https://aedmoodle.ufpa.br/pluginfile.php/305284/mod_resource/content/2/Lispector_1999_Estrela.pdf
(publicado no ano em que morreu, 1977, tinha 57 anos)
Nota prévia: As considerações sobre esta obra vão distribuir-se
por três posts, dada a sua extensão. A ordem como vão aparecer ao leitor no
blog acompanha a forma como eu as escrevi e desejo que sejam lidas.
Trata-se de um romance-reflexão, pois cada título, cada frase
é um apelo suave de Clarice Lispector à nossa reflexão; tão suave que, na maior
parte das vezes, numa primeira leitura, passa muita coisa despercebida. Além
disso, não reflete até ao fim, até à resolução da reflexão, deixa nas nossas
mãos continuar e concluir a reflexão. Por isso, às vezes, parece difícil a
leitura.
Clarice não escreve a história, é a personagem Rodrigo que o
faz. Pelo que se poderá pensar que Macabéa não existe, ou que existe em todos nós
(como é sugerido no livro). Ou seja, Macabéa é uma criação e, portanto, um
símbolo.
São também reflexões que não obedecem muitas vezes nem à
racionalidade nem à lógica, andando por territórios mais ou menos indefinidos
de uma forma que só posso chamar de livre. Por isso, tudo parece confuso e
desorganizado. O que é intencional:
(43) Será que eu enriqueceria este relato se usasse
alguns difíceis termos técnicos? Mas aí que está: esta história não tem nenhuma
técnica, nem estilo, ela é ao deus-dará. Eu que também não marcharia [mancharia]
por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da
datilógrafa. Durante o dia eu faço, como todos, gestos despercebidos por mim
mesmo. Pois um dos gestos mais despercebidos é esta história de que não tenho
culpa e que sai como sair.
As reflexões partem de uma matriz que é o questionamento
sobre a escrita, o escritor, a palavra, o real e a ficção: tudo o resto (e é
muito!) nasce daqui. Porque a história de Macabéa praticamente não existe, ou,
se existe, é completamente banal. Mas não é banal se considerarmos outras
histórias, também a do escritor e a da escrita, por exemplo.
Mas ainda podemos acrescentar a história da própria Clarice
que estamos sempre a tentar adivinhar atrás desta outras histórias. Adivinhar,
até porque ela esconde-se por detrás de um escritor masculino, como que a
querer criar uma distância entre ela e o narrador, para não confundirmos os
dois.
Porque é escrita esta história?
(26) (…) preciso falar dessa nordestina senão sufoco. Ela
me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela. (…) (26/27) Escrevo
portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de “força maior”,
como se diz nos requerimentos oficiais, por “força de lei”.
Sim, minha força está na solidão. (…)
Clarice parece estar a dizer que a necessidade de escrever
nasce da sua solidão que é também a de Macabéa. Será que podemos assumir que
Macabéa é um dos alter egos da autora, por isso ela sufoca, ela acusa, e a
única saída é esvaziar-se escrevendo?
Mas não se trata só de uma catarse, pois é indubitável que Clarice
revela aqui uma chaga social: na figura de Macabéa vemos como a sociedade
(principalmente, quando os direitos das crianças são letra morta e o ensino não
é nem público nem obrigatório) encarcera e consome quem é pobre.
(23) Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas
por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a
estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiram
como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por
não saber a quem. Esse quem será que existe?
Clarice alerta-nos, assim, para o desamparo dos mais
desprotegidos.
No entanto, o nome de Macabéa sugere o símbolo de
resistência a quem a quer destruir (Macabeus, Matatias pai e Judas Macabeu
filho na resistência vitoriosa contra o Império Selêucida).
Embora, na Apresentação, Clarisse Fukelman diga: (13) O
próprio nome adverte para um contrasenso, pois ela em nada se aproxima da
índole heróica dos macabeus, povo guerreiro na história dos hebreus.
Não concordo. Pelo contrário, devo dizer que esta resistência foi um dos aspetos que mais me tocou nesta narrativa. Nem a morte chegou a derrotá-la! Admito, no entanto, que Macabéa seja a perfeita anti-heroína, verdadeira representante da nossa irrelevância numa sociedade onde as máquinas se vão sobrepondo a pouco e pouco ao humano. Assim, não é fácil encontrar a heroicidade não imediatamente evidente de Macabéa. Como diz Clarisse Fukelman: (12) Macabéa, em tudo e por tudo, é o oposto do herói épico. Sua trajetória e vida aponta para a inviabilidade dos grandes feitos na sociedade moderna.
Onde se percebe claramente a excecionalidade de Macabéa não
é nas descrições que Rodrigo faz dela. Mas, sim, nos diálogos, onde ela revela
uma inteligência ímpar e acutilante.
