quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

José Saramago, Memorial do Convento

Memorial do Convento (1984), 8ª ed. Lisboa: Caminho.

 

O mais atrativo neste livro é a ironia muitas vezes presente, que se dirige ora à religião (principal alvo que ele raramente perdoa), ora à crítica social, ou ainda a outras áreas humanas. Curiosamente, quase sempre, com um olhar compreensivo sobre as pessoas, mesmo as mais poderosas ou más. Porque ele confere às personagens do povo uma dignidade e uma nobreza que retira aos fidalgos e aos homens do clero; apesar de estes últimos serem também abrangidos pela sua compaixão.

(233 e 242) Mas é nas personagens do povo que reside a sua preferência. Aliás, ele faz questão de até referir os nomes de gente anónima, mas corajosa, que são esquecidos e nunca lembrados e que JS faz questão de registar e de contar a sua história. Quase vinte anos depois, Luís Sepúlveda também publica um livro, As Rosas de Atacama (HistóriasMarginales, no título original), em que conta as histórias de pessoas não vulgares, mas que nunca seriam contadas por ninguém.

Assim, neste livro, ao se juntar a inteligência, o humor e a compaixão pelas personagens, somos completamente apanhados pela sua leitura.

 

Saramago pega em provérbios e citações (literárias muitas vezes, das quais muitas não se dá conta) e distorce-os, às vezes com um fim humorístico (94 – quem vai à guerra empadas leva, das freiras que reclamavam), outras vezes com intuitos de suscitar uma reflexão sobre ideias adquiridas (91 – não vão os caminhos todos dar a Roma, mas ao corpo).

 

Com facilidade e fluidez, passa de um registo de relato objetivo para um registo humorístico. Ou para um registo poético, às vezes extraordinariamente simples. Neste último caso, por exemplo, (96) enfim estas pazes com a França estão feitas, agora venham as outras com os mais países, Mas nenhumas me tornam a dar a mão que perdi, diz Baltasar, Deixa lá, tu e eu temos três mãos, isto responde Blimunda. Ou (109) Deite-me a sua bênção, minha mãe, Deus te abençoe, meu filho, não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos.

 

Pontuam a narrativa reflexões intercaladas e diálogos filosóficos a propor princípios gerais muito interessantes (e, muitas vezes, melancólicos).

Das primeiras, esta que incide na matemática e é muito interessante: (296) sem falar que o número é de todas as coisas que há no mundo a menos exacta, diz-se quinhentos tijolos, diz-se quinhentos homens, e a diferença que há entre tijolo e homem é a diferença que se julga não haver entre quinhentos e quinhentos, quem isto não entender à primeira vez não merece que lho expliquem segunda. Ou ainda: (339/340) Não é possível que Blimunda tenha pensado esta subtileza, e daí, quem sabe, nós não estamos dentro das pessoas, sabemos lá o que elas pensam, andamos é a espalhar os nossos próprios pensamentos pelas cabeças alheias e depois dizemos, Blimunda pensa, Baltasar pensou, e talvez lhes tivéssemos imaginado as nossas próprias sensações,

Dos segundos, entre rainha e infanta (313/4): só a vontade de el-rei prevalece, o resto é nada, Então é nada esta infanta que eu sou, nada os homens que vão além, nada este coche que nos leva, nada aquele oficial que ali vai à chuva e olha para mim, nada, Assim é, minha filha, e quanto mais se for prolongando a tua vida, melhor verás que o mundo é como uma grande sombra que vai passando para dentro do nosso coração, por isso o mundo se torna vazio e o coração não resiste, Oh, minha mãe, que é nascer, Nascer é morrer, Maria Bárbara.

 

Saramago vai usando uma linguagem popular alternando com a mais erudita e antiga, num registo coloquial, aparentemente simples, mas na verdade muito complexo e difícil de manter com coerência. O que se torna extraordinário de conseguir sem falhas num livro com 400 páginas.

Nota curiosa: (339) Porém, de pompas reais temos nós avonde: Termo medieval e atualmente algarvio.

 

Pormenor da voz do narrador: nem sempre é um desconhecido (às vezes, outras vozes mais ou menos identificadas tomam conta da narrativa, por exemplo, Sebastiana Maria de Jesus, mãe de Blimunda - 52), nem sempre é omnisciente (mas muitas vezes é). Às vezes, esta voz convida-nos a estarmos todos presentes na ação e a sermos todos narradores. Mais uma estratégia a dar mobilidade e vivacidade ao relato.

