira
  • Com tema implícito – Albert Camus
  • Com camadas de temas – Lídia Jorge
  • Com caleidoscópio de temas; e, no caso de livros dedicados a um só tema, caleidoscópio de sub-temas – Julian Barnes

Eu diria que este livro é uma versão light (e, atenção, isto não é uma crítica depreciativa!) deste tipo de romance e que Julian Barnes é um mestre neste género.

Só assim é que, dum tema banal (um escritor do qual nunca li nada) e dum fait-divers (um papagaio empalhado), consegue fazer um romance que nos mantém presos até ao fim (nos, quer dizer, para quem gosta deste tipo de romance).


Escrita inteligente, com ideias surpreendentes e inesperadas, e uma ironia que surge quase sempre de surpresa e que não poupa ninguém, nem o narrador nem o próprio Flaubert (veja-se a página 68, penúltimo parágrafo):

A espécie tinha um traço característico familiar a Gustave: «Tanto na minha atividade física como mental, sou como um dromedário, que é difícil fazer andar e, uma vez em movimento, é difícil fazer parar; o que eu preciso é de continuidade, quer no repouso quer no movimento.» Esta analogia de 1853, uma vez despoletada, é também difícil de parar: continua numa carta a George Sand de 1868.

Chameau, camelo, era a palavra em calão para designar uma velha cortesã. Penso que Flaubert não teria achado esta associação desconcertante.


A propósito de surpresa – é raro cada capítulo não nos surgir com algo de inesperado, por exemplo: o testemunho pessoal de Louise Colet, um dicionário, uma espécie de cena de tribunal, e uma prova de exame (que achei deliciosa)! 

Até reflexões sobre a leitura feita por críticos e leigos. Ou seja, uma crítica à crítica literária (Os Olhos de Emma Bovary). Num ponto tem Barnes razão e é no retrato que faz do leitor em (95), último parágrafo:

Entretanto, o leitor comum mas interessado pode esquecer; pode partir para outra, ser infiel com outros escritores, voltar a extasiar-se de novo. Na sua relação, a conjugalidade não precisa nunca de se introduzir; pode ser uma relação esporádica, mas, enquanto existe, é sempre intensa. Não há vestígios do rancor diário que se cria quando as pessoas vivem juntas bovinamente. Nunca me acontece recordar a Flaubert , com uma voz fatigada, que pendure o tapete da banheira ou que use o piaçaba. O que parece é que a Dra. Starkie não é capaz de deixar de o fazer. (…)


Reflexões sobre a vida em geral (75 ou 83), suficientemente ambíguas para nos porem a pensar, mas tão bem escritas que quase agradecemos que elas apareçam, porque constituem como que pequenos e discretos jardins que encontramos quando passeamos pelas cidades de betão.


(48)

Não havia qualquer desespero no seu ar de falhado; parecia antes ter a compreensão de que não fora talhado para o sucesso e portanto o seu dever era assegurar-se de que falhara de uma maneira correta e aceitável. (…)

Este podia ser perfeitamente o meu retrato.


terça-feira, 1 de março de 2022

Thomas Wolfe, O Rapaz Perdido seguido de Sem Porta

 

Dois Dias, 2019


Nunca tinha ouvido falar de Thomas Wolfe. Uma muito agradável surpresa, numa idade em que já não as espero. Adorei e identifiquei-me com muitas passagens, mas é-me muito difícil defini-lo pelo que sinto as minhas interpretações como estando entre muitas outras possíveis.

Eis algumas características deste livro:

Originalidade, por exemplo, na variedade de estilos a que recorre.

Grande riqueza e complexidade do que é narrado, em que o não dito tem tanta importância como o que é expresso.

Recurso a um tipo muito específico de corrente de consciência, onde as perceções pessoais estão mescladas com o que é contado e descrito.

É uma  escrita de evocação (de que gosto muito e de que Vergílio Ferreira foi um grande cultor).

Fez-me lembrar Ray Bradbury (que ali foi beber inspiração, sem dúvida) na energia, força, alegria de viver, exuberância, foco em crianças. Comparando o que o não é, considero Ray Bradbury mais imaginativo nas histórias, Thomas Wolfe melhor nas soluções estilísticas, e um bocadinho melhor na poesia.

Há uma busca sempre frustrada da palavra que traga uma redenção (tal como em Vergílio Ferreira), daí a exuberância, a linguagem poética e a variedade de estilos que permitam chegar lá, embora indiretamente

É uma escrita onde os cinco sentidos são usados com exuberância: visão, audição, cheiro (capaz de evocar grandes emoções, como na mercearia em Rapaz Perdido), sensações (de temperatura, por exemplo) e sabor (almoço em Sem Porta).

