domingo, 28 de março de 2021

Mia Couto, O Último Voo do Flamingo

 


Editorial Caminho, 2000


(17)

Avisado estou: atrás é onde melhor se vê e menos se é visto. Certo é o ditado: se a agulha cai no poço muitos espreitam, mas poucos descem a buscá-la.

À maneira de Saramago, Mia Couto cria e reinventa ditos populares e provérbios. Mais exemplos que me agradaram:

(18)

Homem mucoso, subserviente - um engraxa-botas. Como todo o agradista: submisso com os grandes, arrogante com os pequenos. O fulano me fingia desconhecer, ocupado em suas superiores aparências. Ainda tentei um aperto de mão, mas logo ele foi atalhando o tempo. O burro, na companhia do leão, já não cumprimenta o cavalo.

(19)

Ouvimos, calamos e fazemos de conta que, calados, obedecemos.

(A mim rapidamente me transportou para a Cantata De Paz, de Sophia de Mello Breyner Andresen: Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar)

 

(43)

Sem que desse conta eu me abria e confessava antigas lembranças ao estrangeiro. Vantagem de um estranho é que confiamos essa mentira de termos uma só alma.

Sim, quando contamos a nossa história a outros, fazemo-lo como se fosse uma só história e como se fossemos uma só pessoa. Na verdade, várias histórias fluem simultaneamente: o que eu faço, o que eu digo, o que eu olho, o que dou atenção, o que penso, o que sinto, e talvez mais, mais.

Ao mesmo tempo, este “eu” não é um, mas vários (e não, não são apenas os três – porquê sempre três? – de que a psicologia normalmente fala: consciente, pré-consciente e inconsciente; superego, Ego e Id; eu conceptualizado, eu como processo de contínua autoconsciencialização e eu observador(1); Exilados, Gerentes e Bombeiros (classes de partes protetoras da teoria dos Sistemas Familiares Internos / Internal Family Systems)(2); etc., etc.)

(1)Hayes, Steven C. (2005). Get Out of Your Mind and Into Your Life: The New Acceptance and Commitment Therapy / Steven Hayes & Spencer Smith. Oakland: New Harbinger Publications, Inc., p. 107

(2)Richard C. Schwartz (2001). Introduction to the Internal Family Systems Model. Oak Park: Trailheads Publications, p. 89.

 

(47)

A vida é assim: peixe vivo, mas que só vive no correr da água. Quem quer prender esse peixe tem que o matar. Só assim o possui em mão. Falo do tempo, falo da água.

Tudo o que é verdadeiramente vivo, quando o tentamos prender, até mesmo por algo tão volátil como as palavras, principia a morrer. Por exemplo, quando escrevo, tudo parece iluminado; depois, torna-se baço, obscuro e, algumas vezes, incompreensível.

Ou quando leio da segunda, da terceira vez, tudo tende a perder vida – aqui só sobrevive a grande obra que, lida infinitas vezes, é sempre uma nova obra que lemos de cada vez que a lemos. Exemplos? Para mim, Aparição, Manhã Submersa, Cântico Final, Para Sempre, no fundo, todos os livros de Vergílio Ferreira (que ando há mais de 40 anos a (re)ler). Como esta é a segunda vez, e talvez não seja a última, que leio este livro de Mia Couto, agora com um encantamento muito mais acrescido, possivelmente também este autor será um exemplo a juntar a Vergílio Ferreira.

 

(48)

- A ideia lhe poise como a garça: só com uma perna. Que é para não pesar no coração.

A maior parte das ideias que nos cruzam o espírito não são propriamente criativas e libertadoras; logo, não são leves e, pior, tendem a grudar-se-nos. O seu peso vai ficando cada vez mais mortal. Se elas voassem…

 

(49)

Naquele tempo, não havia antigamentes. Tudo para mim era recente, em via de nascer.

Sim, o narrador está a falar da sua infância e juventude. Mas se nós pudéssemos ter esta atitude face à vida? Será possível consegui-lo? Talvez parcialmente. Não em todos os momentos. Não com aquela absoluta inocência da infância. Mas parcialmente. Talvez esta seja uma das fontes ou uma das vias que a vida nos disponibiliza para a felicidade.

 

(50)

A escola foi para mim como um barco: me dava acesso a outros mundos. Contudo, aquele ensinamento não me totalizava. Ao contrário: mais eu aprendia, mais eu sufocava. Ainda me demorei por anos, ganhando saberes precisos e preciosos.

Um excelente retrato do que a escola representa ou devia representar para a maioria das pessoas. Por muito que ela dê (e dá imenso), há sempre algo mais que temos de acrescentar com a nossa curiosidade, a nossa iniciativa e o nosso esforço.

 

(51)

A morte é uma brevíssima varanda. Dali se espreita o tempo como a águia se debruça no penhasco - em volta todo o espaço se pode converter em esplêndida voação.

Eu espero que a minha morte seja assim. A dos outros já sei que não me é.

 

(61)

Porque o ser negro - ter aquela raça - nos tinha sido passado como nossa única e última riqueza. E alguns de nós fabricavam sua identidade nesse ilusório espelho.

Exatamente! Se eu fundo a minha identidade no ser negro, como muitos cada vez mais querem fazer (até o tradutor de um escritor negro tem de ser negro!), então estou a dar razão aos racistas que defendem que cores da pele diferentes dão origem a identidades diferentes, logo a grupos humanos diferentes. E já sabemos onde é que isto nos leva: o ser humano, com a sua atração por hierarquias e competições, vai logo querer diferenciar entre os superiores e os inferiores. Ora os superiores têm uma tendência destrutiva para serem sempre os que têm mais força e mais poder… Vale a pena?

