quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Dulce Maria Cardoso, Eliete - Parte 1 - A Vida Normal

 

Tinta da China, 2020

(94)

(…), era apenas uma incapacidade minha, não sabia questionar a origem das coisas nem alterar o que me desagradava, aceitava quase tudo à minha volta como inevitável e imutável.

Este é o ponto de partida de Eliete neste livro. Trata-se do ponto-chave deste romance. Porque é aqui que Eliete toma consciência da pessoa que foi até este momento. E essa tomada de consciência é o primeiríssimo passo para ela se começar a afastar dessa Eliete anterior. A partir daqui, vamos assistir ao seu crescimento (na p. 143, as interrogações começam a explodir dentro de Eliete), ao modo como vai superando a distância que vai dos sonhos da infância e da juventude até ao real da idade adulta, à sua caminhada para a independência. O livro acaba numa espécie de encruzilhada em que nos falta saber se Eliete tomará uma decisão exultante de corte com o passado ou se afinal não vai arriscar dar o salto decisivo. Dulce Maria Cardoso irá continuar com esta saga pessoal?

 

De todo o modo, a autora mostra-nos nesta obra que é pensando e escrevendo (sim, escrevendo, porque não? Nada nos diz que não estamos a ler um relato escrito) que expandimos a nossa humanidade. Mostra-nos Eliete a começar pequenina, e a acabar claramente num caminho bem mais amplo do que quando começou, por via destes dois processos, o do pensamento e o da escrita.

Devo confessar que a arte de Dulce Maria Cardoso quase conseguiu fazer-me acreditar na verosimilhança deste percurso. Este “quase” advém, não de qualquer falha da autora, mas simplesmente da minha convicção de que não é possível este crescimento pessoal numa sociedade que faz pressões imensas e insidiosas para o conformismo, se a pessoa não recorrer à leitura de livros (que não aparece nesta obra).

 

(274 e 275)

Veja-se aqui a excelente descrição de como os contextos sociais em que estamos mergulhados, e a pressão que eles exercem sobre nós, nos “obrigam” a desempenhar determinados papéis de que é muito difícil desprendermo-nos, mesmo quando eles já estão mortos para nós. Se não tivermos a ajuda e o apoio dos livros, é muito difícil resistir-lhes.

 

Nesta obra, Dulce Maria Cardoso prefere realçar o papel que as redes sociais desempenham neste processo. No que toca à Eliete, são elas que lhe dão o impulso para iniciar a sua caminhada de libertação. Mas também constituem um mundo que estimula a solidão acompanhada, fruto de um afastamento entre as pessoas onde cada uma fala de e para si mesma. E, finalmente, um mundo de aparente abundância, de irrealidade, que acaba por anestesiar Eliete e entorpecê-la, acabando por lhe roubar valor a tudo o que antes o tinha. Ou seja, este mundo foi um instrumento de libertação mas, ao mesmo tempo ou na sua sequência, de alguma forma foi um motor de um certo esvaziamento espiritual.

 

(204)

(…), o país não era para velhos, os tempos não eram para velhos, (…).

A forma como a avó de Eliete é vista e tratada ilustra igualmente o contexto onde este mundo das redes sociais floresce. Trata-se de uma componente deste livro que não ocupa o centro do palco, mas está sempre lá, um pouco como uma música de fundo baixinha (em particular, lembra-nos que esta é uma sociedade em que tentar viver o máximo de tempo possível não é sempre uma boa ideia).

 

Em suma, esta é uma obra que constitui uma inspiração, mas também uma provocação muito interessante que nos interroga e questiona a sociedade em que vivemos, uma obra que mostra mais do que demonstra, tudo feito sempre com muita arte por Dulce Maria Cardoso.

 

P.S. 1:

Curiosamente, a maior parte deste livro evocou emoções que me transportaram para a leitura que fiz d’A Náusea, de Sartre, há décadas atrás. Sinto-me imensamente longe disto tudo que Dulce Maria Cardoso descreve. Só faltaria a Eliete ir a um programa popular de TV para completar o quadro de uma banalidade completa. Não é que não sinta compaixão, é apenas que encontro em mim uma violenta aversão a este tipo de vida que é corrompida pela mediocridade sem qualquer brilho (a não ser o que vem dos ecrãs dos telemóveis).

Uma explicação óbvia para esta minha reação, claro está, é eu ver-me demasiado próximo de Eliete e não gostar de me ver retratado. É verdade, por exemplo, que fiquei com a minha curiosidade aguçada em relação ao Tinder. E não, não tenho nem vou ter conta lá, nem sequer visitarei o site, pois sinto perigo, sinto que aquilo, ao contrário do que foi para Eliete, representaria destruição para mim.

Uma outra explicação é eu não gostar do uso de palavrões, exceto em alguns (poucos) contextos de comicidade. Porque os palavrões têm conotações feias e são muito agressivos. Como acredito que as palavras inspiram ideias e as ideias inspiram ações, acho perigoso o uso libertário dos palavrões. Para mim, representam o começo da normalização da violência.

Aqui surge apenas o palavrão f*, logo desde a primeira frase. No fim, na p.247 a personagem explica que é para expressar a ausência de amor. Certo. Mas seria necessário? Penso que não. O leitor não é burro e apercebe-se dessa ausência logo a partir das primeiras páginas.

Outra função do uso dele poderia ser mostrar-nos que Eliete pertence a uma classe média baixa ou mesmo popular, um pouco à maneira dos livros de António Lobo Antunes (que este livro, pelo menos a sua primeira metade, parece evocar).

O certo é que, de cada vez que aquele palavrão surgia, ele era uma bomba que estilhaçava a construção estético-literária que eu ia fazendo até ao momento, deixando atrás de si cinzas frias e uma enorme ausência de interesse pela continuação da leitura. A explicação do seu uso por Eliete não me resolveu este problema.

Apesar disto, acabei o livro sentindo que, de facto, e no fim de tudo, tenho algo de Eliete em mim, que eu também já fui e ainda sou um pouco a Eliete.

 

P.S. 2:

(227)

(nota extra feita do ponto de vista da Psicologia)

Excelente descrição, e muito clara, de como as críticas e as “sugestões bem-intencionadas” só servem para afastar e isolar as pessoas a quem as dirigimos.

 


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