Sendo uma escrita muito rica e prolixa, surpreende a existência de poucos lugares-comuns – por exemplo, apresentando Outubro como um mês de começo, em vez de Janeiro ou da Primavera.

Há um pormenor que causa algum incómodo: aparecer uma certa misoginia (ao referir a falsidade das mulheres, ou nas descrições que faz delas) e um certo racismo.


Sobre O Rapaz Perdido

Parece tratar-se de uma busca e compreensão pelo irmão perdido e que mãe revela ser o seu preferido.

Veja-se a variedade de estilos de narrador em cada uma das quatro partes deste conto:

  1. 3ª pessoa sobre uma hora (à tarde) na vida de Grover: rua da terra natal e intervenção do pai
  2. Mãe de G. a contar memória da ida no comboio para a Feira Mundial de St Louis em 1904.
  3. Irmã mais velha relata ida a restaurante com G.
  4. 1ª pessoa, Autor visita a casa onde G. morreu, em St. Louis.


Sobre Sem Porta

Mais uma vez parece ser sobre a busca de uma porta pela qual pudesse entrar, depois da expulsão do Paraíso consubstanciada tanto na perda do pai (igual a rio tumultuoso que tudo destrói e arrasta, com a esperança de um retorno impossível em Outubro), como na preferência da mãe pelo irmão.

Identifico-me imenso com a suave embriaguez depois do almoço, um raro momento em que a solidão se atenua e ele se sente integrado com outras pessoas, embora por pouco tempo.

Também me identifico com a sensação de um Outubro onde se pode respirar de novo depois do horror do Verão.

Mais uma vez, observemos a variedade de estilos de narrador em cada uma das quatro partes deste conto:

  1. 10/1931 - O autor descreve a sua vida ao um ricaço entediado e vê que nunca pode pertencer aquele meio, porque o ricaço não percebe o sofrimento do autor – esta perte é cronologicamente a última.
  2. 10/1923 – O autor está na casa da mãe onde Grover morreu, no meio de uma tempestade, onde ele propõe que Outubro é o mês do recomeço, do retorno (em particular, daquela pessoa que ele mais desejaria, o seu pai).
  3. 10/1926 – Agora, o autor encontra-se em Inglaterra, Merton ("one of the oldest and most beautiful colleges in Oxford"), onde a solidão é mitigada no meio da companhia, mas acaba por se tornar ainda mais aguda.
  4. 4/1928 – O autor observa os motoristas de camião e vê que eles são o exemplo da solidão e da aceitação dessa condição. Entre o homem que se encontra diariamente a ver tudo por detrás de uma janela e aqueles que vivem a vida (na noite, tal como os motoristas), o autor inclina-se para estes últimos. Em 1931, na primeira parte do conto, vemos que mesmo esta opção falhou, pois o desejo e a insatisfação não abrandaram.

Soeiro Pereira Gomes, Esteiros

 

Edições Avante, 1979


Comovente. Mas de modo diferente de Capitães da Areia, de Jorge Amado, livro de que nos lembramos logo. E que antecede este de poucos anos: Capitães da Areia é de 1937 e Esteiros é de 1941. Soeiro Pereira Gomes pode nem tê-lo lido, já que a censura do Estado Novo não o devia permitir.

De qualquer modo, Esteiros é mais da vida real, portanto com menos solidariedade, menos romantizado, menos épico, menos ligado à marginalidade e à criminalidade - se bem que há que ponderar em como podemos, de consciência limpa, exigir moralidade daqueles que são tratados sem moralidade nenhuma?

Na verdade, Esteiros está mais ligado a uma sociedade que pretende marginalizados, conformistas e obedientes, ie, mão de obra barata.

O que tem de semelhante com Capitães da Areia é utilizar igualmente uma linguagem lírica para o que não o é, a miséria e a morte.

Vou buscar uma expressão de Eduardo Lourenço para definir o clima de todo o livro: marxismo afetivo. Onde estamos sempre perante uma empatia com um Portugal cinzento e triste, mas onde a vida procura sempre romper e desabrochar. Parece ser um recurso literário usado por Soeiro Pereira Gomes a fim de suscitar o desejo de um país diferente.