 

(81)

- Tenho saudades de minha casa, lá na Itália.

- Também eu gostava de ter um lugarzinho meu, onde pudesse chegar e me aconchegar.

- Não tem, Ana?

- Não tenho? Não temos, todas nós, as mulheres.

- Como não?

- Vocês, homens, vêm para casa.

Nós somos a casa.

(Extrato de um diálogo entre o italiano e Deusqueira)


(110)

- Outra coisa: o senhor pergunta demais. A verdade foge de muita pergunta.

Mia Couto usa também muito o paradoxo.

(111)

Os factos só são verdadeiros / depois de serem inventados. (Crença de Tizangara)

(145)

A vida é um beijo doce em boca amarga.

(Depoimento do feiticeiro)

 

(114)

(…) Os novos chefes pareciam pouco importados com a sorte dos outros. Eu falava do que assistia, ali em Tizangara. Do resto não tinha pronunciamento. Mas, na minha vila, havia agora tanta injustiça quanto no tempo colonial. Parecia de outro modo que esse tempo não terminara. Estava era sendo gerido por pessoas de outra raça.

(…) Aqueles que nos comandavam, em Tizangara, engordavam a espelhos vistos, roubavam terras aos camponeses, se embebedavam sem respeito. A inveja era seu maior mandamento. Mas a terra é um ser: carece de família, desse tear de entrexistências a que chamamos ternura. Os novos-ricos se passeavam em território de rapina, não tinham pátria. Sem amor pelos vivos, sem respeito pelos mortos. Eu sentia saudade dos outros que eles já tinham sido. Porque, afinal, eram ricos sem riqueza nenhuma. Se iludiam tendo uns carros, uns brilhos de gasto fácil. Falavam mal dos estrangeiros, durante o dia. De noite, se ajoelhavam a seus pés, trocando favores por migalhas. Queriam mandar, sem governar. Queriam enriquecer, sem trabalhar.

Uma constante neste livro, repetido de maneiras diferentes e a diferentes vozes, esta desilusão e este desencanto dolorosamente cínico com a governação e com as chefias.

 

(141)

Quando chegaram os da Revolução eles disseram que íamos ficar donos e mandantes. Todos se contentaram. Minha mãe, muito ela se contentou. Sulplício, porém, se encheu de medo. Matar o patrão? Mais difícil é matar o escravo que vive dentro de nós. Agora, nem patrão nem escravo.

- Só mudamos de patrão.

Este é um livro claramente político, sem deixar de ter muitas outras componentes. Mas aqui a voz mais presente ao longo de todo o livro parece ser a da revolta (política).

Esta ideia de que existe sempre um escravo à espreita dentro de nós talvez tenha uma base evolucionista: nós somos uma espécie muito social, facto fundamental para a nossa sobrevivência como espécie. Já que, individualmente, somos excessivamente frágeis em relação a um número demasiado grande de predadores. Ou seja, sem exceção, todos precisarmos muito uns dos outros para sobreviver.

 

(157)

Porque esses chefes deviam ser grandes como árvore que dá sombra. Mas têm mais raiz que folha. Tiram muito e dão pouco.

 

(158)

Falam muito de colonialismo. Mas isso foi coisa que eu duvido que houvesse. O que fizeram esses brancos foi ocuparem-nos. Não foi só a terra: ocuparam-nos a nós, acamparam no meio das nossas cabeças. Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós.

 

(184)

Porque aqui você precisa de calar a sua sabedoria para sobreviver. Conhece a diferença entre o sábio branco e o sábio preto? A sabedoria do branco mede-se pela pressa com que responde. Entre nós o mais sábio é aquele que mais demora a responder. Alguns são tão sábios que nunca respondem.

Eu demoro tempo a responder quando penso na pergunta. Quando sei alguma coisa, pouco ou mesmo nada, ou não ouvi bem a pergunta, é quando respondo mais depressa. Habitualmente, demoro mais quando sei muito.

 

(192)

- Nisso se engana. Não é a paz que lhe interessa. Eles se preocupam é com a ordem, o regime desse mundo.

- Ora, pai...

- O problema deles é manter a ordem que lhes faz serem patrões. Essa ordem é uma doença em nossa história.

Sim, a ordem que permite a omnipresença da injustiça e, principalmente, a possibilidade de os mais fortes continuarem a abocanhar impunemente o que é dos mais fracos; ou melhor, o que é de todos.

 

(193)

- Antigamente, queríamos ser civilizados. Agora queremos ser modernos.

Ou estar à moda. Ou ser adorado pelo grupo. Estamos a infantilizar-nos, cada vez mais adolescentes da vida, escolhendo não crescer, pensando talvez que enganamos a morte. Só nos enganamos a nós mesmos. E, infelizmente, também mais mal-educados e menos corteses – como adolescentes e, tal como eles, não necessariamente por mal.

 

 

Palavras proferidas por Mia Couto na entrega do Prêmio Mário António, da Fundação Calouste Gulbenkian, em 12 de junho de 2001

O último voo do flamingo fala de uma perversa fabricação de ausência - a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores.

Esse compromisso para com a minha terra e o meu tempo guiou não apenas este livro como os romances anteriores. Em todos eles me confrontei com os mesmos demônios e entendi inventar o mesmo território de afeto, onde seja possível refazer crenças e reparar o rasgão do luto em nossas vidas.

(…)

É uma resposta pouca perante os fazedores de guerra e construtores da miséria. Mas é aquele que sei e posso, aquela em que apostei a minha vida e o meu tempo de viver.

Lembro, a fechar, as palavras do feiticeiro Zeca Andorinho: “Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda há. E esse sol só pode nascer dentro de nós”.