 

Muito interessante o simbolismo das “vontades”. Numa ida ao dicionário, alguns dos significados desta palavra incluem: poder de agir livremente, firmeza na decisão e constância na execução, desejo; intenção; determinação; deliberação, ânimo; coragem, empenho; interesse. Particularmente adequado à finalidade de fazer voar a passarola.

 

As descrições extensas às vezes cansam, mas é esse o papel do historiador: fazer relatos objetivos e pormenorizados do que efetivamente se passou. E Saramago assume muitas vezes esse papel.

Este livro usa o passado para iluminar com uma luz negra o presente, pelo que não me sinto confortável a lê-lo. Mas ele é acutilante e certeiro na crítica social que faz e que pode ser lida com proveito nos dias de hoje. Por exemplo, em (285), onde põe num prato da balança as grandes obras do regime e no outro a miséria humana, recorrendo a uma ironia subtilíssima.

 

Dois aspetos menos positivos que a leitura deste livro me suscitou.

 

Na primeira metade do livro, JS recorre ao realismo mágico que já não aprecio muito. Por isso, achei mais apelativa a segunda metade.

 

O final desapontou-me: qual o sentido ou lógica de Baltasar Blimunda encontrar Baltasar num auto de fé? Sabemos que naquele dia, mal chegasse a noite, a aeronave despenhar-se-ia, pois ela voava pela força dos raios solares. Que ele tivesse morrido na queda, seria aceitável. Ou que Blimunda o encontrasse num hospital, paralítico pela queda ou até a morrer. Assim, não é verosímil (e falo de uma verosimilhança literária). Na verdade, Saramago não dá explicação nenhuma. Ainda se Blimunda, na sua busca, encontrasse pessoas que tivessem ouvido algo acerca da passarola caída ou de Baltasar, mas nada, nunca ninguém ouviu nada. A única explicação que me ocorre é Baltasar ter caído no pátio da Inquisição, ninguém ter visto nada, ter sido logo preso (por isso, não pôde procurar Blimunda e nunca mais foi visto) e, ao fim de nove anos, secretamente condenado. Mas isto é forçar demasiado a nossa credulidade.

 

A seguir, incluo algumas citações muito divertidas no âmbito da ironia e do humor, a maior parte relativas à religião cristã.

 

(17) Ironia

D. Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e fria, que mesmo tendo aquecido debaixo do cobertor logo arrefece ao ar gélido do quarto, e el-rei, que já cumpriu o seu dever, e tudo espera do convencimento e criativo esforço com que o cumpriu, beija-lha como a rainha e futura mãe, se não presumiu demasiado frei António de S. José. É D. Maria Ana quem puxa o cordão da sineta, entram de um lado os camaristas do rei, do outro as damas, pairam cheiros diversos na atmosfera pesada, um deles que facilmente identificam, que sem o que a isto cheira não são possíveis milagres como o que desta vez se espera, porque a outra, e tão falada, incorpórea fecundação, foi uma vez sem exemplo, só para que se ficasse a saber que Deus, quando quer, não precisa de homens, embora não possa dispensar-se de mulheres.

 

(22) Humor

Saíram logo alguns religiosos às estradas de em torno, repartidos em patrulhas, que se apanham o ladrão não se sabe o que misericordiosamente lhe fariam, mas não deram nem com o rasto dele,

 

(61) Humor

E para que alguma coisa se fosse adiantando entretanto, [João Elvas] estendeu a mão à esmola, primeiro a um fidalgo que de boa maré lha deu, depois, por distracção, a um frade mendicante que passava exibindo uma imagem e oferecendo-a ao ósculo devoto, com o que João Elvas acabou por largar o que tinha recebido. Não me cair um raio em cima, será pecado praguejar, mas alivia muito.

 

(95) Ironia

(...) ao todo cento e trinta e sete pessoas, que o Santo Ofício, podendo, lança as redes ao mundo e trá-las cheias, assim peculiarmente praticando a boa lição de Cristo quando a Pedro disse que o queria pescador de homens.

 

(150) Ironia

(...)  isto é sendo o Corpo de Deus, trouxe cada um no seu próprio corpo o que de melhor tinha em casa, a roupinha de ver ao Senhor, que tendo-nos feito nus só vestidos nos admite à sua presença, vá lá a gente entender este deus ou a religião que lhe fizeram,

 

(274) Humor

No dia seguinte a casa tem nova inquilina. A enxerga é a mesma, os trapos nem foram lavados, um homem bate à porta e entra, não há perguntas a fazer nem respostas a dar, o preço é conhecido, desaperta-se ele, ela levanta as saias, gemeu ele o seu gozo, ela não precisa fingir, estamos entre gente séria.