Trata-se também de um romance de crescimento e de maturação. Desde as crianças que só querem brincar e consumir (ver feira). Até à consciência de algo muito errado na sociedade, uma aprendizagem que muitos jovens e adultos ainda não fizeram hoje em dia. Repare-se que já em 1941 havia a lei das 8 horas; e hoje está a ganhar terreno a prática de horários ditos "flexíveis" de muito mais do que essas 8 horas!

Um romance de denúncia e de emoção, sem nunca cair na pieguice.

domingo, 5 de dezembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 39.

 

(Capa do JN de 14/10/2021)


Apontamentos pessoais à publicação 39. de "Fratelli Tutti", do Papa Francisco (ver no fim):

Hoje vou abordar duas questões relativas à migração: deixar ou não entrar migrantes no nosso país; e como os devemos tratar.

Quais os argumentos para fechar a porta à imigração? Analisemos alguns.

O argumento de que é para evitar a entrada de terroristas é infantil, claro, e não pode ser levado a sério – os terroristas que queiram entrar, entram mesmo; e até é preferível que o façam sendo claramente identificados pelos serviços administrativos, do que fazê-lo clandestinamente.

O argumento de que tiram o emprego aos nacionais é falso, pois eles vêm fazer os trabalhos que os nacionais se recusam a realizar (ver foto que acompanha este post).

Mas isto aplica-se aos imigrantes altamente qualificados? Não, mas estes vêm trazer um estímulo para os nacionais que não é de desprezar.

Na verdade, o verdadeiro problema em Portugal é este: como evitar que os NOSSOS altamente qualificados emigrem para o estrangeiro, já que ninguém quer vir para cá.

E os trabalhadores mais pobres ficarão prejudicados? Apenas se os imigrantes forem ilegais (quando o país dificulta a sua entrada) e se os patrões se aproveitarem disso para baixar todos os salários. De qualquer modo, em qualquer medida económica haverá sempre gente prejudicada – a questão aí será como apoiar devidamente essas pessoas e não as abandonar à sua sorte.

De qualquer modo, a realidade que se observa em vários países é que, pelo contrário, há muita falta de mão-de-obra para suprir as principais necessidades em diversas áreas da economia. Veja-se, por exemplo, o caso recente do Reino Unido que levou a carências com contornos dramáticos apenas porque não conseguiam contratar suficientes camionistas britânicos.

O argumento de que vêm viver da Segurança Social também não colhe. Estes imigrantes são as pessoas do seu país de origem que têm mais iniciativa e coragem (os outros não se atreveram a mexer-se). Eles rapidamente criam novos negócios e novos postos de trabalho, dando mais emprego ao nacionais. Além de constituírem um exemplo vivo de sucesso pelo trabalho para todos os nacionais. Assim, eles vão quase sempre contribuir imenso para a riqueza do país que os acolheu, não para a sugar.

Pelo contrário, mais gente (legalizada, claro está) a contribuir para a Segurança Social irá torná-la mais sustentável.

Sendo pessoas normalmente mais jovens, ajudam também à renovação das gerações. Com a consequência, por exemplo, de haver assim mais gente a contribuir para que os mais velhos possam ter reformas melhores.

Por tudo isto, abrir portas à imigração, facilitando a legalização e conferindo a todos a mesma dignidade laboral e social (pelo menos), beneficia o pais e praticamente toda a gente.

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39. Ainda por cima, nalguns países de chegada, os fenómenos migratórios suscitam alarme e temores, frequentemente fomentados e explorados para fins políticos. Assim se difunde uma mentalidade xenófoba, de clausura e retraimento em si mesmos». Os migrantes não são considerados suficientemente dignos de participar na vida social como os outros, esquecendo-se que têm a mesma dignidade intrínseca de toda e qualquer pessoa. Consequentemente, têm de ser eles os «protagonistas da sua própria promoção». Nunca se dirá que não sejam humanos, mas na prática, com as decisões e a maneira de os tratar, manifesta-se que são considerados menos valiosos, menos importantes, menos humanos. É inaceitável que os cristãos partilhem esta mentalidade e estas atitudes, fazendo às vezes prevalecer determinadas preferências políticas em vez das profundas convicções da sua própria fé: a dignidade inalienável de toda a pessoa humana, independentemente da sua origem, cor ou religião, e a lei suprema do amor fraterno.

sábado, 20 de novembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 38.