 

Conclusões

A impressão dominante é a de um livro bonito, poético, embora carregado de tristeza, de desencanto e de desilusão.

Um livro claramente político, de denúncia e de revolta. E com razão: Moçambique é o 5º país mais pobre do mundo (mail da UNICEF Portugal recebido a 23/03/2021):

*Fonte: Banco Mundial, 2019

O recurso a uma linguagem poética, cheia de ternura, mas que ao mesmo tempo “abriga” a violência da traição dos compatriotas moçambicanos que prolongam a exploração do povo à boa maneira colonialista. Por isso, estamos sempre a oscilar entre o enternecimento e o horror. Escrita incómoda.

Mia Couto introduz nesta ficção por várias vezes a chaga do racismo: Estevão Jonas, o administrador, que se auto-apelida de “racista étnico”; Hortênsia, que se diz demasiado negra e por isso não foi levada; padre Muhanda contra o ódio aos mulatos; a rejeição do italiano por ser branco – mas não pelas mulheres, Temporina e Ana Deusqueira.

O que me leva a um outro tema deste livro: as mulheres. Sempre menos bem tratadas pelos homens, embora a esperança de Mia Couto numa mudança positiva pareça assentar principalmente sobre elas.

Aliás, há um misto de resignação e de medo neste livro, mas também de incitamento (principalmente, por via das mulheres, até a mulher do administrador) à intervenção, à mudança, acabando por se transmitir, assim, uma mensagem de esperança no futuro.



quarta-feira, 3 de março de 2021

1 - Clarice Lispector, A Hora da Estrela - Notas gerais

 https://aedmoodle.ufpa.br/pluginfile.php/305284/mod_resource/content/2/Lispector_1999_Estrela.pdf


(publicado no ano em que morreu, 1977, tinha 57 anos)


Nota prévia: As considerações sobre esta obra vão distribuir-se por três posts, dada a sua extensão. A ordem como vão aparecer ao leitor no blog acompanha a forma como eu as escrevi e desejo que sejam lidas.

 

Trata-se de um romance-reflexão, pois cada título, cada frase é um apelo suave de Clarice Lispector à nossa reflexão; tão suave que, na maior parte das vezes, numa primeira leitura, passa muita coisa despercebida. Além disso, não reflete até ao fim, até à resolução da reflexão, deixa nas nossas mãos continuar e concluir a reflexão. Por isso, às vezes, parece difícil a leitura.

Clarice não escreve a história, é a personagem Rodrigo que o faz. Pelo que se poderá pensar que Macabéa não existe, ou que existe em todos nós (como é sugerido no livro). Ou seja, Macabéa é uma criação e, portanto, um símbolo.

São também reflexões que não obedecem muitas vezes nem à racionalidade nem à lógica, andando por territórios mais ou menos indefinidos de uma forma que só posso chamar de livre. Por isso, tudo parece confuso e desorganizado. O que é intencional:

(43) Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos? Mas aí que está: esta história não tem nenhuma técnica, nem estilo, ela é ao deus-dará. Eu que também não marcharia [mancharia] por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa. Durante o dia eu faço, como todos, gestos despercebidos por mim mesmo. Pois um dos gestos mais despercebidos é esta história de que não tenho culpa e que sai como sair.

 

As reflexões partem de uma matriz que é o questionamento sobre a escrita, o escritor, a palavra, o real e a ficção: tudo o resto (e é muito!) nasce daqui. Porque a história de Macabéa praticamente não existe, ou, se existe, é completamente banal. Mas não é banal se considerarmos outras histórias, também a do escritor e a da escrita, por exemplo.

Mas ainda podemos acrescentar a história da própria Clarice que estamos sempre a tentar adivinhar atrás desta outras histórias. Adivinhar, até porque ela esconde-se por detrás de um escritor masculino, como que a querer criar uma distância entre ela e o narrador, para não confundirmos os dois.

 

Porque é escrita esta história?

(26) (…) preciso falar dessa nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela. (…) (26/27) Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de “força maior”, como se diz nos requerimentos oficiais, por “força de lei”.

Sim, minha força está na solidão. (…)

Clarice parece estar a dizer que a necessidade de escrever nasce da sua solidão que é também a de Macabéa. Será que podemos assumir que Macabéa é um dos alter egos da autora, por isso ela sufoca, ela acusa, e a única saída é esvaziar-se escrevendo?

 

Mas não se trata só de uma catarse, pois é indubitável que Clarice revela aqui uma chaga social: na figura de Macabéa vemos como a sociedade (principalmente, quando os direitos das crianças são letra morta e o ensino não é nem público nem obrigatório) encarcera e consome quem é pobre.

(23) Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiram como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?

Clarice alerta-nos, assim, para o desamparo dos mais desprotegidos.

No entanto, o nome de Macabéa sugere o símbolo de resistência a quem a quer destruir (Macabeus, Matatias pai e Judas Macabeu filho na resistência vitoriosa contra o Império Selêucida).

Embora, na Apresentação, Clarisse Fukelman diga: (13) O próprio nome adverte para um contrasenso, pois ela em nada se aproxima da índole heróica dos macabeus, povo guerreiro na história dos hebreus.

Não concordo. Pelo contrário, devo dizer que esta resistência foi um dos aspetos que mais me tocou nesta narrativa. Nem a morte chegou a derrotá-la! Admito, no entanto, que Macabéa seja a perfeita anti-heroína, verdadeira representante da nossa irrelevância numa sociedade onde as máquinas se vão sobrepondo a pouco e pouco ao humano. Assim, não é fácil encontrar a heroicidade não imediatamente evidente de Macabéa. Como diz Clarisse Fukelman: (12) Macabéa, em tudo e por tudo, é o oposto do herói épico. Sua trajetória e vida aponta para a inviabilidade dos grandes feitos na sociedade moderna.

