domingo, 29 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 19.

 


19. A falta de filhos, que provoca um envelhecimento da população, juntamente com o abandono dos idosos numa dolorosa solidão, exprimem implicitamente que tudo acaba connosco, que só contam os nossos interesses individuais. Assim, «objeto de descarte não são apenas os alimentos ou os bens supérfluos, mas, muitas vezes, os próprios seres humanos». Vimos o que aconteceu com as pessoas de idade em algumas partes do mundo por causa do coronavírus. Não deviam morrer assim. Na realidade, porém, tinha já acontecido algo semelhante devido às ondas de calor e noutras circunstâncias: cruelmente descartados. Não nos damos conta de que isolar os idosos e abandoná-los à responsabilidade de outros sem um acompanhamento familiar adequado e amoroso mutila e empobrece a própria família. Além disso, acaba por privar os jovens daquele contacto que lhes é necessário com as suas raízes e com uma sabedoria que a juventude, sozinha, não pode alcançar.

Os políticos sabem do que o Papa está a falar. E, no entanto, pouco se preocupam com as necessidades emocionais das pessoas em geral e dos idosos em particular, com graves implicações na saúde mental de todos nós.

Mais uma vez, podemos dar conta aqui, com os idosos, da estratégia de separar, de dividir e de enfraquecer os laços entre as pessoas. Vimos isso também no nosso país, com a forma como a vacinação contra a Covid-19 não foi priorizada para os mais velhos, ao mesmo tempo que se lhes proibia totalmente os contactos com o resto da família (o que demonstrou que o que moveu os responsáveis políticos não foi ignorarem que este grupo etário era aquele que mais precisava de ser vacinado).

Cito aqui Teresa de Sousa, uma reputada jornalista do Público (“Os velhos”, na edição de 30/05/2021, pág. 6): 

(…) Sem sindicatos e sem capacidade para pressionar as “autoridades”, aqueles que verdadeiramente corriam risco de vida, ou seja, os mais velhos – nem sequer os “velhos”, apenas os mais velhos – iam morrendo ou passando por longos internamentos. (…) Os “velhos” – quer dizer, os que têm mais de 65 ou 70 anos – foram e são olhados como equivalentes a “inúteis”. (…) Não me estou a queixar. Estou apenas a dizer que se continua a pensar pouco nos “velhos”. Ou melhor, que o conceito de “velhos”, em Portugal, é distorcido e é ofensivo. E isso não é certamente um bom indicador da “resiliência” – como agora se diz para quase tudo – de uma sociedade que se quer desenvolvida. (…)

Nada a acrescentar. Adiante.

Nós, os mais velhos (na verdade, a totalidade da população), precisamos de aprender como nos conectarmos genuinamente com as crianças e com os jovens, suscitando o seu interesse e o seu afeto.

Como não era uma preocupação no passado, nós não aprendemos a fazê-lo porque os nossos pais e avós também não sabiam. Portanto, não é algo que seja fácil, nem é algo que se aprenda naturalmente, até porque as crianças e os jovens de hoje são bastantes diferentes e vivem numa sociedade bastante diferente da de há umas décadas atrás. Ou seja, o estatuto que a sociedade atualmente lhes outorga cria personalidades e expetativas diferentes das de antigamente.

Além de que, muitas vezes, os idosos pouco tempo estão com eles (como, aliás, os pais, irmãos e tios, devido aos horários de trabalho e de deslocação de e para o emprego da maior parte das pessoas). Assim, todos temos de aprender formas novas e mais eficazes de chegar até aos mais novos

Pessoalmente, procuro estar sempre a par do que a ciência da psicologia vai descobrindo e provando na área da infância e da juventude, nomeadamente ao nível das neurociências e da comunicação intergeracional.

O vídeo que junto aqui consiste numa conversa entre dois seres humanos separados entre si apenas pela idade: 57 anos de diferença (pode-se pôr legendas em português no vídeo). A razão da minha escolha é que estarmos interessados, genuinamente curiosos e fazendo perguntas abertas, são todas boas maneiras de comunicarmos com os mais novos, seja qual for a sua idade.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 18.

 


O descarte mundial

18. Partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício de uma seleção que favorece um setor humano digno de viver sem limites. No fundo, «as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se “ainda não servem” (como os nascituros) ou “já não servem” (como os idosos). Tornamo-nos insensíveis a qualquer forma de desperdício, a começar pelo alimentar, que aparece entre os mais deploráveis». [Nota à tradução: em “deprecabili”, eu optaria por “condenáveis” (outro dos seus sentidos) em vez da palavra “deploráveis” aqui usada.]

Infelizmente, mesmo figuras públicas ligadas ao poder subscrevem este desprezo generalizado pelos mais vulneráveis. Todos nos recordamos de, na Assembleia da República, um deputado, nosso representante político, falar dos idosos chamando-os de «peste grisalha». Assim contribuindo para incentivar ódios entre segmentos da população, naturalmente sempre a fim de beneficiar os mais poderosos.

Será que pertencemos àqueles que, como o Papa diz, se acham abusivamente dignos “de viver sem limites”? Para responder a esta pergunta, acho que podemos medir o nosso nível de abastança pelos desperdícios que deixamos atrás de nós no nosso dia-a-dia, quer seja nos gastos que fazemos com água, eletricidade, gás, etc.; quer no lixo que produzimos diariamente. Talvez cheguemos à conclusão de que, como o Papa aqui refere, nós, os mais abastados, já nem damos conta do que consumimos em excesso nem do que desperdiçamos em termos de alimentos.

