Tinta da China, 2020
(94)
(…), era apenas uma incapacidade
minha, não sabia questionar a origem das coisas nem alterar o que me
desagradava, aceitava quase tudo à minha volta como inevitável e imutável.
Este é o ponto de partida de Eliete
neste livro. Trata-se do ponto-chave deste romance. Porque é aqui que Eliete
toma consciência da pessoa que foi até este momento. E essa tomada de
consciência é o primeiríssimo passo para ela se começar a afastar dessa Eliete
anterior. A partir daqui, vamos assistir ao seu crescimento (na p. 143, as interrogações
começam a explodir dentro de Eliete), ao modo como vai superando a distância
que vai dos sonhos da infância e da juventude até ao real da idade adulta, à
sua caminhada para a independência. O livro acaba numa espécie de encruzilhada
em que nos falta saber se Eliete tomará uma decisão exultante de corte com o
passado ou se afinal não vai arriscar dar o salto decisivo. Dulce Maria Cardoso
irá continuar com esta saga pessoal?
De todo o modo, a autora mostra-nos
nesta obra que é pensando e escrevendo (sim, escrevendo, porque não? Nada nos
diz que não estamos a ler um relato escrito) que expandimos a nossa humanidade.
Mostra-nos Eliete a começar pequenina, e a acabar claramente num caminho bem
mais amplo do que quando começou, por via destes dois processos, o do
pensamento e o da escrita.
Devo confessar que a arte de Dulce
Maria Cardoso quase conseguiu fazer-me acreditar na verosimilhança deste
percurso. Este “quase” advém, não de qualquer falha da autora, mas simplesmente
da minha convicção de que não é possível este crescimento pessoal numa
sociedade que faz pressões imensas e insidiosas para o conformismo, se a pessoa
não recorrer à leitura de livros (que não aparece nesta obra).
(274 e 275)
Veja-se aqui a excelente descrição
de como os contextos sociais em que estamos mergulhados, e a pressão que eles
exercem sobre nós, nos “obrigam” a desempenhar determinados papéis de que é
muito difícil desprendermo-nos, mesmo quando eles já estão mortos para nós. Se
não tivermos a ajuda e o apoio dos livros, é muito difícil resistir-lhes.
Nesta obra, Dulce Maria Cardoso
prefere realçar o papel que as redes sociais desempenham neste processo. No que
toca à Eliete, são elas que lhe dão o impulso para iniciar a sua caminhada de
libertação. Mas também constituem um mundo que estimula a solidão acompanhada,
fruto de um afastamento entre as pessoas onde cada uma fala de e para si mesma.
E, finalmente, um mundo de aparente abundância, de irrealidade, que acaba por
anestesiar Eliete e entorpecê-la, acabando por lhe roubar valor a tudo o que
antes o tinha. Ou seja, este mundo foi um instrumento de libertação mas, ao
mesmo tempo ou na sua sequência, de alguma forma foi um motor de um certo
esvaziamento espiritual.
(204)
(…), o país não era para velhos,
os tempos não eram para velhos, (…).
A forma como a avó de Eliete é
vista e tratada ilustra igualmente o contexto onde este mundo das redes sociais
floresce. Trata-se de uma componente deste livro que não ocupa o centro do
palco, mas está sempre lá, um pouco como uma música de fundo baixinha (em
particular, lembra-nos que esta é uma sociedade em que tentar viver o máximo de tempo possível não é sempre uma boa ideia).
Em suma, esta é uma obra que constitui
uma inspiração, mas também uma provocação muito interessante que nos interroga
e questiona a sociedade em que vivemos, uma obra que mostra mais do que
demonstra, tudo feito sempre com muita arte por Dulce Maria Cardoso.
P.S. 1:
Curiosamente, a maior parte deste
livro evocou emoções que me transportaram para a leitura que fiz d’A Náusea,
de Sartre, há décadas atrás. Sinto-me imensamente longe disto tudo que Dulce Maria Cardoso descreve. Só faltaria
a Eliete ir a um programa popular de TV para completar o quadro de uma banalidade
completa. Não é que não sinta compaixão, é apenas que encontro em mim uma
violenta aversão a este tipo de vida que é corrompida pela mediocridade sem
qualquer brilho (a não ser o que vem dos ecrãs dos telemóveis).
Uma explicação óbvia para esta
minha reação, claro está, é eu ver-me demasiado próximo de Eliete e não gostar de me ver retratado. É verdade, por exemplo, que fiquei com a minha curiosidade aguçada em relação ao Tinder. E não,
não tenho nem vou ter conta lá, nem sequer visitarei o site, pois sinto perigo,
sinto que aquilo, ao contrário do que foi para Eliete, representaria destruição
para mim.
Uma outra explicação é eu não gostar
do uso de palavrões, exceto em alguns (poucos) contextos de comicidade. Porque
os palavrões têm conotações feias e são muito agressivos. Como acredito que as
palavras inspiram ideias e as ideias inspiram ações, acho perigoso o uso
libertário dos palavrões. Para mim, representam o começo da normalização da
violência.
Aqui surge apenas o palavrão f*, logo desde a primeira frase. No
fim, na p.247 a personagem explica que é para expressar a ausência de amor.
Certo. Mas seria necessário? Penso que não. O leitor não é burro e apercebe-se dessa ausência logo a partir das primeiras páginas.
Outra função do uso dele poderia
ser mostrar-nos que Eliete pertence a uma classe média baixa ou mesmo popular,
um pouco à maneira dos livros de António Lobo Antunes (que este livro, pelo
menos a sua primeira metade, parece evocar).
O certo é que, de cada vez que aquele
palavrão surgia, ele era uma bomba que estilhaçava a construção estético-literária que eu ia fazendo até ao momento, deixando atrás de si cinzas frias e uma enorme
ausência de interesse pela continuação da leitura. A explicação do seu uso por
Eliete não me resolveu este problema.
Apesar disto, acabei o livro
sentindo que, de facto, e no fim de tudo, tenho algo de Eliete em mim, que eu também já fui e ainda sou um pouco
a Eliete.
P.S. 2:
(227)
(nota extra feita do ponto de vista da
Psicologia)
Excelente descrição, e muito clara,
de como as críticas e as “sugestões bem-intencionadas” só servem para afastar e
isolar as pessoas a quem as dirigimos.
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