 

Onde se percebe claramente a excecionalidade de Macabéa não é nas descrições que Rodrigo faz dela. Mas, sim, nos diálogos, onde ela revela uma inteligência ímpar e acutilante.

 

De um ponto de vista mais psicológico, este livro mostra também muito claramente como a infância condiciona e chega a determinar em muitos aspetos a idade adulta. Principalmente, as estratégias de defesa encontradas nessa época da vida que se irão mantendo, com adaptações, poucas, ao longo da vida.

 

Mas há um aspeto que mais me marcou nas duas leituras que fiz: a atração da autora pela fealdade. 

Clarice anda à volta da fealdade, como uma borboleta à volta da chama de uma vela. Fealdade («feiúra»), mas destinada a fazer brilhar a humanidade e a inocência de Macabéa (que a sociedade que a rodeia trata como culpa) como é na noite escura que uma luz mais brilha, na formulação feliz de Vergílio Ferreira?

Está aqui, de certa forma, o mito de Pigmalião, mas de alguma forma invertido. O mito é o do artista-escultor que se enamora pela sua obra-estátua, desejando obsessivamente que ela adquira vida. O estranho é aparecer aqui com uma semelhança apenas inicial, talvez só para podermos identificar o mito. Rodrigo é Pigmalião e Macabéa é a sua criação que ele ama, claro. A partir daqui, no mito, a estátua vive, na novela Rodrigo mata Macabéa. A estátua é belíssima, Macabéa é feia. Afrodite dá a vida, a vidente arrasta-a para a morte.


É verdade que o projeto de escrita de Clarice pode ser este: fazer um relato emocionado, mas com contenção da emoção. (22) Bem, é verdade que também eu não tenho piedade do meu personagem principal, a nordestina: é um relato que desejo frio.

Só que uma coisa é um relato frio, outra são os insultos que o relato dirige a Macabéa. Eis alguns exemplos:

(33) Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem. (35) Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio. (…) Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia para quê, não se indagava. (…) (36) A mulherice só lhe nasceria tarde porque até no capim vagabundo há desejo de sol. (37) Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável. (…) dir-se-ia que havia brotado da terra do sertão em cogumelo logo mofado. (43) (…) ela era um acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal. (45) É que lhe faltava gordura e seu organismo estava seco que nem saco meio vazio de torrada esfarelada. (57) Você tem cara de quem comeu e não gostou, (…). (63) E como já foi dito ou não foi dito Macabéa tinha ovários murchos como um cogumelo cozido. (64) – Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer.

Não gosto desta linguagem crua, choca-me, usada para estar sempre a diminuir a personagem. Além disso, com esta linguagem carregada emocionalmente negativa, não será verdade que, assim, Clarice/Rodrigo falta à promessa de «um relato que desejo frio»?

É certo que, mais à frente, Rodrigo avisa e reconhece: (40) (Eu bem avisei que era literatura de cordel, embora eu me recuse a ter qualquer piedade); e Eu bem sei que dizer que a datilógrafa tem o corpo cariado é um dizer de brutalidade pior que qualquer palavrão.

No entanto, depois, é capaz de expressões de enorme delicadeza: (54) – Olhe, você não reparou até agora, não desconfiou que tudo que você pergunta não tem resposta? / Ela ficou de cabeça inclinada para o ombro assim como uma pomba fica triste.

Aliás Rodrigo diz em (72) Sim, estou apaixonado por Macabéa a minha querida Maca, apaixonado pela sua feiúra e anonimato total pois ela não é para ninguém. Apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela.

Sabemos do lugar-comum de que se não faz arte com bons sentimentos. Não é verdade, claro, basta pensarmos em algumas canções e músicas: Grândola, Vila Morena; Beds are Burning; Biko; etc. Mas também é verdade que, desta forma, Rodrigo e Macabéa permanecem muito mais tempo nas nossas mentes por esta dualidade de amor e ódio de Rodrigo por Macabéa.

 

Ao ler este livro, surge-nos a sensação simultânea de estranhamento e familiaridade ao mesmo tempo? Sim, porque a história é banal, mas há muito que eu não entendo. Mas Clarice disse que gostava de não entender. E convida-nos talvez a participar desse gosto.


Estas são algumas leituras que me provocou este texto. Mas ficou-me a impressão de que algumas outras ficaram de reserva para surgirem em posteriores leituras (fiz duas seguidas; na verdade, Clarice diz, numa entrevista de 1977, a última que deu, que «Parece que eu ganho na releitura»). Aliás, porque não há a sensação de estar datado? Porque Clarice questiona aqui o humano no ser humano e isso é absolutamente intemporal na literatura.

Ou seja, fiquei com a impressão de que este é um texto que nunca se acaba realmente de ler. E que nunca desaparece da paisagem do nosso espírito…

2 - Clarice Lispector, A Hora da Estrela - Notas específicas a citações

 https://aedmoodle.ufpa.br/pluginfile.php/305284/mod_resource/content/2/Lispector_1999_Estrela.pdf


Apresentação (por Clarisse Fukelman)

(4)

(…) existe algo de novo para além do insólito prefácio, em forma de dedicatória, da frouxidão do enredo, da mescla de linguagem sutil com um tom desnudo e cru ou, ainda, da intimidade com que o choque social é apresentado.

Sim, não é pela história que nós ficamos presos a esta novela (uma semelhança com VF), porque ela praticamente não existe ou é completamente banal.