O Papa aflora, neste parágrafo da Encíclica, um ponto muito sensível: a questão da interrupção voluntária da gravidez. Neste caso em particular, não me parece que se trate de desvalorizar a vida humana. A despenalização da interrupção voluntária da gravidez visa, pelo contrário, evitar males maiores e mais trágicos. Podemos, por isso, admitir que esta é, infelizmente, uma medida extrema e desesperada que resulta do fracasso de uma sociedade (política, económica, empresarial) em apoiar e auxiliar positivamente toda e qualquer gravidez. Veja-se, como um exemplo parcial, o artigo de opinião de Susana Peralta (Professora Universitária de Economia na Nova SBE), “Trabalhadoras flexíveis e patrões inflexíveis”, no Público de hoje, dia 27 de Agosto.

Na verdade, quando falamos de desvalorização da vida humana, nunca podemos ficar apenas pelos nascituros e pelos idosos. Na minha opinião, devemos também acrescentar, pelo menos:

- todas as crianças vítimas de crueldades extremas perante a indiferença de muitos: considere-se, por exemplo, que “Uma em cada dez crianças da Área Metropolitana do Porto é vítima de violência grave” (Público online de 28 de Março de 2019);

- os milhões de crianças no mundo que passam fome extrema (veja-se aqui), enquanto nós andamos a desperdiçar alimentos;

- todos os soldados que são enviados para a guerra para matar e morrer (incluindo, ainda, os adversários e os civis mortos por eles);

- todos os supostos (há muitos enganos judiciais) criminosos condenados à morte (o Papa é contra a pena de morte);

- todos os civis inocentes que são feridos e mortos pelas forças de “segurança” (as quais, aliás, em alguns sítios do planeta, recebem ordens para os ferir e matar);

- todos os migrantes vítimas de naufrágios no Mediterrâneo, porque os poderes instituídos se recusam a salvá-los e impedem outros de fazê-lo (o Papa também é contra esta crueldade extrema).

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 17.

 


17. Cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos. Mas precisamos de nos constituirmos como um «nós» que habita a casa comum. Um tal cuidado não interessa aos poderes económicos que necessitam dum ganho rápido. Frequentemente, as vozes que se levantam em defesa do ambiente são silenciadas ou ridicularizadas, disfarçando de racionalidade o que não passa de interesses particulares. Nesta cultura que estamos a desenvolver, vazia, fixada no imediato e sem um projeto comum, «é previsível que, perante o esgotamento de alguns recursos, se vá criando um cenário favorável para novas guerras, disfarçadas sob nobres reivindicações».

Nós somos muito influenciados pelos contextos onde vivemos. Deste modo, como diz o Papa, cuidarmos do meio ambiente em que vivemos é cuidarmos de nós próprios. Em 1914, no livro Meditaciones del Quijote, Ortega y Gasset escreveu: Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo. Assim, o Papa alerta-nos também que não se trata aqui apenas do eu e do meu bem-estar pessoal e egoísta, mas trata-se igualmente da minha consideração pela comunidade à qual pertenço e com quem coabito.

Lemos as palavras do Papa e é impossível não nos recordarmos dos ataques selváticos de ódio dirigidos à jovem Greta Thunberg. Que, com base em provas científicas, se limitou a alertar as pessoas para a tragédia ecológica que, na verdade, não pára de continuar a aproximar-se.

Qual a estratégia usada hoje pelos poderes económicos? Começam por evitar que as pessoas tenham tempo e disponibilidade para pensarem para além do imediato. Ao mesmo tempo, avançam para a promoção de guerras entre pessoas, através de exclusões ou da competição selvagem (sempre com justificações “razoáveis” e “nobres”)

É preciso estar sempre a lembrar aos que defendem a competição com o exemplo das suas vantagens no desporto de que, neste caso, a competição está limitada a períodos curtos de tempo, que está regrada e regulamentada ao mais pequeno pormenor, existindo tribunais próprios, em que o controlo é apertado e os castigos são imediatos à falta cometida. Bem ao contrário do que se passa nos locais de trabalho onde se estimula a mesma competição.

Quando as pessoas atingem um elevado nível de medo (porque não têm o apoio da comunidade, estão excluídos ou estão em competição, ou lhes faltam até os recursos para uma sobrevivência digna) e de raiva (consequência do medo e da forma como se sentem tratadas), fica o cenário maduro para elas serem manipuladas a eleger o outro (o diferente, aquele que não compreendem muito bem) como inimigo, o que lhes desvia as atenções de quem fez efetivamente o mal. Daí até se promover uma guerra a sério, a distância não é grande (estou a lembrar-me do exemplo da Guerra feita no Iraque, a pretexto do ataque às Torres Gémeas, quando os terroristas e o seu líder eram árabes sauditas que, aliás, pertenciam a uma sociedade muito mais terrivelmente religiosa e tradicionalista do que a iraquiana da altura).

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 16.

 


(15)

16. Nesta luta de interesses que nos coloca a todos contra todos, onde vencer se torna sinónimo de destruir, como se pode levantar a cabeça para reconhecer o vizinho ou ficar ao lado de quem está caído na estrada? Hoje, um projeto com grandes objetivos para o desenvolvimento de toda a Humanidade soa como um delírio. Aumentam as distâncias entre nós, e a dura e lenta marcha rumo a um mundo unido e mais justo sofre um novo e drástico revés.

Os grandes poderes têm promovido uma sociedade cada vez mais competitiva, seja entre civilizações, entre países ou entre pessoas. Competição, competição e mais competição. Daí o Papa percecionar que, hoje em dia, um projeto comum de justiça para todos soa «como um delírio». Tal como soa também para muitos de nós.