 

Um livro extraordinário e muitíssimo bem escrito, um esforço espantoso e bem conseguido da arte literária!

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Reviver o Passado em Brideshead (1981) - Uma Revisão


Cada vez que vejo esta série (baseada na obra homónima de Evelyn Waugh), faço-o com um olhar, uma abordagem diferente.

Desta feita, duas coisas se me impuseram. Primeiro, que esta é uma história infinitamente triste: uma história de derrotados, falhados, solitários, destituídos, infrutíferos, etc. Acentuada pela voz, que agora me surgiu como arrefecidamente desolada, de Jeremy Irons/Charles Ryder.

Aliás, antes, pensava que Ryder era a grande figura deste filme. Agora, não. Ryder é o aedo, o cego (em muito mais do que um sentido) que canta a história (a forma como Jeremy Irons lhe dá voz é tão encantatória como se fosse um canto).

A grande figura, aquela que atravessa todo o filme desde praticamente o início de tudo, é Sebastian/Anthony Andrews. Ele está sempre presente, em realmente todos e em cada um dos episódios.

Nos primeiros, fisicamente. Depois, nas conversas. E, finalmente, ele aparece sob formas subtis, sugeridas, nada explícitas: nos trejeitos, no estilo leve e encantadoramente humorístico de Julia (por exemplo, no barco, quando recebe as rosas de Ryder) e de Lord Marchmain (quando monologa com a família durante um jantar, por exemplo); ou na leveza afetuosa da Nanny Hawkins.

 

Sebastian é de tal forma uma presença (Anthony Andrews brilhante) que me pergunto o que representa ele de tão importante e central.

Primeiro, talvez a busca de uma leveza congregadora de afetos, nunca reconhecida pelos outros (incluindo por Ryder) e, portanto, no limite para sempre falhada. Daí ele procurar um seu sucedâneo na bebida, a companhia capaz, não de preencher a sua solidão, mas de a aliviar; porém sempre em direção à leveza.

Sebastian que tem em si uma fonte imensa de generosidade e de compaixão, expressas quase sempre de uma forma delicada e, mais uma vez, encantadora. Exceto no fim, ao cuidar de Kurt, que é absolutamente incapaz de orientar a sua vida sozinho, mas que explora Sebastian de forma grosseira, obrigando este de certa forma a ser generoso e compassivo agora de forma também grosseira.

Sebastian, cujo encanto tão perspicazmente diagnosticado por Anthony Blanche, é o mais saudável de toda aquela família. Daí ser ele o que mais terrivelmente sofre com a disfuncionalidade da família. Mostrando que o sofrimento intenso dificilmente torna as pessoas mais fortes ou mais construtivas. Pelo menos, não o tornou a ele. Mas que, apesar de tudo, até ao fim, não foi capaz de destruir a sua capacidade de ser amado e querido por quem era contactado por ele.

 

Ryder, por outro lado, é um órfão, daí Sebastian o ter adotado.

Orfão realmente, abandonado pela mãe e com um pai terrível de ironia e de ausência de afeto. E, como ele admite algures, sem ter vivido uma infância até conhecer Sebastian.

Na verdade, órfão do mundo, pois ele atravessa a vida sem perceber nada das pessoas com quem se dá, mas procurando mostrar que está por dentro. É uma figura verdadeiramente patética, que chega a dar pena até mesmo quando nos irrita com a sua pretensa auto-suficiência.

É uma pessoa perdida, muito mais perdida do que Sebastian. Porque, na sua incapacidade de compreender, nem sequer chega a saber como cuidar das pessoas com quem se relaciona (ao contrário de Sebastian): o amigo, a mulher, os filhos, Julia, Hooper – todos são a face visível do seu fracasso em cuidar. Incluindo a falha em cuidar de si próprio. A sua conversão final pouco mais é do que a admissão da sua total derrota, que ele acabou de verbalizar a Hooper no fim: ficamos a saber que, a partir daí, apenas lhe restará a ilusão de um deus para se sentir cuidado.

 

Ryder e Sebastian são então as duas faces de uma solidão inconsolável. A de Ryder, sombria porque nasce da absoluta ausência de empatia, sempre patente esteja ele com quem estiver. A de Sebastian, luminosa, porque ele a ilumina com a sua generosidade e desamparo. É com Sebastian que nós ficamos, acompanhados pela resplandecente banda sonora de Geoffrey Burgon e por uma outra música de fundo dada pela voz de Jeremy Irons.



Julian Barnes – O Papagaio de Flaubert

  Quetzal, 2019 Julian Barnes é o mais continental dos escritores anglo-saxónicos. Entre outras coisas, vê-se isso pelo fascínio que ele dem...