 

(4)

(…) estórias que se entrecruzam, como num acorde musical: a da vida de Macabéa, imigrante nordestina que vive desajustada no Rio de Janeiro; a do Autor do livro que, embora sem rosto definido, se dá a conhecer nos comentários que faz; e ainda a estória do próprio ato de escrever.

 

(4)

(…) múltiplas e complexas relações: entre escritor e seu texto, entre escritor e seu público, entre escritor e esta personagem tão distante do seu universo.

 

(6)

(…) “Tudo começa com um sim”, o narrador revela que sabe que as coisas se criam por um ato de vontade e de afirmação.

 

(7)

(…) condição essencial do ser: aprender a si mesmo inclui o confronto com o outro.

Embora isto vá contra o que diz a psicologia oriental.

 

(8)

(…) denuncia a mentira de uma palavra transparente, “verdadeira”, usada como forma de comunicação entre os homens e do homem consigo mesmo. Essa trajetória aproxima Clarice Lispector de outros escritores modernos, como Fernando Pessoa [e VF], que colocaram sob suspeita a comunicação direta.

 

(17)

(…) verbos dedicar e dedicar-se que etimologicamente significam, o primeiro deles, dizer para e o segundo, dizer através de si para.

 

 

Dedicatória

 

Quem escreve é a personagem Rodrigo S.M. (22)

 

(20)

Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque lhe falta resposta.

 

(21)

Tudo no mundo começou com um sim.

Toda a história começa com um sim?

 

(21)

Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.

“Escrevo-vos uma longa carta porque não tenho tempo de a escrever breve.” Voltaire

 

(21)

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.

A interrogação de Vergílio Ferreira

 

(21)

Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?

Por onde posso começar uma história, ainda que seja a minha, se eu sei que a genética tem um peso de 50% naquilo que sou e que faço? Onde está o início dos genes e onde está a história aí?

É verdade que suspeito que os cientistas avançam com o número demasiadamente redondo de 50% porque não sabem muito bem qual ele é, na realidade. Além disso, devem (e com razão) ter medo que seja mais e que isso dê razão aos que não querem ter limites para maltratar os outros. Podem falar de si próprios, dizendo que o fazem por causa dos seus genes (“Eu sou assim e não há nada a fazer”). Ainda podem alegar que, de qualquer modo, se os genes é que contam, então os outros safam-se ou não, tendo pouco a ver com o que lhes é feito (“Eles são assim”). Ou seja, podem ficar com uma dupla desculpa para a sua maldade.

 

(21)

A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique.

Vergílio Ferreira faz disto tema de romances, por exemplo, no Para Sempre.

 

(22)

Se há veracidade nela – é claro que a história é verdadeira embora inventada – que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro – existe a quem falte o delicado essencial.

Poeta fingidor? De qualquer modo, Clarice propõe aqui estimular a nossa empatia e diz como o podemos fazer.

 

(22)

(…) uma história com começo, meio e “gran finale” seguido de silêncio e de chuva caindo.

"Há dias em que a melancolia chove dentro de nós como num pátio interior, atapetado de jornais velhos. Não se ouve, não se sente - mas rebrilha na sujidade densa." Retalhos da Vida de um Médico – Fernando Namora

 

(23)

Porque há o direito ao grito.

Então eu grito.

Tantas interseções e tangentes à obra de Vergílio Ferreira!

 

(23)

Aliás – descubro eu agora – eu também não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.

Ironia de Clarice: lacrimejar, até pode, mas qualquer pessoa que considere o mundo real com objetividade sabe que o homem se deixa arrastar mais pelas emoções do que as mulheres: estão aí os assassinatos por ciúmes a mostrá-lo!

 

(24)

Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases.

Vergílio Ferreira refere muitas vezes o espírito que atravessa os materiais da obra de arte e que vai muito para além destes.

 

(24)

Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido, e ao escrever me surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino. Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?

Eu já me perguntei, sim. É por isso que, às vezes, precisamos de saber que outros passam pelo mesmo que nós, para não nos sentirmos uns monstros esquisitos. Ou precisamos de baixar o nosso “eu ideal” para um tamanho mais realista. Ou, no caso de realmente falharmos muito, termos um pouco mais de compaixão connosco próprios.

 

(25)

Quem se indaga é incompleto.

Ou o contrário? Ou ambos? A interrogação, marca do especificamente humano, como Vergílio Ferreira defendia.

 

(25)

Sei que cada dia é um dia roubado da morte.

Então a pergunta é: o que posso fazer deste dia, o que é importante para mim hoje?

 

(25/26)

Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo. E o que escrevo é uma névoa úmida. As palavras são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais, estalactites, renda, música transfigurada de órgão. Mal ouso clamar palavras a essa rede vibrante e rica, mórbida e obscura tendo como contratom o baixo grosso da dor. Alegro com brio. Tentarei tirar ouro do carvão. Sei que estou adiando a história e que brinco de bola sem bola. O fato é um ato? Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta.

Sempre as reflexões à volta da palavra e da sua ausência. No fundo, o que Clarice – ou Rodrigo – deseja é escrever o livro total, que inclua tudo.

 

(26)

Mas desconfio que toda essa conversa é feita apenas para adiar a pobreza da história, pois estou com medo. Antes de ter surgido na minha vida essa datilógrafa, eu era um homem até mesmo um pouco contente, apesar do mau êxito na minha literatura. As coisas estavam de algum modo tão boas que podiam se tornar muito ruins porque o que amadurece plenamente pode apodrecer.

Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa. Qualquer que seja o que quer dizer “realidade”.

