quarta-feira, 1 de maio de 2019

Arundhati Roy, “O Deus das Pequenas Coisas”

Edições ASA, 2000 (livro é de 1997)

É a história da ruína de uma família e dos seus membros, vista sob várias perspetivas. Como um contexto social rígido e opressivo leva à destruição. Como os indivíduos, cada um por si, através dos seus comportamentos destrutivos e violentos (basta haver um que seja violento…), também contribuem para isso. Como as crianças veem e vivem isto tudo.

Mundo rígido de castas (164 – «Os Demónios da história (…). Onde as Leis do Amor estipulam quem deve ser amado. E como. E quanto.» – Uma (quase) Pré-História assustadora para nós, ocidentais (mas com os nossos próprios demónios também).

O social a esmagar o indivíduo. Ou o indivíduo se conforma e, no fundo, destrói-se a si mesmo (Baby Kocharamma). Ou se rebela, e várias hipóteses surgem: ou constitui uma ameaça e é destruído (Velutha); ou não chega a constituir uma ameaça e fica sozinho (Ammu e Estha); ou foge (Rahel). Ou seja, quando o social é opressivo, ficam todos sozinhos e a sofrer.

Alguns comportamentos destrutivos acionados por mecanismos de defesa inconscientes:

  • Baby Kocharamma não teve a vida que desejava, conformou-se, substituiu a realidade por fantasias – Fantasia Autista – e foi-se destruindo lentamente e, daí, nasceu um profundo ódio aos outros e à vida que a “matou”. Como esse ódio inunda tudo à sua volta, passa a vida a procurar envenenar a vida dos outros.
  • Baby Kocharamma tem medo de soltar a sua raiva (nascida do medo) sobre o manifestante e vira-a contra Velutha – Deslocamento.
  • Estha sabe que fez algo de inaceitável e nega que Velutha, o Velutha que ele amava, fosse ele realmente, mas diz que é um irmão desconhecido – Negação. Quando chega a adulto, já não pode sustentar mais esta ilusão e pune-se com um silêncio autoimposto. 


Relato memorialístico feito por Rahel, principalmente, e por Estha, entremeado por alguns momentos do presente que mostram as consequências do que se passou há anos atrás. Porque é uma memória de crianças, surgem intrusões, ilusões, mudanças abruptas de lugar e de tempo, tudo envolto por uma nuvem de sonho e de irrealidade.

Este é um livro essencialmente de e sobre a infância, pois é quase todo contado do ponto de vista de quando eram crianças (repare-se que, em adulto, Estha não fala). É fácil empatizar e sentir tristeza porque nos apercebemos de como os adultos se esquecem facilmente do que é ser criança, o que faz com que ser-se criança possa constituir uma experiência especialmente assustadora.

(pág. 175-176)
«Só agora, passados todos estes anos, é que o olhar adulto de Rahel reconheceu a ternura de tal gesto. Um homem adulto recebendo três guaxinins, tratando-os como se fossem verdadeiras damas. Sendo instintivamente cúmplice da ficção por eles conspirada, cuidando de não a aniquilar com desleixo de adulto. Ou com afeto. Afinal de contas, é tão fácil estilhaçar uma história. Quebrar a cadeia de pensamentos. Destruir o fragmento de um sonho transportado com tanto cuidado como se tratasse de uma peça de porcelana. Deixá-lo existir, viajar com ele, como Velutha fez, é de longe a coisa mais difícil.»
Tão fácil criar dor, principalmente numa criança. Mas também nos adultos que não assassinaram a criança que têm dentro de si, até mesmo quando ela está adormecida.
A extrema importância das palavras, principalmente com as crianças. Repare-se como toda a tragédia se desenvolve pelos atos, mas principalmente pelas palavras que são ditas, muitas vezes sem pensar. Às vezes, palavras más, duras e encolerizadas: Ammu que leva as crianças a fugirem e a Sophie a morrer; Baby Kocharamma que leva Velutha à morte.
Este relato memorialístico mostra como as crianças não só não esquecem, como ampliam o seu significado e o seu alcance (Arundhati Roy usa maiúsculas e hífens para acentuar isto), como veem tudo muito mais dramático do que na realidade é («A mãe gostava dela um pouco menos», escrito em itálico para mostrar o alarme sentido por Rahel).

Mais uma vez, o poder da linguagem: Tocáveis e Não-Tocáveis – isto não existe. Ou existe tanto como “altos” e “baixos”, adjetivos aos quais decidimos não associar ideias mais graves em termos de julgamento e condenação.

As coisas visíveis são as Pequenas Coisas. Os segredos e tabus, preconceitos e raivas, etc. são as Grandes Coisas (133 – «só as Pequenas Coisas acabam por ser ditas. As Grandes Coisas permanecem latentes lá dentro» e 161 – idem). Note-se que, segundo a terapia familiar, são os segredos e tabus nas famílias os principais responsáveis pela destruição das relações e pela disseminação do caos.

(pág. 200)
«- Ammu, quando se está feliz num sonho, isso conta? – perguntou Estha.»
Qual a diferença entre ser feliz num sonho e ser feliz na vida real? 1º, num sonho, nunca sabemos que somos felizes, na vida real podemos sabê-lo. Semelhança: tanto no sonho como na vida real, a memória da felicidade conforta-nos e influencia-nos. 2º, o sonho passou e com ele a felicidade, deixando-nos um pouco desamparados e fora do nosso equilíbrio habitual; na vida real podemos prolongar, aprofundar e enriquecer a felicidade.

Velutha é o Deus das Pequenas Coisas. 1º, porque é ele que, com pequenas contribuições, vai mantendo a casa e a fábrica a funcionar, ao mesmo tempo que distribui pelos outros a sua alegria e o seu amor. 2º, porque é ele que, instrumento talvez involuntário do destino (eu diria temerário, dado não sentir praticamente nenhum alerta do perigo – ou são os irmãos, que estão a contar a história, que não deram conta do susto dele, e é por isso que não sabemos dele), permite que se dê início ao movimento da destruição, sua, da sua família e dos gémeos e família. Ammu também, mas ele é, no fundo, a charneira do segredo que leva à destruição de todos.

Velutha é um Deus, mas é também A Vítima. Paralelismos com Cristo são interessantes, vindos de uma indiana: trata-se de um deus e de um inocente; que ajuda as pessoas em pequenas coisas (nada de grandes coisas, como a política, por exemplo); que sabe lidar bem com crianças, sendo extremamente delicado com elas; que é traído por alguém próximo; Estha nega-o ; que é julgado, condenado e morto de forma violenta para salvar, não a humanidade mas, neste caso, a vergonha da família.
Não sei se Arundhati Roy teve consciência de usar este mito cristão no seu livro.

(pág. 218) Compulsão à Repetição:
«Uma vez fora de casa, Maragaret Kochamma deu consigo a transformar-se exatamente no tipo de mulher que os pais queriam que ela fosse. Confrontada com o Mundo Real, agarrava-se nervosamente às velhas regras guardadas na memória e não se podia revoltar contra mais ninguém a não ser contra ela própria.» – por isso, a rebeldia pode ser o outro lado da moeda do conformismo.

Trata-se de um livro complexo e riquíssimo, cuja leitura não é muito fácil. Porém, como diz Vergílio Ferreira, o truque para ler um livro difícil é perceber primeiro o tema (ou, na minha versão pessoal desta ideia, perceber primeiro quem está a falar; a seguir, quem são as personagens e como se relacionam; depois perceber quais são as intenções do autor ao escrever o que escreveu e como escreveu). Descoberto isso, a leitura torna-se agradável.

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