A competição transforma relações que devem ser de cooperação real em relações de luta pelo poder disfarçadas de cooperação (por exemplo, chamar de “colaboradores” os trabalhadores que estão completamente subalternos às chefias é uma forma revoltante de escárnio e de hipocrisia).

Claro que sempre existiram formas de luta entre as pessoas, mas mais sob a forma de relações de energia (criativa, de envolvimento, de ajuda, e de resultados também, claro). Porém, as pessoas eram mais ou menos livres de entrar ou não em qualquer tipo de lutas. Com a implantação de uma avaliação competitiva obrigatória, essa liberdade desapareceu. Nós somos mesmo obrigados a lutar uns contra os outros nos termos estritamente estabelecidos pelo poder.

Sabe-se que uma das piores coisas para a nossa saúde mental é compararmo-nos constantemente uns com os outros. Porque a comparação leva inevitavelmente à autoreprovação; aliás, suspeito que isto constitui uma das razões pela qual esta avaliação a promove até à exaustão.

Como a pessoa passa a ser o que a avaliação diz que ela é, a avaliação serve todas as instâncias de poder, desde as mais elevadas até aos escalões inferiores da hierarquia social e laboral. E serve principalmente porque, quaisquer que sejam as variações que os diferentes tipos de avaliação competitiva possam ter, há uma característica comum e transversal a todas elas: a criação de pessoas submissas e desmoralizadas. Que é no que talvez nos estejamos a tornar a pouco e pouco.

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 15.

 

(14)

Sem um projeto para todos

15. A melhor maneira de dominar e avançar sem entraves é semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante, mesmo disfarçada por detrás da defesa de alguns valores. Usa-se hoje, em muitos países, o mecanismo político de exasperar, exacerbar e polarizar. Com várias modalidades, nega-se a outros o direito de existir e pensar e, para isso, recorre-se à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los. Não se acolhe a sua parte da verdade, os seus valores, e assim a sociedade empobrece-se e acaba reduzida à prepotência do mais forte. Desta forma, a política deixou de ser um debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e [d]o bem comum, limitando-se a receitas efémeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro. Neste mesquinho jogo de desqualificações, o debate é manipulado para o manter no estado de controvérsia e contraposição [nota à tradução: eu optaria por “confronto”, outro dos sentidos do original “contrapposizione”].

Está aqui resumido todo um programa levado a cabo pelo poder nas democracias “adoecidas” ou “enfraquecidas”, como preferirem, do ocidente.

Trata-se de semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante para nos manter num estado permanente de sobrevivência precária e frágil.

É com as táticas aqui descritas pelo Papa que se alcançam estes objetivos. Acrescentaria apenas mais três táticas: silêncio a ser-nos agressivamente dirigido (mas com muita “gritaria” nos meios de comunicação social e nas redes sociais a ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los); insensibilidade às pessoas; e recusa de diálogo com elas. Deixando-as a falar sozinhas e em total desamparo.

Alguns de nós ainda se lembram de todos aqueles governantes portugueses de má memória que diziam "Estamos em democracia, toda a gente tem o direito de se manifestar. Que se manifestem à vontade. Mas nós temos também o direito de continuar a fazer o que fazemos." Ignorando sobranceiramente o que os manifestantes tinham a dizer, e esvaziando assim de qualquer substância o discurso e a participação destes na vida política. De forma a conseguirem que todo o poder de abusar não só se mantivesse intocado, mas mesmo reforçado.

Em suma, se nos sentirmos desanimados (individual, social e politicamente), é bem possível que estejamos a ser manipulados pelo poder para nos sentirmos assim.

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 14.

 


(14)

14. São as novas formas de colonização cultural. Não nos esqueçamos de que «os povos que alienam a sua tradição e – por mania imitativa, violência imposta, imperdoável negligência ou apatia – toleram que se lhes roube a alma, perdem, juntamente com a própria fisionomia espiritual, a sua consistência moral e, por fim, a independência ideológica, económica e política». Uma maneira eficaz de dissolver a consciência histórica, o pensamento crítico, o empenho pela justiça e os percursos de integração é esvaziar de sentido ou manipular as «grandes» palavras. Que significado têm hoje palavras como democracia, liberdade, justiça, unidade? Foram manipuladas e desfiguradas para utilizá-las como instrumento de domínio, como títulos vazios de conteúdo que podem servir para justificar qualquer ação.

Este roubo da alma de um povo de que o Papa Francisco fala é promovido em grande parte pelo estabelecimento de um crescente isolamento entre as pessoas. A «colonização cultural» é tremendamente facilitada com o desaparecimento do diálogo, principalmente do diálogo vertical entre gerações, mas também do horizontal que inclua as mais diversas tradições, embora todas pertencentes a uma humanidade comum.

Vergílio Ferreira, em 1959, no seu livro "Aparição" (páginas da 15ª edição de 1980, Livraria Bertrand), alerta-nos para uma forma de esvaziar de significado as palavras:

(pág. 67)

- Mastigar as palavras?

- Bem... É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois, pedra já não quer dizer nada.

Como, Carolino? Sabes então já a fragilidade das palavras, (...)?

(pág. 111)

Voltava a relatar-me a sua curiosa destruição da linguagem:

- A gente quando fala não pensa nas palavras, - dizia -, mas depois tornamos a dizer as mesmas palavras muitas vezes, muitas vezes, e já não são nada, é como que uma fala de doido.

- Sim.