Repito: cada frase é um apelo suave de Clarice à nossa reflexão. Tão suave que, na maior parte das vezes, numa primeira leitura, muita coisa passa despercebida. Aqui, desafia-se medo do novo, do que ainda não se começou a fazer; o sentido do tempo e da mudança como sendo pendular; os limites que nos surgem com o desafio associado de os ultrapassarmos; e natureza da realidade.

 

(26/27)

(26) (…) preciso falar dessa nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela. (…) (26/27) Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de “força maior”, como se diz nos requerimentos oficiais, por “força de lei”.

Sim, minha força está na solidão. (…)

Uma explicação do porquê da escrita deste livro. E talvez um programa: contribuir para mudar o mundo…

 

(27)

Quero acrescentar, à guisa de informações sobre a jovem e sobre mim, que vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento.

 

(27)

Sou um homem que tem mais dinheiro que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo desonesto. E só minto na hora exacta da mentira. Mas quando escrevo não minto.

Outra vez o poeta fingidor? O que é irónico é que Clarice é mulher e escolheu deliberadamente um narrador masculino… então o que quererá dizer “não minto”? Que não é um Dan Brown ou a sua versão caseira Rodrigues dos Santos (que usam técnicas para “fisgar” o leitor, e pouco, muito pouco mais do que isso)?

http://arquivopessoa.net/textos/4234

 

(28)

De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu. Cuidai dela porque meu poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve por causa da esvoaçada magreza.

O que queria Clarice dizer: que a ficção cria a realidade, ou que a traduz, ou que a revela? Veja-se também como aqui talvez se exponha a intenção de conseguir alguma mudança no mundo.

 

(28)

(…) um dia, quem sabe, cantarei loas que não as dificuldades da nordestina.

Por enquanto quero andar nu ou em farrapos, quero experimentar pelo menos uma vez a falta de gosto que dizem ter a história. Comer a hóstia será sentir o insosso do mundo e banhar-se no não.

 

(29)

Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim. Tenho é que me copiar com uma delicadeza de borboleta branca.

Mais uma reflexão sobre a escrita: não inventamos nada, projetamo-nos naquilo que escrevemos – por isso, Vergílio Ferreira dizia que quem o queria conhecer devia era ler os romances, pois aí ele estava sem defesas.

 

(29)

Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse sempre a novidade que é escrever, eu morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui.

Uma outra profissão de fé relativa à escrita. Como interpreto a última frase: eu desejava ter na memória o que eu poderia ter sido mas que, na realidade, não fui, logo não posso ter na memória porque não aconteceu.

 

(30)

Por isso não sei se minha história vai ser – ser o quê? Não sei de nada, ainda não me animei a escrevê-la. Terá acontecimentos? Terá. Mas quais? Também não sei. Não estou tentando criar em vós uma expetativa aflita e voraz: é que realmente não sei o que me espera, tenho um personagem buliçoso nas mãos e que me escapa a cada instante que rendo que eu o recupere…

Reflexão sobre a escrita.

 

(31)

(…) palavra tem que se parecer com a palavra, instrumento meu. Ou não sou um escritor? Na verdade sou mais ator porque, com apenas um modo de pontuar, faço malabarismos de entonação, obrigo o respirar alheio a me acompanhar o texto.

Nova reflexão sobre a escrita.

 

(32)

(Vai ser difícil escrever esta história. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus. Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona).

Este sussurro é o espírito que se evola a partir dos factos nus e crus, e que atravessa as palavras e as imagens. Mas também pode ser o rasto que os livros de que gosto me deixam, como a cabeleira iluminada de um cometa no céu estrelado.

 

(32)

(…) brutalidade essa que ela parecia provocar com sua cara de tola, rosto que pedia tapa),

Porquê? Porque é que a inocência sem beleza e a falta de inteligência sem maldade provocam a fúria dos outros? Vi isto tantas vezes entre alunos, e entre alunos e professores… e até, tenho vergonha em confessá-lo, entre mim e alunos (sempre consciente destes impulsos e, chocado, a tentar reprimi-los)…

 

(38)

Rua do Acre para morar, rua do Lavradio para trabalhar, cais do porto para ir espiar no domingo, um ou outro prolongado apito de navio cargueiro que não se sabe por que dava aperto no coração, um ou outro delicioso embora um pouco doloroso cantar de galo. Era do nunca que vinha o galo. Vinha do infinito até a sua cama, dando-lhe gratidão.

Linguagem tão evocativa da de Vergílio Ferreira. Um galo é referido abundantemente em Cântico Final que é de 1956, publicado em 1959. Ora, este livro de Clarice é de 1977 – tê-lo-á lido ela?

 

(39)

Teria ela a sensação de que vivia para nada? Nem posso saber, mas acho que não. Só uma vez se fez uma trágica pergunta: Quem sou eu? Assustou-se tanto que parou completamente de pensar. Mas eu, que não chego a ser ela, sinto que vivo para nada. Sou gratuito e pago as contas de luz, gás e telefone.

Às vezes, sinto isto também. E luto contra. O voluntariado é o meu instrumento principal. Ajudar a Adriana também.

 

(41)

Vez por outra ia para a Zona Sul e ficava olhando as vitrines faiscantes de jóias e roupas acetinadas – só para se mortificar um pouco. É que ela sentia falta de encontrar-se consigo mesma e sofrer um pouco é um encontro.

Tristeza e choro são movimentos em direção à consolação. Além disso, na alienação da realidade em que vivia dia após dia, o sofrimento podia dar-lhe talvez uma realidade mais real.

 

(42)

E tinha um luxo, além de uma vez por mês ir ao cinema: pintava de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das mãos. Mas como as roia quase até o sabugo, o vermelho berrante era logo desgastado e via-se o sujo preto por baixo.

