Quetzal, 2019
De como uma relação de amor tem um lado suave e luminoso, ao
mesmo tempo que tem um lado instável e crítico, acabando este por se sobrepôr
ao primeiro.
Ou de como uma família disfuncional se mantém em equilíbrio
e quando a pessoa que sofre e é vítima (Susan) se afasta com a possibilidade de
ficar finalmente feliz, acaba por se desmoronar completamente. Ou seja, como
ela precisava da disfuncionalidade para manter o seu equilíbrio interior.
Um livro bonito e triste.
(46)
Mas a questão, Casey Paul, é que seria assustador,
totalmente assustador, que, de uma maneira ou de outra, aquele homem
continuasse vivo. E o que não desejas aos teus inimigos não vais imaginar para
ti próprio.
Se eu posso ficar vivo depois da morte, também outros
poderão. Eu não quero que Hitler, pedófilos, torturadores, etc., fiquem vivos.
Se o preço que eu tenho de pagar para que isso aconteça é eu não sobreviver à
minha morte, pois que não sobreviva. Eu morro definitivamente para que outros
também morram definitivamente.
(48)
Havia algo na brandura dele, e na inclinação para o perdão,
que quase provocava nos outros um mau comportamento?
Não me parece que seja assim tão simples. Muitas vezes, a
brandura é o preço que pagamos para que não nos façam mal. Infelizmente, acaba
sempre por aparecer alguém que, apesar disso, faz. E aí percebemos que não há
nada que previna, que pague, que nos faça escapar do mal, a não ser o
afastamento mais absoluto (e nem isso é uma garantia total, o infortúnio está
sempre ao virar da esquina) ou a nossa própria destruição (o mal, sim, mas
pelas nossas próprias mãos, não pelo arbítrio dos outros).
(52)
Susan: [Joan] Aprendeu a passar o tempo. É uma das coisas
da vida. Andamos todos à procura de um lugar seguro. E se não o encontramos,
então temos de aprender a passar o tempo.
Para nos distrairmos da angústia, para fugir dela, para nos
esquecermos que vivemos inseguramente.
(53)
Susan: Mas nunca esqueça, senhor Paul. Toda a gente tem a
sua história de amor. Toda a gente. Pode ter sido um fiasco, pode ter-se
evaporado, pode nem ter tido pernas para andar, pode ter sido só na cabeça, que
isso não a torna menos real. Às vezes torna-a mais real. Às vezes vemos um
casal, parecem entediados de morte um com o outro e não conseguimos imaginá-los
a terem algo em comum, nem a razão por que ainda vivem juntos. Mas não é só
hábito ou indulgência ou conveniência, nada disso. É porque já tiveram uma
história de amor. Toda a gente tem. É a única história.
(92)
O primeiro amor marca a vida para sempre: isso descobri eu
com os anos. Pode não desqualificar amores futuros, mas eles serão sempre
influenciados pela sua existência. Pode servir de modelo ou de exemplo a
refutar. Pode obscurecer amores seguintes; mas também pode torná-los melhores,
mais fáceis. Só que, por vezes, o primeiro amor calcina o coração e quem
procurar depois só encontra cicatrizes.
“Fomos escolhidos pela sorte.” Não acredito no destino, já o
devo ter dito. Mas agora acredito que, quando dois amantes se conhecem, já há
tanta pré-história que só alguns resultados são possíveis. Mas os próprios
amantes imaginam que o mundo está a começar de novo e que as possibilidades são
ao mesmo tempo novas e infinitas.
O meu primeiro amor foi um desastre. Mas tinha de ser um
desastre: que outra coisa pode acontecer quando se junta um tipo com corpo de
20 anos e idade mental de 8, com uma rapariga com a mesma idade física, mas já
uma mulher? Calcinou? Não sei. Influenciou os seguintes? Sem dúvida, para minha
infindável vergonha e miséria.
(96)
(…) Às vezes, a seguir, ela murmurava “Bem jogado,
parceiro”. Às vezes, mais séria ou mais ansiosa, “Não desistas de mim, Casey
Paul”. E eu também não sabia o que responder àquilo.
Esta frase bate-me fundo. Ser eu a dizê-la ou a ouvi-la. Uma tristeza que vem do fim dos tempos. Tanta gente que desistiu de
nós. Sobrará alguém, no fim da nossa história? Uma das frases mais tristes,
desesperadas e angustiadas do mundo. Porque sentimos em nós forças poderosas que,
contra a nossa vontade, tal como aconteceu com Susan (que achava que não
prestava), podem vir a provocar a desistência…
(97)
Não vi o pânico que estava dentro dela. Como podia
adivinhar? Pensei que era só dentro de mim. Vejo, já tarde, que ele está em
toda a gente. É condição da nossa mortalidade. Temos códigos de conduta [e
ilusões partilhadas e alimentadas com os outros] para o dissipar e reduzir,
anedotas e rotinas e tantas formas de alheamento e diversão. Mas há pânico e
desordem à espera de irromper em todos nós, disso estou certo. Vi-o rugir entre
os moribundos, como último protesto contra a condição humana e sua tristeza
crónica. Está lá, nos mais racionais e equilibrados de nós. Só precisamos das
circunstâncias certas, e reaparecerá. Então ficaremos à mercê dele. O pânico
encaminha uns para Deus, outros para o desespero, alguns para obras de caridade
[ou voluntariado…], outros para a bebida [Susan…], uns para o desapego
emocional, outros para uma vida onde esperam que nunca nada de grave volte a
perturbá-los [também…].
(141)
Joan: Paul, meu querido, já te disse que não dou conselhos.
Segui o meu próprio conselho durante tantos anos e vê onde isso me levou. Isso
acabou.
O melhor argumento que já ouvi para sermos modestos, senão
mesmo silenciosos, no que respeita a dar conselhos.
(154)
Sexo triste é sempre de longe pior do que bom sexo, mau
sexo, sexo solitário e sexo nenhum. Sexo triste é de todos o mais triste.
(194)
Por exemplo, achava que provavelmente não voltaria a ter
sexo antes de morrer. Provavelmente. Possivelmente. A menos que. Bem vistas as
coisas, achava que não. O sexo envolvia duas pessoas. Duas, primeira pessoa e
segunda pessoa: tu e eu, para ti e para mim. Mas, hoje em dia, o ruído da
primeira pessoa dentro dele estava silenciado. (…)
A mim, é o ruído ensurdecedor da parte que tem medo dos
outros, que muitas vezes quase não deixa nem sequer ouvir a voz da segunda pessoa, quanto mais
vê-la.
(235)
As coisas, uma vez acabadas, não se podem trazer de volta:
agora sabia-o. Um murro, uma vez dado, não pode ser retirado. As palavras, uma
vez ditas, não podem desdizer-se. Podemos continuar como se nada se tivesse
perdido, ou feito, ou dito; podemos declarar que tudo esquecemos; mas o nosso
íntimo mais íntimo não esquece, porque nos transformámos para sempre.