- A gente diz por exemplo: “Esta cidade é bonita”. E depois repete: “Esta, esta, esta, esta” assim muitas vezes. E no fim já não é nada, é só som. Mesmo que se repita a frase toda. Primeiro a gente fica com uma ideia na cabeça. Depois já não há nada.

Eu olhava-o: sim. As palavras são pedras, Carolino; o que nelas vive é o espírito que por elas passa.

E é isto que é feito: usar e abusar das palavras «democracia, liberdade, justiça, unidade» para elas perderem o seu poder encantatório e motivador. E deste uso e abuso somos todos culpados, uns mais, outros menos: nós, jornalistas, políticos, “fazedores de opinião”, etc.

No entanto, apesar de tudo, não tenho uma visão tão negativa. Mas eu evito a televisão e sou muito seletivo nas minhas leituras. Quando os que têm voz na praça pública se apropriam destas palavras e as usam distorcida e repetidamente até ao seu desgaste e desfiguramento, eu não estou lá a ouvi-los. Mas nem toda a gente se protege desta usura como eu; e, se calhar muito menos os jovens.

Ganhei o fascínio por estas palavras através da leitura de muitos autores preocupados com uma sociedade melhor, na qual fosse permitido às pessoas verdadeiramente florescerem. A título de exemplo, refiro aqui dois, Vergílio Ferreira e Albert Camus, que desde sempre têm sido fontes inesgotáveis para mim, nos quais ainda hoje me inspiro abundantemente. Mas há muitos mais para além destes, felizmente.

domingo, 15 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 13.


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O fim da consciência histórica

13. Pelo mesmo motivo, favorece também uma perda do sentido da história, que desagrega ainda mais. Nota-se a penetração cultural de uma espécie de «desconstrucionismo», em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero. De pé, deixa apenas a necessidade de consumir sem limites e a acentuação de muitas formas de individualismo sem conteúdo. Neste contexto, colocava-se um conselho que dei aos jovens: «Se uma pessoa vos fizer uma proposta dizendo para ignorardes a história, para não aproveitardes da experiência dos mais velhos, para desprezardes todo o passado, olhando apenas para o futuro que essa pessoa vos oferece, não será uma forma fácil de vos atrair para a sua proposta a fim de fazerdes apenas o que ela diz? Aquela pessoa precisa de vós vazios, desenraizados, desconfiados de tudo, para vos fiardes apenas nas suas promessas e vos submeterdes aos seus planos. Assim procedem as ideologias de variadas cores, que destroem (ou desconstroem) tudo o que for diferente, podendo assim reinar sem oposições. Para isso, precisam de jovens que desprezem a história, rejeitem a riqueza espiritual e humana que se foi transmitindo através das gerações, ignorem tudo quanto os precedeu».

Ignorar e rejeitar a história que nos explica como chegámos até aqui é mais uma maneira de nos separarmos da comunidade a que pertencemos. E, em consequência disso, deixamos de ver qualquer interesse em alimentar esta comunidade. Resultado? Solidão e isolamento acrescidos. Sequelas? As habituais: menos saúde, menos longevidade, mais consumismo e mais destruição do nosso planeta.

Já alguém há de ter defendido esta ideia: estudar a História e integrá-la na nossa vida interior (sempre de forma crítica, claro) pode ser um dos vários caminhos à nossa disposição para diminuir a nossa eventual sensação de solidão e de isolamento. Porque dá-nos a consciência de pertencer à linhagem dos seres humanos que nos antecederam aqui na Terra e que tanto contribuíram para vivermos hoje muito melhor do que no seu tempo.

No entanto, observo que há os que nunca aprenderam. Também há os que já esqueceram. Mas quem me espanta são as pessoas que fazem por esquecer a história, quer a longínqua, quer a mais recente. Por exemplo, a alguém mais novo que defendia que as pessoas deviam trabalhar sem contrato e sem ordenado mínimo, eu respondi: “Sabes que isso já foi experimentado no passado, e não resultou, não sabes?” Silêncio do lado de lá.


sábado, 14 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 12.

 

(Pintura de Jean Jacques Henner retratando a solidão)

(12)

12. «Abrir-se ao mundo» é uma expressão de que, hoje, se apropriaram a economia e as finanças. Refere-se exclusivamente à abertura aos interesses estrangeiros ou à liberdade dos poderes económicos para investir sem entraves nem complicações em todos os países. Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único. Esta cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações, porque «a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos». Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência. Em contrapartida, aumentam os mercados, onde as pessoas desempenham funções de consumidores ou de espectadores. O avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes económicos transnacionais que aplicam o lema «divide e reinarás».

Os poderosos fazem o que podem para implantarem o “dividir para reinar”.  E podem muito, na realidade. Além disso, juntam-se entre si (os «mais fortes que se protegem a si mesmos»). Há várias “internacionais” do poder e da alta finança: Grupo Bilderberg, Comissão Trilateral, Fórum Económico Mundial (o Fórum Social Mundial pretende ser um contraponto a este), etc.

Um dos resultados nefastos da organização que esta economia impõe à sociedade, é a crescente solidão das pessoas (sem, obviamente, nenhum aumento de felicidade para estas). Como é que esta economia dificulta, por exemplo, a vida comunitária? Através de salários baixos (que obriga a ter mais trabalhos), emprego precário, horários alargados de trabalho, trabalho que põe as pessoas esgotadas ao fim do dia, tratamento degradante pelas chefias, etc. Mas, principalmente, através da promoção da competição selvagem entre todos.

Por isso, se é verdade que somos consumidores e espetadores, a realidade é que, numa grande parte do nosso dia a dia, somos principalmente competidores, o que acaba por reforçar a solidão em que cada um de nós tende cada vez mais a viver.