Clarice difere de Vergílio Ferreira por andar tanto à volta da fealdade.

 

(43)

Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos? Mas aí que está: esta história não tem nenhuma técnica, nem estilo, ela é ao deus-dará. Eu que também não marcharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa. Durante o dia eu faço, como todos, gestos despercebidos por mim mesmo. Pois um dos gestos mais despercebidos é esta história de que não tenho culpa e que sai como sair.

A desculpar-se ou a justificar uma certa desorganização propositada dos elementos do romance?

 

(45)

(Quando penso que eu podia ter nascido ela – e por que não? – estremeço. E parece-me covarde fuga de eu não ser, sinto culpa como disse num dos títulos.)

Explicação para um dos títulos. Acho esta confissão comovente. Eu também senti medo perante a possibilidade de ser uma outra pessoa a viver em condições piores do que as minhas. E senti culpa por me acovardar.

 

(45)

Em todo caso o futuro parecia via a ser muito melhor. Pelos menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente. Sempre há um melhor para o ruim.

Pode esta afirmação constituir o fundamento de um otimismo desesperado?

 

(46)

Que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só.

Clarice de alguma forma repete esta ideia na entrevista de 1977.

 

(48)

O que se segue é apenas uma tentativa de reproduzir três páginas que escrevi e que a minha cozinheira, vendo-as soltas, jogou no lixo para o meu desespero – (cont.)

Muito interessante mais este recurso, a juntar ao da intercalação de “(explosão)”, para justificar a falta de brilho do encontro com aquele que virá a ser (48) (explosão) a primeira espécie de namorado de sua vida.

 

(49)

E Macabéa, com medo de que o silêncio já significasse uma ruptura, disse ao recém-namorado: (…)

 

(52)

Quando Olímpico lhe dissera que terminaria deputado pelo Estado da Paraíba,. ela ficou boquiaberta e pensou: quando nos casarmos então serei uma deputada? Não queria, pois deputada parecia nome feio. (Como eu disse, essa não é uma história de pensamentos. Depois provavelmente voltarei para as inominadas sensações, até sensações de Deus. Mas a história de Macabéa tem que sair senão eu estouro.)

Clarice brinca um pouco connosco? Põe um pensamento e, depois, diz que história não é de pensamentos? Ora, não é é de outra coisa!

 

(53)

Ainda não sei, só sei que eram de algum modo inocentes e pouca sombra faziam no chão.

Não, menti, agora vi tudo: ele não era inocente coisa alguma, apesar de ser uma vítima geral do mundo. Tinha, descobri agora, dentro de si a dura semente do mal, gostava de se vingar, este era o seu grande prazer e o que lhe dava força de vida. Mais do que ela que não tinha anjo da guarda.

Segundo Clarice, podemos ser vítimas e não sermos inocentes, não só porque de algum modo acabamos por vezes a participar no mal que nos foi feito, mas porque lhe respondemos com maldade e rancor. Concordo.

 

(61)

– Mas você sabe que se chama Macabéa, pelo menos isso?

– É verdade. Mas não sei o que está dentro do meu nome. Só sei que eu nunca fui importante...

– Pois fique sabendo que meu nome ainda será escrito nos jornais e sabido por todo o mundo.

Macabéa revela-se de uma inteligência lucidamente simples, muito mais brilhante que Olímpico que é absolutamente vulgar e pobre.

O que nos surpreende, pois Rodrigo cria-nos a expetativa do contrário, parecendo não perceber a pessoa que criou ou que existe à frente dos seus olhos (será porque Rodrigo está (72) apaixonado por Macabéa a minha querida Maca, apaixonado pela sua feiúra e anonimato total pois ela não é para ninguém. Apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela.?)

Na verdade, mais à frente, Rodrigo informa-nos que Macabéa (74/75) Tinha pensamentos gratuitos e soltos porque embora à toa possuía muita liberdade interior. Creio firmemente que esta liberdade é uma forma extrema de inteligência.

 

(72)

Quanto a mim, só sou verdadeiro quando estou sozinho.

Também tenho esta ideia… ilusória? Não sei mesmo. Mas se pensar que são as ações que me definem e revelam o que eu realmente sou (a existência precede a essência), então é mesmo ilusória – por exemplo, penso que sou corajoso e depois, no mundo e em ação, acobardo-me e vejo que não. Ah, mas talvez não seja o que eu penso de mim que é real, talvez seja apenas que, em solidão, pertenço-me mais a mim mesmo, sou menos influenciado, logo sou mais eu… ou não?

 

(77)

Eu uso essa palavra porque nunca tive medo de palavras. Tem gente que se assusta com o nome das coisas. Vocezinha tem medo de palavras, benzinho?

– Tenho, sim senhora.

– Então vou me cuidar para não escapulir nenhum palavrão,

Eu também tenho medo de palavras – é engraçado, não me recordo de Vergílio Ferreira referir este medo. Aqui Clarice parece ser mais consciente que Vergílio.

 

(85)

As coisas são sempre vésperas e se ela não morre agora está como nós na véspera de morrer, perdoai-me lembrar-vos porque quanto a mim não me perdôo a clarividência.

Para o caso de estarmos a assistir à morte de Macabéa de fora, Clarice “puxa-nos para dentro”, fazendo-nos sentir que estamos todos no mesmo barco.