De um ponto de vista mais psicológico, este livro mostra
também muito claramente como a infância condiciona e chega a determinar em
muitos aspetos a idade adulta. Principalmente, as estratégias de defesa
encontradas nessa época da vida que se irão mantendo, com adaptações, poucas,
ao longo da vida.
Mas há um aspeto que mais me marcou nas duas leituras que fiz: a atração da autora pela fealdade.
Clarice anda à volta da fealdade, como uma borboleta à volta da chama de uma vela. Fealdade («feiúra»), mas destinada a fazer brilhar a humanidade e a inocência de Macabéa (que a sociedade que a rodeia trata como culpa) como é na noite escura que uma luz mais brilha, na formulação feliz de Vergílio Ferreira?
Está aqui, de certa forma, o mito de Pigmalião, mas de
alguma forma invertido. O mito é o do artista-escultor que se enamora pela sua
obra-estátua, desejando obsessivamente que ela adquira vida. O estranho é
aparecer aqui com uma semelhança apenas inicial, talvez só para podermos
identificar o mito. Rodrigo é Pigmalião e Macabéa é a sua criação que ele ama,
claro. A partir daqui, no mito, a estátua vive, na novela Rodrigo mata Macabéa.
A estátua é belíssima, Macabéa é feia. Afrodite dá a vida, a vidente arrasta-a
para a morte.
É verdade que o projeto de escrita de Clarice pode ser este:
fazer um relato emocionado, mas com contenção da emoção.
Só que uma coisa é um relato frio, outra são os insultos que
o relato dirige a Macabéa. Eis alguns exemplos:
(33) Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com
ferrugem. (35) Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio. (…) Essa moça
não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é
cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não
sabia para quê, não se indagava. (…) (36) A mulherice só lhe nasceria tarde
porque até no capim vagabundo há desejo de sol. (37) Nem se dava conta de que
vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável. (…)
dir-se-ia que havia brotado da terra do sertão em cogumelo logo mofado. (43)
(…) ela era um acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal.
(45) É que lhe faltava gordura e seu organismo estava seco que nem saco meio
vazio de torrada esfarelada. (57) Você tem cara de quem comeu e não gostou,
(…). (63) E como já foi dito ou não foi dito Macabéa tinha ovários murchos como
um cogumelo cozido. (64) – Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade
de comer.
Não gosto desta linguagem crua, choca-me, usada para estar sempre
a diminuir a personagem. Além disso, com esta linguagem carregada
emocionalmente negativa, não será verdade que, assim, Clarice/Rodrigo falta à
promessa de «um relato que desejo frio»?
É certo que, mais à frente, Rodrigo avisa e reconhece: (40) (Eu
bem avisei que era literatura de cordel, embora eu me recuse a ter qualquer
piedade); e Eu bem sei que dizer que a datilógrafa tem o corpo cariado é
um dizer de brutalidade pior que qualquer palavrão.
No entanto, depois, é capaz de expressões de enorme delicadeza:
(54) – Olhe, você não reparou até agora, não desconfiou que tudo que você
pergunta não tem resposta? / Ela ficou de cabeça inclinada para o ombro assim
como uma pomba fica triste.
Aliás Rodrigo diz em (72) Sim, estou apaixonado por
Macabéa a minha querida Maca, apaixonado pela sua feiúra e anonimato total pois
ela não é para ninguém. Apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela.
Sabemos do lugar-comum de que se não faz arte com bons
sentimentos. Não é verdade, claro, basta pensarmos em algumas canções e
músicas: Grândola, Vila Morena; Beds are Burning; Biko; etc.
Mas também é verdade que, desta forma, Rodrigo e Macabéa permanecem muito mais
tempo nas nossas mentes por esta dualidade de amor e ódio de Rodrigo por
Macabéa.
Ao ler este livro, surge-nos a sensação simultânea de
estranhamento e familiaridade ao mesmo tempo? Sim, porque a história é banal,
mas há muito que eu não entendo. Mas Clarice disse que gostava de não entender.
E convida-nos talvez a participar desse gosto.
Estas são algumas leituras que me provocou este texto. Mas
ficou-me a impressão de que algumas outras ficaram de reserva para surgirem em
posteriores leituras (fiz duas seguidas; na verdade, Clarice diz, numa entrevista de 1977, a última que deu, que «Parece que eu ganho na releitura»). Aliás, porque não há a
sensação de estar datado? Porque Clarice questiona aqui o humano no ser humano
e isso é absolutamente intemporal na literatura.
Ou seja, fiquei com a impressão de que este é um texto que nunca se acaba realmente de ler. E que nunca desaparece da paisagem do nosso espírito…
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