 


38. Infelizmente, outros são «atraídos pela cultura ocidental, nutrindo, por vezes, expetativas irrealistas que os expõem a pesadas deceções. Traficantes sem escrúpulos, frequentemente ligados a cartéis da droga e das armas, exploram a fragilidade dos imigrantes, que, ao longo do seu percurso, muitas vezes encontram a violência, o tráfico de seres humanos, o abuso psicológico e mesmo físico e tribulações indescritíveis». As pessoas que emigram «experimentam a separação do seu contexto de origem e, muitas vezes, também um desenraizamento cultural e religioso. A fratura tem a ver também com as comunidades de origem, que perdem os elementos mais vigorosos e empreendedores, e as famílias, particularmente quando emigra um ou ambos os progenitores, deixando os filhos no país de origem». Por conseguinte, também deve ser «reafirmado o direito a não emigrar, isto é, a ter condições para permanecer na própria terra» (Papa Bento XVI).

Nunca tive de emigrar. O meu avô emigrou para África e construiu lá a sua vida. E, por seu mérito e por sorte, venceu. Eu ainda sou um dos beneficiados desse sacrifício e dessa vitória que foi a sua. Mas nunca isso me faria defender a emigração de quem quer que fosse.

Talvez por isso, hoje vou deter-me neste «direito a não emigrar».

Parece-me ele tão evidente que me espanta quando vários dos governantes máximos de um país (o nosso) incentivam os outros à emigração.

Primeiro, porque a formação desses emigrantes foi paga com os nossos impostos. Com a sua emigração, o retorno e os benefícios desse investimento vão para os outros países que não gastaram um cêntimo – como é possível não ver isto?

Segundo, porque aquilo que é bom para os outros países (por exemplo, enfermeiros portugueses no Reino Unido) deveria ser igualmente bom para nós – como é possível não ver isto?

Terceiro, evidentemente porque «(…) as comunidades de origem, (...) perdem os [seus] elementos mais vigorosos e empreendedores (…)» - como é possível não ver isto?

Quarto, porque incentivar os outros à emigração é uma das mais patéticas confissões de incompetência e de impotência que um governante de um país pode fazer – como é possível não ver isto?

Quinto, última mas para mim a principal razão que é também aqui referida pelo Papa: porque a emigração constitui sempre uma violência, quer para quem parte, quer para quem fica. Ou seja, constitui uma punição tanto mais injusta quanto as pessoas nada fizeram para sofrerem esse castigo (exceto se as considerarmos culpadas por terem acreditado nos governantes que, mentindo e roubando, levaram o país à miséria…) - pela última vez, como é possível não ver isto?

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 37.

 

Sem dignidade humana nas fronteiras

37. Tanto na propaganda de alguns regimes políticos populistas como na leitura de abordagens económico-liberais, defende-se que é preciso evitar a todo o custo a chegada de pessoas migrantes. Simultaneamente, argumenta-se que convém limitar a ajuda aos países pobres, para que toquem o fundo e decidam adotar medidas de austeridade. Não se dão conta que, atrás destas afirmações abstratas difíceis de sustentar, há muitas vidas dilaceradas. Muitos fogem da guerra, de perseguições, de catástrofes naturais. Outros, com pleno direito, «andam à procura de oportunidades para si e para a sua família. Sonham com um futuro melhor, e desejam criar condições para que se realize».

Defendem isso, mas depois aproveitam-se desses migrantes para trabalhos esgotantes e em péssimas condições, muito próximas da escravatura. Condições às quais, aliás, nenhum nacional aceitaria submeter-se. Criticam esses países, mas financiam as suas elites corruptas e equipam-nas com o armamento mais do que suficiente para que elas possam manter esses regimes ad infinitum.

Além do mais, aqui em Portugal, há muitos postos de trabalho para os quais já não se encontram trabalhadores (provavelmente, por causa dos salários miseráveis oferecidos, ausência de contratos e incapacidade de arranjar casa a preços aceitáveis). A propósito desta dificuldade em encontrar trabalhadores portugueses, veja-se o que aqui, a título de exemplo, diz Raul Martins, presidente da Associação da Hotelaria de Portugal: 

O que estamos a tentar (…) é criar fluxos de importação de mão-de-obra com países específicos, desde logo com os que formam a CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa]. (Público online de 10-11-2021)

Independentemente da bondade ou não destas intenções, o que me pergunto muitas vezes é como é que há pessoas que pensam nos outros como abstrações e não têm capacidade de os ver como seres humanos, no essencial em tudo semelhantes a si próprios – pelo menos, no sofrimento e no desejo de felicidade, para si e para os seus.

Para não me colocar num pedestal, também me interrogo a mim mesmo se não padeço do mesmo mal, isto é, o de fazer «afirmações abstratas», sem consideração pelas vidas reais «dilaceradas» de muitos seres humanos. 