Estes três papéis (consumidores, espetadores e competidores) que as sociedades atuais nos forçam a assumir deixam muito pouco espaço para outras identidades. Para a de “irmãos”, por exemplo, que nos faria infinitamente mais felizes.

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 11.

 


(12)

11. Mas a história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social, mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais. Isto lembra-nos que «cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o caminho. O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam de uma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia. Não é possível contentar-se com o que já se obteve no passado nem instalar-se a gozá-lo como se esta situação nos levasse a ignorar que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem situações de injustiça que nos interpelam a todos».

Acho que uma das causas deste retrocesso, pelo menos no Ocidente, reside no facto de os abusos descontrolados dos poderosos, políticos, CEOs, banqueiros e empresários, que levaram a uma crise climática e a uma crise financeira graves, terem constituído profundos golpes na confiança que as pessoas do povo tinham nas elites.

Aquelas elites mostraram-se incapazes de assumirem os seus erros e as suas responsabilidades. O que fez aumentar o medo e a zanga.

Esses poderosos desenvolveram, então, campanhas para desviaram esta zanga justificada das populações (obrigadas pelo poder político, judicial e policial a pagar os desmandos por eles realizados) para segmentos mais fracos e sem voz da humanidade que, por essa mesma razão, não têm conseguido defender-se de forma eficaz.

O Papa incentiva-nos a resistir a estas tentativas dos poderosos para destruir a consciência da nossa humanidade comum. Juntos ou, pelo menos, a nível individual, dia após dia, hora após hora.

Pessoalmente penso que, se achamos que já não somos capazes de o fazer através do envolvimento em grandes movimentos sociais, devemos encorajar as gerações mais novas a tentá-lo. Podemos contar-lhes, aliás, na história do último século, pequenas e grandes experiências de que tal é possível: por exemplo, o movimento pelo sufrágio feminino, ou o movimento do 25 de Abril, etc.

Porque tudo o que ainda desfrutamos de bom tem de ser defendido e conquistado contra a voragem desses poderosos. Todos os dias. E não nos iludamos: com sacrifícios.

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 10.

 


(11)

Sonhos desfeitos em pedaços

10. Durante décadas, pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando para variadas formas de integração. Por exemplo, avançou o sonho de uma Europa unida, capaz de reconhecer raízes comuns e regozijar-se com a diversidade que a habita. Lembremos «a firme convicção dos Pais fundadores da União Europeia, que desejavam um futuro assente na capacidade de trabalhar juntos para superar as divisões e promover a paz e a comunhão entre todos os povos do continente». E ganhou força também o anseio de uma integração latino-americana, e alguns passos começaram a ser dados. Noutros países e regiões, houve tentativas de pacificação e reaproximações que foram bem-sucedidas e outras que pareciam promissoras.

O interessante é que nos demos muito positivamente com esse caminho para uma integração mais alargada de tod@s. As pessoas viviam mais felizes, com maior bem-estar material e com mais esperança no futuro. Tratavam-se de aspirações que nos conferiam dignidade e que serviam para nos elevar sem precisarmos de diminuir ninguém. E, por isso, nos faziam sentir bem. Porque percecionávamos o bem tanto à nossa volta como à nossa frente.

O que confirma a ideia da ciência de que as sociedades que incluem a diversidade são boas para a sobrevivência da espécie, tanto no sentido geral, como nos mais restrito âmbito das empresas.

Diversidade superficial, evidentemente, já que no essencial somos todos igualmente humanos (por exemplo, não existindo sequer uma coisa chamada de “raça”).

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 9.

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Capítulo I – As sombras de um mundo fechado

9. Sem pretender efetuar uma análise exaustiva nem tomar em consideração todos os aspetos da realidade que vivemos, proponho apenas manter-nos atentos a algumas tendências do mundo atual que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal."

O convite aqui feito é simples e absolutamente nada impositivo. Como em muitas passagens desta obra, o Papa evidencia um respeito enorme pelas pessoas que o leem. Ele apenas procura incentivar-nos a dar um pouco da nossa atenção. O resultado é que nos predispomos afavelmente a fazê-lo.

Primeiro, vamos ver o que provoca o mal (a surpreendente ausência de fraternidade entre seres inteligentes e sensíveis da mesma espécie, acrescento eu) para, depois, podermos lidar com ele e superá-lo, na medida do possível.

Notemos como está subjacente a ideia de que a realidade nada tem de simples. É um bom alerta para nos precavermos contra os políticos e os poderosos que, perante qualquer realidade, fazem análises simples e propõem soluções simples. Podem ou não estar a iludir-se a si mesmos, mas estão certamente a tentar enganar-nos a todos nós.

Hoje, o link que escolhi conta um triste exemplo das dificuldades que são impostas pelos poderes europeus a quem deseja praticar a fraternidade universal: "Criminalização da solidariedade - O caso Iuventa".

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 8.

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 8. Desejo ardentemente que, neste tempo que nos cabe viver, reconhecendo a dignidade de cada pessoa humana, possamos fazer renascer, entre todos, um anseio mundial de fraternidade. Entre todos: «Aqui está um ótimo segredo para sonhar e tornar a nossa vida uma bela aventura. Ninguém pode enfrentar a vida isoladamente (…); precisamos de uma comunidade que nos apoie, que nos auxilie, e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar em frente. Como é importante sonhar juntos! (…) Sozinho, corres o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos». Sonhemos como uma única Humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma Terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos.