3 - Clarice Lispector, segundo Vergílio Ferreira


Junto as referências que Vergílio Ferreira faz a Clarice Lispector na sua Conta-Corrente:


11 de Dezembro de 1977

(...) o que me diziam dela. Sabia que era bonita e que ela o sabia. Tinha mesmo, diziam -me, como mulher que se preza, mais vaidade nisso do que nos livros que escrevia. Há anos sofrera um desastre e ficou desfigurada com queimaduras. Fechou -se em si, não convivia com ninguém. Mandei-lhe uma vez um livro, não me respondeu. Foi pena. Creio que teríamos coisas a dizer. Havia na escrita dela, certa escrita, uma melancolia agreste, um cerzido vivo da própria solidão e tristeza que assim as acentuava pela discreta reserva. Quando acabei de ler Perto do Coração Selvagem, escrevi no fim em comentário: «Livro belo, europeu (não brasileiro), de delicada (e feminina) feitura, realizado na apreensão da minúcia, do acidental sempre transposto a uma interrogação metafisica, ao problema que de si mesmo se gera e em si se resolve. Desta fatalidade do interrogar e da solidão nasce a impossibilidade de Joana se realizar plenamente como mulher que tem um marido, etc. No fim, a sua súplica, o seu sonho é regressar a uma infância impositiva mas adulta, a uma afirmação absoluta, ao SIM para toda a fatalidade de problematizar. O estilo é nervoso de travagens súbitas, sugestões esboçadas, ângulos agudos. (Em Laços de Família o estilo é mais agudo, todo frisado, de viragens rápidas.) Comparações inesperadas, linguagem nova. Assuntos tratados em pequenos e isolados círculos. Linguagem não em rectas ou curvas, mas em linha quebrada.



14 de Março de 1982
E hoje a seguir ao almoço fui encontrar-me com a Lygia Fagundes Telles, conhecida e excelente escritora brasileira que aí veio ao Congresso dos Escritores e lançou um livro seu. Foi hora e meia de boa cavaqueira. Bela e ágil de espírito como sempre, Lygia tem o dom difícil da simpatia não estandardizada. De tudo se falou um pouco. Mas a certa altura eu disse-lhe o que de outras vezes tenho dito e é que há os autores que admiro, os que amo e os mais raros que simultaneamente admiro e amo.
- Pelo que se refere ao Brasil, um autor que admiro mas não amo, é, por exemplo, Guimarães Rosa, cuja linguagem é uma barreira que não consigo ultrapassar. Um escritor que amo com funda simpatia, mas não admiro muito, muito, é, por exemp1o, o Érico Veríssimo que pude conhecer pessoalmente e sempre me encantou como o nosso Júlio Dinis. E escritores que amo e admiro são por exemplo a Clarice Lispector e você.
Ficou encantada. Além de mais, decerto, porque a Clarice é reconhecidamente uma escritora de excepção.


24 de Julho de 1982
Vou (re)ler de Clarice Lispector - O Lustre. Como esta mulher demonstra bem que a «psicologia» pode não ser uma questão feminina. É curioso que a sua análise interior diz respeito a uma mulher, Virgínia, personagem central. Mas tudo o que aí é naturalmente feminino resvala  para  preocupações, interesses  que  não  são  do particularismo individual, mas de uma zona difusa existencial. O que a personagem pensa, sente, analisa esbate-se nas suas  margens para uma qualidade humana, cósmica, metafisica. E o que nos fica em  saldo não são observações de picuinhas «psicológicas», não são indicações de como se é, mas do que se é.


29 de Outubro de 1983
Já falei da Água Viva de Clarice Lispector? É um livro fascinante. E tanto que só depois de relido devagar e já sem hipnotismos, pude ver que os seus núcleos são motivos do meu Aparição. Como fiquei contente. Pensar que Clarice me ouviu, ou se encontrou comigo, ela que é a maior escritora brasileira, é sentir-me recompensado em tudo quanto me magoou. É sentir-me justificado perante mim. De todo o modo, ler o seu livro não é ler outro mais nenhum. Porque a sua arte maravilhosa tudo recobre da sua maravilha. E só ela perdura na memória emocionada.


11 de Abril de 1989
Há dias realizou-se aí o Congresso de Escritores de Língua Portuguesa.Não fui. Porquê? Não interessa, não fui. Mas as brasileiras Lygia Fagundes Telles e a Nélida Piñon mostraram um interesse simpático  de me verem. Fui  ao hotel delas, perto da Gulbenkian, e palrámos. E falando-se de Clarice Lispector, aludi a uma certa identidade de temática de certos livros dela com a de Aparição. Eu enviara-lhe o livro aí por 60/61, mas ela não me deu troco. Néllda replicou-me vivamente que Clarice não lia nada de ninguém. Trepliquei que não aludia a «influências», mas a um «encontro». Aí Nélida foi mais complacente. Um destes dias recebo da minha amiga brasileira  Maria Spassal (que fez um estudo sobre mim) mais um livro de Clarice Uma Aprendizagem ou O Lívro dos Prazeres. Belo no seu senso de mistério com que sobretudo a personagem feminina olha o mundo e se interroga a si. Todo o livro é a experiência de uma ascese para a absorção em (de) Deus. E o grande passo para isso é a descoberta do «eu» e a angústia disso. O livro é de 69. Como Água Viva, está também muito próximo de Aparição. Marquei as páginas 12-18-19-75-l43-169-l72/3. Não sei se Clarice leu Aparição. Mas sei de certeza certa que se teria encontrado com ele, se o lesse. Para lá do problema mísero das «influências», que é mísero em afirmá-las ou negá-las, há o facto maravilhoso de uma afinidade entre mim e uma escritora que me é admirável - a mais admirável de toda a literatura brasileira moderna, até onde a conheço.

Julian Barnes – O Papagaio de Flaubert

  Quetzal, 2019 Julian Barnes é o mais continental dos escritores anglo-saxónicos. Entre outras coisas, vê-se isso pelo fascínio que ele dem...