Começo, então, por trazer à minha consciência aquelas pessoas que defendem teorias e práticas que eu abomino visceralmente. E aí já percebo um pouco a dificuldade em conseguir não olhar para essas pessoas como se fossem objetos.

Depois penso que tenho 63 anos de uma vida sempre a pôr como prioridade procurar ser uma pessoa melhor (mas com um caminho ainda tão longo à minha frente!). Ou seja, um percurso que outros muito legitimamente não escolheram seguir, optando antes por outras prioridades para a sua vida, escolha feita umas vezes em liberdade, outras vezes por necessidade (o que me impede, aliás, de exigir dessas pessoas o que exijo de mim).

Mesmo assim, continuo a acreditar que, neste planeta, é possível esforçarmo-nos por nos tratarmos uns aos outros (sem exceções, mas principalmente os mais vulneráveis e desamparados) com fraternidade, eu que detesto e tenho pavor à violência, sob todas as formas em que ela surge e se exprime!…

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 36.

 


36. Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio. Além disso, não se deveria ignorar, ingenuamente, que «a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca». O princípio «salve-se quem puder» traduzir-se-á rapidamente no lema «todos contra todos», e isso será pior que uma pandemia.

O que podemos opor às forças da nossa sociedade atual que nos empurram para o isolamento, o anonimato, a alienação, a solidão, o medo (ou ansiedade) e a depressão? Exatamente: a cocriação de uma «comunidade de pertença e solidariedade».

Porque só ela satisfaz uma das necessidades primordiais do ser humano: a necessidade de confiar e de pertencer.

Porque, além disso, também garante um “bem comum” a que as pessoas podem recorrer em caso de necessidade. Se ela não existir, onde podemos encontrar uma real segurança na nossa vida? Onde podemos procurar ajuda quando estivermos (falo não só ao nível individual, mas também familiar e social) na penúria ou a caminhar para ela? Onde podemos encontrar ajuda para os nossos familiares (por exemplo, crianças ou idosos), quando não estamos presentes no local?

Por conseguinte, a questão primordial é: como podemos fazer surgir e alimentar esta «comunidade de pertença e solidariedade»?

Aponto algumas possibilidades:

  • percebermos  as semelhanças que temos entre todos, 
  • reconhecermos que dependemos dos outros e que eles dependem nós, 
  • disponibilizarmo-nos para manter essa interdependência através de dádivas e de ações que vão ao encontro do que os outros precisam, 
  • lutarmos para que sejam implementadas soluções políticas e económicas que reforcem esta comunidade entre todos,
  • fazermos parte de estruturas comunitárias já existentes ou criando novas e úteis que acrescentem valor à comunidade, 
  • e cultivarmos a atitude mental de ser membro de uma comunidade que é muito mais e melhor que a simples soma dos seus indivíduos.

Diz-nos o Papa: O princípio «salve-se quem puder» traduzir-se-á rapidamente no lema «todos contra todos», e isso será pior que uma pandemia.

Na verdade, muito pior, penso eu. Basta olhar para a história passada da humanidade para perceber claramente que, sempre que optámos por destruir o sentido de comunidade e de pertença mútua, o resultado foi morte e sofrimento infindáveis para milhares ou mesmo milhões de pessoas (para não falar do incomensurável sofrimento e morte dos outros seres vivos que partilham connosco este planeta).

Claro que , nesta nossa sociedade um tanto hipócrita, ninguém usa estas expressões ("salve-se quem puder" e "todos contra todos"). Mas não se ouvirão outras equivalentes? Por exemplo, após o governo Sócrates ter mudado a avaliação dos professores para uma avaliação competitiva, quantas vezes ouvi as pessoas dizerem: “Agora, é cada um por si”! E, à medida que, depois disso, esse tipo de avaliação foi sendo disseminado por outros setores de atividade, cada vez ouvi mais pessoas a afirmá-lo.

É absolutamente essencial que todos tomemos consciência de que o lema do “salve-se quem puder” e outros equivalentes são uma condenação à morte para a parte da humanidade mais fraca e vulnerável, ao mesmo tempo que servem para preservar muitas vezes aqueles que são os piores e mais desumanos.

Termino, evocando John Donne e o seu famoso excerto da Meditação XVII. Nunc lento sonitu dicunt, morieris:

Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte do mundo. Se um torrão de terra é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

Julian Barnes – O Papagaio de Flaubert

  Quetzal, 2019 Julian Barnes é o mais continental dos escritores anglo-saxónicos. Entre outras coisas, vê-se isso pelo fascínio que ele dem...