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NOTAS

Este parágrafo é tão bonito e tão verdadeiro que apetece não dizer mais nada e deixar estas palavras habitarem dentro de nós, sem a interferência de ruídos exteriores.

Mas sinto alguma obrigação de acrescentar algo. Quem estiver a ler é que não tem a obrigação de continuar, claro! 🙂

Sabemos várias coisas que o Papa recorda aqui.

A primeira é que, quando diminuímos a dignidade dos outros, estamos a diminuir irremediavelmente a nossa própria dignidade (se todos os que que cometem abusos sobre outras pessoas se apercebessem como perdem a sua dignidade...).

A segunda é que somos uma espécie profundamente social e que sofremos muito em isolamento. Assim, e a ciência já o demonstrou, o mais seguro contributo para a nossa felicidade são as relações profundas e significativas que estabelecemos com os outros - consulte-se o Estudo de Harvard, por exemplo: «Harvard study, almost 80 years old, has proved that embracing community helps us live longer, and be happier» (Tradução minha: "Realizado ao longo de quase 80 anos, o Estudo de Harvard provou que envolvermo-nos numa comunidade ajuda-nos a viver mais tempo e a ser mais felizes")

A terceira é que, face aos desafios que a vida nos coloca e perante os ataques feitos pelo poder ao nosso bem-estar, só juntos conseguiremos conquistar uma vida melhor para nós e para os nossos descendentes. Sozinhos, somos fracos e tendemos a desperdiçar esforços, mesmo quando realizados em direções mais frutuosas. Juntos, partilhando sonhos, aspirações e valores, é mais realizável a construção de um mundo mais fraterno para todos, sem a exclusão de ninguém, seja pela idade, pelo sexo, pela religião, pela nacionalidade, etc.

A quarta é que, com um sonho e um projeto partilhados, é mais fácil persistirmos animados a lutar por uma vida melhor para todos.

Deixo apenas um alerta.

Nem sempre juntos criamos e defendemos os melhores sonhos. Por sermos estruturalmente uma espécie social, muito ligada a grupos hierarquicamente organizados, a verdade é que somos todos facilmente manipulados e influenciados por outros, nem sempre para o bem.

A minha sugestão é que devemos ouvir o que, no nosso corpo, as nossas emoções nos dizem. Elas são a sinalização mais fiável de que estamos no caminho certo ou errado, consoante forem limpidamente positivas ou negativas. Se surgirem estas últimas, normalmente desagradáveis ou acordando coisas negras em nós, será mais benéfico que as levemos a sério e mudemos de direção ou abandonemos mesmo o caminho que estamos a seguir.


sábado, 7 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 7.


7. Além disso, quando estava a redigir esta carta, irrompeu de forma inesperada a pandemia da Covid-19, que deixou a descoberto as nossas falsas seguranças. Por cima das várias respostas que deram os diferentes países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos superconetados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que nos afetam a todos. Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade.

O primeiro comentário não sou eu que o escrevo. Dou a palavra a Susana Peralta (Professora de Economia na Nova SBE), no Público de 06/08/2021, pág. 13:

A Organização Mundial de Saúde tem multiplicado os apelos para não se vacinarem crianças e não haver terceira dose antes de aprovisionar os países mais pobres. (…) Mas que esta questão fundamental esteja arredada do debate só mostra que não aprendemos nada com a pandemia. É que mesmo que não queiramos ser generosos para com as pessoas dos países menos afortunados, podemos sempre pensar egoisticamente nas variantes que se poderão por lá desenvolver e cá chegarão num ápice. Não nos vão faltar enormes desafios globais para enfrentar nos próximos anos. Se não conseguirmos sair desta lógica de olharmos apenas para o nosso umbigo, estamos tramados.

Talvez seja por isto que, neste parágrafo, me parece que o Papa surge a defender, não uma revolução, pois que esta implica alguma forma de violência, mas talvez a revolta pura... Se sim, isto constitui uma medida do desespero a que a Humanidade chegou nos tempos atuais, se até o Papa entende que as velhas soluções já não podem ser melhoradas o suficiente para resolver os problemas contemporâneos (quanto mais os que sempre existiram).

De facto, o melhor talvez não seja tentar dar respostas velhas (aliás, de eficácia duvidosa; e, mesmo essa pouca eficácia vem de elas terem estado adaptadas aos contextos particulares, e passados, em que foram concretizadas) para problemas novos. Ainda por cima quando, atualmente, fazemos exigências de nível bem mais elevado para os resultados que esperamos obter.

Porém, essa busca de soluções novas não nos deve cegar para duas realidades: a) Devemos aproveitar as inequívocas boas experiências do passado. b) É prudente e sábio aprender com as que foram claramente prejudiciais, não as repetindo, nem insistindo mais nelas.

Reflitamos em como tudo isto também se aplica às nossas vidas individuais, no nosso dia-a-dia.

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 6.

 


A foto que escolhi (de Bernat Armangué) retrata a jovem voluntária da Cruz Vermelha, Luna Reyes, a ser abraçada por um imigrante senegalês em Ceuta (Maio de 2021). Diz ela (Público de 21 de Maio de 2021): 

«“Ele estava a chorar, eu dei-lhe a minha mão e ele abraçou-me”, disse Luna Reyes ao canal de televisão espanhol RTVE. “Ele agarrou-se a mim. Esse abraço foi um salva-vidas. (...) Eu só lhe dei um abraço. Abraçar alguém que pede ajuda é a coisa mais normal do mundo.”»


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6. As páginas seguintes não pretendem resumir a doutrina sobre o amor fraterno, mas detêm-se na sua dimensão universal, na sua abertura a todos. Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras. Embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade.

