quarta-feira, 3 de março de 2021

3 - Clarice Lispector, segundo Vergílio Ferreira


Junto as referências que Vergílio Ferreira faz a Clarice Lispector na sua Conta-Corrente:


11 de Dezembro de 1977

(...) o que me diziam dela. Sabia que era bonita e que ela o sabia. Tinha mesmo, diziam -me, como mulher que se preza, mais vaidade nisso do que nos livros que escrevia. Há anos sofrera um desastre e ficou desfigurada com queimaduras. Fechou -se em si, não convivia com ninguém. Mandei-lhe uma vez um livro, não me respondeu. Foi pena. Creio que teríamos coisas a dizer. Havia na escrita dela, certa escrita, uma melancolia agreste, um cerzido vivo da própria solidão e tristeza que assim as acentuava pela discreta reserva. Quando acabei de ler Perto do Coração Selvagem, escrevi no fim em comentário: «Livro belo, europeu (não brasileiro), de delicada (e feminina) feitura, realizado na apreensão da minúcia, do acidental sempre transposto a uma interrogação metafisica, ao problema que de si mesmo se gera e em si se resolve. Desta fatalidade do interrogar e da solidão nasce a impossibilidade de Joana se realizar plenamente como mulher que tem um marido, etc. No fim, a sua súplica, o seu sonho é regressar a uma infância impositiva mas adulta, a uma afirmação absoluta, ao SIM para toda a fatalidade de problematizar. O estilo é nervoso de travagens súbitas, sugestões esboçadas, ângulos agudos. (Em Laços de Família o estilo é mais agudo, todo frisado, de viragens rápidas.) Comparações inesperadas, linguagem nova. Assuntos tratados em pequenos e isolados círculos. Linguagem não em rectas ou curvas, mas em linha quebrada.



14 de Março de 1982
E hoje a seguir ao almoço fui encontrar-me com a Lygia Fagundes Telles, conhecida e excelente escritora brasileira que aí veio ao Congresso dos Escritores e lançou um livro seu. Foi hora e meia de boa cavaqueira. Bela e ágil de espírito como sempre, Lygia tem o dom difícil da simpatia não estandardizada. De tudo se falou um pouco. Mas a certa altura eu disse-lhe o que de outras vezes tenho dito e é que há os autores que admiro, os que amo e os mais raros que simultaneamente admiro e amo.
- Pelo que se refere ao Brasil, um autor que admiro mas não amo, é, por exemplo, Guimarães Rosa, cuja linguagem é uma barreira que não consigo ultrapassar. Um escritor que amo com funda simpatia, mas não admiro muito, muito, é, por exemp1o, o Érico Veríssimo que pude conhecer pessoalmente e sempre me encantou como o nosso Júlio Dinis. E escritores que amo e admiro são por exemplo a Clarice Lispector e você.
Ficou encantada. Além de mais, decerto, porque a Clarice é reconhecidamente uma escritora de excepção.


24 de Julho de 1982
Vou (re)ler de Clarice Lispector - O Lustre. Como esta mulher demonstra bem que a «psicologia» pode não ser uma questão feminina. É curioso que a sua análise interior diz respeito a uma mulher, Virgínia, personagem central. Mas tudo o que aí é naturalmente feminino resvala  para  preocupações, interesses  que  não  são  do particularismo individual, mas de uma zona difusa existencial. O que a personagem pensa, sente, analisa esbate-se nas suas  margens para uma qualidade humana, cósmica, metafisica. E o que nos fica em  saldo não são observações de picuinhas «psicológicas», não são indicações de como se é, mas do que se é.


29 de Outubro de 1983
Já falei da Água Viva de Clarice Lispector? É um livro fascinante. E tanto que só depois de relido devagar e já sem hipnotismos, pude ver que os seus núcleos são motivos do meu Aparição. Como fiquei contente. Pensar que Clarice me ouviu, ou se encontrou comigo, ela que é a maior escritora brasileira, é sentir-me recompensado em tudo quanto me magoou. É sentir-me justificado perante mim. De todo o modo, ler o seu livro não é ler outro mais nenhum. Porque a sua arte maravilhosa tudo recobre da sua maravilha. E só ela perdura na memória emocionada.


11 de Abril de 1989
Há dias realizou-se aí o Congresso de Escritores de Língua Portuguesa.Não fui. Porquê? Não interessa, não fui. Mas as brasileiras Lygia Fagundes Telles e a Nélida Piñon mostraram um interesse simpático  de me verem. Fui  ao hotel delas, perto da Gulbenkian, e palrámos. E falando-se de Clarice Lispector, aludi a uma certa identidade de temática de certos livros dela com a de Aparição. Eu enviara-lhe o livro aí por 60/61, mas ela não me deu troco. Néllda replicou-me vivamente que Clarice não lia nada de ninguém. Trepliquei que não aludia a «influências», mas a um «encontro». Aí Nélida foi mais complacente. Um destes dias recebo da minha amiga brasileira  Maria Spassal (que fez um estudo sobre mim) mais um livro de Clarice Uma Aprendizagem ou O Lívro dos Prazeres. Belo no seu senso de mistério com que sobretudo a personagem feminina olha o mundo e se interroga a si. Todo o livro é a experiência de uma ascese para a absorção em (de) Deus. E o grande passo para isso é a descoberta do «eu» e a angústia disso. O livro é de 69. Como Água Viva, está também muito próximo de Aparição. Marquei as páginas 12-18-19-75-l43-169-l72/3. Não sei se Clarice leu Aparição. Mas sei de certeza certa que se teria encontrado com ele, se o lesse. Para lá do problema mísero das «influências», que é mísero em afirmá-las ou negá-las, há o facto maravilhoso de uma afinidade entre mim e uma escritora que me é admirável - a mais admirável de toda a literatura brasileira moderna, até onde a conheço.

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