Aquela foto constituiu o exemplo mais belo e recente de que me lembrei para ilustrar como se pode fazer do amor um lugar de irradiação duradoura, como uma luz que ilumina todos sem distinções de qualquer tipo.

Faz desanimar como vão sempre surgindo e se multiplicam, tal como as cabeças da Hidra de Lerna,  as «formas atuais de eliminar ou ignorar os outros», bem como as formas de rejeitar, excluir e lançar para as margens aqueles que decidimos arbitrariamente que “não merecem outra coisa”.

As respostas antigas estão a perder força e a perder eficácia. É preciso descobrir um sonho novo (e uma prática renovada). O Papa diz que esse sonho novo se constrói com a prática, mas esta não é suficiente, claro. Para além dela (e ela é absolutamente necessária), é de facto preciso um sonho unificador e inspirador de todos os esforços, que os una num mesmo sentido, com um significado profundo para a maior parte das pessoas (pelo menos, as de boa vontade), mas especialmente para os jovens (que ainda não têm nem as defesas nem a sabedoria que nós, mais velhos, temos).

Finalmente, com estes apontamentos, respondo ao convite à reflexão que o Papa faz a todos nós, neste parágrafo.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 5.

 


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5. As questões relacionadas com a fraternidade e a amizade social sempre estiveram entre as minhas preocupações. A elas me referi repetidamente nos últimos anos e em vários lugares. Nesta encíclica, quis reunir muitas dessas intervenções, situando-as num contexto mais amplo de reflexão. Além disso, se na redação da Laudato si’ tive uma fonte de inspiração no meu irmão Bartolomeu, o Patriarca ortodoxo que propunha com grande vigor o cuidado da criação, agora senti-me especialmente estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem me encontrei (*), em Abu Dhabi, para lembrar que Deus «criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e chamou-os a conviver entre si como irmãos». Não se tratou de mero ato diplomático, mas de uma reflexão feita em diálogo e de um compromisso conjunto. Esta encíclica reúne e desenvolve grandes temas expostos naquele documento (**) que assinámos juntos. E aqui, na minha linguagem própria, acolhi também numerosas cartas e documentos com reflexões que recebi de tantas pessoas e grupos de todo o mundo.

(*) em 2019

(**) "Fraternidade humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum", Paulinas Editora

A foto deste encontro, a que o Papa se refere neste parágrafo, mostra algo que me comove muito. Esclareço porquê: dois seres humanos, com imperfeições pessoais que podem ser publicamente testemunhadas por todos, representando duas religiões/igrejas também com falhas (e que se guerrearam mutuamente durante séculos), a encontrarem-se para chegarem a uma declaração de humanidade comum que possa servir de guia para toda a gente de boa vontade no mundo. Pensando bem, é extraordinário!

Quanto ao parágrafo 5. em si:

Por várias razões, considero muito sábia e compassiva a proposta de juntar estas três condições de igualdade original dos seres humanos.

  • Primeiro, porque sem dignidade não há direitos que mereçam esse nome.
  • Segundo, porque sem dignidade nem direitos não se pode eticamente exigir deveres. Ou seja, não pode haver igualdade de deveres, quando ela não existe nos direitos e na dignidade. E muito menos exigir mais deveres para quem tem menos dignidade e direitos (que é o que, infelizmente, acontece mais vezes do que desejaríamos).
  • Terceiro, porque é uma triste e revoltante evidência que, mesmo com igualdade na dignidade (pelo menos, da material), há quem tenha mais direitos do que deveres (os ricos e poderosos) e quem tenha mais deveres do que direitos (os que não têm poder nem riqueza).

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 4.



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4. [São Francisco de Assis] Não fazia guerra dialética impondo doutrinas, mas comunicava o amor de Deus; compreendera que «Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus» (1Jo 4,16). Assim foi pai fecundo que suscitou o sonho de uma sociedade fraterna, pois «só o homem que aceita aproximar-se das outras pessoas com o seu próprio movimento, não para retê-las no que é seu, mas para ajudá-las a serem mais elas mesmas, é que se torna realmente pai». Naquele mundo cheio de torreões de vigia e muralhas defensivas, as cidades viviam guerras sangrentas entre famílias poderosas, ao mesmo tempo que cresciam as áreas miseráveis das periferias excluídas. Lá, Francisco recebeu no seu íntimo a verdadeira paz, libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros, fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos. Foi ele que motivou estas páginas.

Ajudar as pessoas «a serem mais elas mesmas» pode incluir facilitar-lhes o acesso e o desenvolvimento tanto dos seus potenciais preferidos, como do melhor e do mais elevado de si mesmos (o que implica, claro, centrarmo-nos mais nas necessidades dos outros do que nas nossas).

Parece-me ser também esta a intenção do Papa Francisco, nesta encíclica, que passa por também suscitar «o sonho de uma sociedade fraterna».
Julgo ser importante fazermos nosso este sonho; ou, pelo menos, têrmo-lo sempre presente no nosso espírito, à medida que vamos lendo este texto. Porque, assim, é mais fácil decidir em consciência o que as palavras lidas vão gerar, fazer crescer, alimentar e desenvolver no mais íntimo de nós próprios.

Finalmente, questiono-me se, para haver fraternidade, terá de haver uma «harmonia com todos.» Não penso assim. A fraternidade constrói-se em cada dia trabalhando juntos para um bem comum a todos. E isso é melhor feito com a contribuição variada e, às vezes, conflituosa de toda a gente. Acredito que estes conflitos (desde que sejam de ideias e não se tornem pessoalizados) podem trazer uma maior riqueza ao projeto comum. 

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 3.

 


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Sem fronteiras

3. Na sua vida [de São Francisco Assis], há um episódio que nos mostra o seu coração sem fronteiras, capaz de superar as distâncias de proveniência, nacionalidade, cor ou religião: é a sua visita ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito. A mesma exigiu dele um grande esforço, devido à sua pobreza, aos poucos recursos que possuía, à distância e às diferenças de língua, cultura e religião. Aquela viagem, num momento histórico marcado pelas Cruzadas, demonstrava ainda mais a grandeza do amor que queria viver, desejoso de abraçar a todos. A fidelidade ao seu Senhor era proporcional ao amor que nutria pelos irmãos e irmãs. Sem ignorar as dificuldades e perigos, São Francisco foi ao encontro do Sultão com a mesma atitude que pedia aos seus discípulos: sem negar a própria identidade, quando estiverdes «entre sarracenos e outros infiéis (...), não façais litígios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus». No contexto de então, era um pedido extraordinário. É impressionante que, há oitocentos anos, Francisco recomende evitar toda a forma de agressão ou contenda e também viver uma «submissão» humilde e fraterna, mesmo com quem não partilhasse a sua fé.

Uma extraordinária recomendação, sem dúvida. Porque este é o melhor caminho para convencer quem achamos que não tem razão e que está demasiado apegado a uma crença perniciosa.

Habitualmente, as pessoas nesta situação vivem no medo e é este que mais as faz agarrarem-se a uma ilusão.

Se as criticamos, ou mostramos de alguma forma que elas não pertencem ou estão em risco de deixar de pertencer ao grupo (seja dos amigos, seja das pessoas racionais, boas, etc.), então elas vão sentir-se ainda mais inseguras e ansiosas, pelo que aferrar-se-ão ainda mais à sua crença (que, aliás, surgiu na sua mente para lhes aliviar o mal-estar).

Se lhes apresentamos provas de que a sua crença está errada, cria-se-lhes uma dissonância cognitiva que as pessoas muitas vezes (principalmente, se a crença é profunda e forte) resolvem aderindo ainda mais acriticamente à crença original, negando vivamente quaisquer evidências contrárias.

Então, segundo a Psicologia, como conseguir mudar a opinião dos outros? Ouvindo-os plenamente, mostrando um interesse genuíno em compreender, aceitando o que nos é dito, fazendo perguntas abertas sobre o que nos suscita realmente a curiosidade e que possam levar o outro a refletir (mas sem crítica nem agressividade, seja explícita, seja escondida).

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 2.

 


(5)

2. Este Santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que me inspirou a escrever a Encíclica Laudato si’, volta a inspirar-me para dedicar esta nova encíclica à fraternidade e à amizade social. Com efeito, São Francisco, que se sentia irmão do Sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram da sua própria carne. Semeou paz por toda a parte e andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos últimos.

Esta encíclica é dedicada à amizade social porque há muitas outras amizades, por exemplo, as políticas ou as laborais, eivadas de interesses vários. Não deve ser dessas que o Papa quer tratar aqui. No entanto, acredito que a amizade social pode ser uma “cúpula” que acolha e torne mais elevados todos os outros tipos de amizade.

Se não nos sentimos naturalmente irmãos do sol, do mar, do vento e da grande diversidade de seres vivos, mas desejamo-lo, podemos fazer deste pensamento o nosso objeto de meditação: imaginando-nos irmãos de todos estes elementos, vivos e não vivos, consciencializando as nossas emoções e sentimentos subsequentes, expandindo-os e deixando-os impregnar o nosso ser até ao mais fundo de nós.

Há uma profusão de emoções suscitadas por esta meditação, mas aqui destaca-se com razão o sentimento de paz. Isto porque o sentimento de união profunda com o mundo acalma o nosso sistema neurológico de emoções focado na ameaça e no perigo, ativando simultaneamente o sistema focado na segurança, na tranquilidade e na afiliação. 

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 1.

 


Paulinas Editora, 2020


O Papa Francisco, com a sua Carta Encíclica sobre a Fraternidade e a Amizade Social, Fratelli Tutti, assinada a 3 de Outubro de 2020, desafia-nos a tod@s a refletir sobre a nossa humanidade comum e a encontrar, em conjunto, novas vias para a tornar mais real.


(5)

1. «FRATELLI TUTTI»: escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor a Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, «o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si». Com poucas e simples palavras, explicou o essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita.

Este desafio da fraternidade penso que é dirigido, primordialmente, a nós que estamos em maior posição de poder e com mais recursos, relativamente àqueles que estão mais destituídos de ambos.

Porém, temos que estar atentos para não cedermos à ilusão de, irrealisticamente, atribuirmos aos destituídos riquezas, benefícios e poder que eles realmente não têm – notemos, por exemplo, a forma como muitas pessoas julgam erradamente a globalidade dos ciganos.

No sentido contrário, dos fracos para os fortes, será mais questionável e teremos de ter mais cuidado: deverei amar quem me agride, me oprime, me explora e me subjuga?

O Mahatma Gandhi responderia claramente que sim, mas (atenção!) com o dever rigoroso de esse amor incluir tanto uma vontade inflexível, como uma ação sem desvios, direcionadas a ajudar o outro a alcançar o melhor de si mesmo (levando a que, assim, ele pare de fazer mal).

Julian Barnes – O Papagaio de Flaubert

  Quetzal, 2019 Julian Barnes é o mais continental dos escritores anglo-saxónicos. Entre outras coisas, vê-se isso pelo fascínio que ele dem...