domingo, 5 de dezembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 39.

 

(Capa do JN de 14/10/2021)


Apontamentos pessoais à publicação 39. de "Fratelli Tutti", do Papa Francisco (ver no fim):

Hoje vou abordar duas questões relativas à migração: deixar ou não entrar migrantes no nosso país; e como os devemos tratar.

Quais os argumentos para fechar a porta à imigração? Analisemos alguns.

O argumento de que é para evitar a entrada de terroristas é infantil, claro, e não pode ser levado a sério – os terroristas que queiram entrar, entram mesmo; e até é preferível que o façam sendo claramente identificados pelos serviços administrativos, do que fazê-lo clandestinamente.

O argumento de que tiram o emprego aos nacionais é falso, pois eles vêm fazer os trabalhos que os nacionais se recusam a realizar (ver foto que acompanha este post).

Mas isto aplica-se aos imigrantes altamente qualificados? Não, mas estes vêm trazer um estímulo para os nacionais que não é de desprezar.

Na verdade, o verdadeiro problema em Portugal é este: como evitar que os NOSSOS altamente qualificados emigrem para o estrangeiro, já que ninguém quer vir para cá.

E os trabalhadores mais pobres ficarão prejudicados? Apenas se os imigrantes forem ilegais (quando o país dificulta a sua entrada) e se os patrões se aproveitarem disso para baixar todos os salários. De qualquer modo, em qualquer medida económica haverá sempre gente prejudicada – a questão aí será como apoiar devidamente essas pessoas e não as abandonar à sua sorte.

De qualquer modo, a realidade que se observa em vários países é que, pelo contrário, há muita falta de mão-de-obra para suprir as principais necessidades em diversas áreas da economia. Veja-se, por exemplo, o caso recente do Reino Unido que levou a carências com contornos dramáticos apenas porque não conseguiam contratar suficientes camionistas britânicos.

O argumento de que vêm viver da Segurança Social também não colhe. Estes imigrantes são as pessoas do seu país de origem que têm mais iniciativa e coragem (os outros não se atreveram a mexer-se). Eles rapidamente criam novos negócios e novos postos de trabalho, dando mais emprego ao nacionais. Além de constituírem um exemplo vivo de sucesso pelo trabalho para todos os nacionais. Assim, eles vão quase sempre contribuir imenso para a riqueza do país que os acolheu, não para a sugar.

Pelo contrário, mais gente (legalizada, claro está) a contribuir para a Segurança Social irá torná-la mais sustentável.

Sendo pessoas normalmente mais jovens, ajudam também à renovação das gerações. Com a consequência, por exemplo, de haver assim mais gente a contribuir para que os mais velhos possam ter reformas melhores.

Por tudo isto, abrir portas à imigração, facilitando a legalização e conferindo a todos a mesma dignidade laboral e social (pelo menos), beneficia o pais e praticamente toda a gente.

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39. Ainda por cima, nalguns países de chegada, os fenómenos migratórios suscitam alarme e temores, frequentemente fomentados e explorados para fins políticos. Assim se difunde uma mentalidade xenófoba, de clausura e retraimento em si mesmos». Os migrantes não são considerados suficientemente dignos de participar na vida social como os outros, esquecendo-se que têm a mesma dignidade intrínseca de toda e qualquer pessoa. Consequentemente, têm de ser eles os «protagonistas da sua própria promoção». Nunca se dirá que não sejam humanos, mas na prática, com as decisões e a maneira de os tratar, manifesta-se que são considerados menos valiosos, menos importantes, menos humanos. É inaceitável que os cristãos partilhem esta mentalidade e estas atitudes, fazendo às vezes prevalecer determinadas preferências políticas em vez das profundas convicções da sua própria fé: a dignidade inalienável de toda a pessoa humana, independentemente da sua origem, cor ou religião, e a lei suprema do amor fraterno.

sábado, 20 de novembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 38.

 


38. Infelizmente, outros são «atraídos pela cultura ocidental, nutrindo, por vezes, expetativas irrealistas que os expõem a pesadas deceções. Traficantes sem escrúpulos, frequentemente ligados a cartéis da droga e das armas, exploram a fragilidade dos imigrantes, que, ao longo do seu percurso, muitas vezes encontram a violência, o tráfico de seres humanos, o abuso psicológico e mesmo físico e tribulações indescritíveis». As pessoas que emigram «experimentam a separação do seu contexto de origem e, muitas vezes, também um desenraizamento cultural e religioso. A fratura tem a ver também com as comunidades de origem, que perdem os elementos mais vigorosos e empreendedores, e as famílias, particularmente quando emigra um ou ambos os progenitores, deixando os filhos no país de origem». Por conseguinte, também deve ser «reafirmado o direito a não emigrar, isto é, a ter condições para permanecer na própria terra» (Papa Bento XVI).

Nunca tive de emigrar. O meu avô emigrou para África e construiu lá a sua vida. E, por seu mérito e por sorte, venceu. Eu ainda sou um dos beneficiados desse sacrifício e dessa vitória que foi a sua. Mas nunca isso me faria defender a emigração de quem quer que fosse.

Talvez por isso, hoje vou deter-me neste «direito a não emigrar».

Parece-me ele tão evidente que me espanta quando vários dos governantes máximos de um país (o nosso) incentivam os outros à emigração.

Primeiro, porque a formação desses emigrantes foi paga com os nossos impostos. Com a sua emigração, o retorno e os benefícios desse investimento vão para os outros países que não gastaram um cêntimo – como é possível não ver isto?

Segundo, porque aquilo que é bom para os outros países (por exemplo, enfermeiros portugueses no Reino Unido) deveria ser igualmente bom para nós – como é possível não ver isto?

Terceiro, evidentemente porque «(…) as comunidades de origem, (...) perdem os [seus] elementos mais vigorosos e empreendedores (…)» - como é possível não ver isto?

Quarto, porque incentivar os outros à emigração é uma das mais patéticas confissões de incompetência e de impotência que um governante de um país pode fazer – como é possível não ver isto?

Quinto, última mas para mim a principal razão que é também aqui referida pelo Papa: porque a emigração constitui sempre uma violência, quer para quem parte, quer para quem fica. Ou seja, constitui uma punição tanto mais injusta quanto as pessoas nada fizeram para sofrerem esse castigo (exceto se as considerarmos culpadas por terem acreditado nos governantes que, mentindo e roubando, levaram o país à miséria…) - pela última vez, como é possível não ver isto?

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 37.

 

Sem dignidade humana nas fronteiras

37. Tanto na propaganda de alguns regimes políticos populistas como na leitura de abordagens económico-liberais, defende-se que é preciso evitar a todo o custo a chegada de pessoas migrantes. Simultaneamente, argumenta-se que convém limitar a ajuda aos países pobres, para que toquem o fundo e decidam adotar medidas de austeridade. Não se dão conta que, atrás destas afirmações abstratas difíceis de sustentar, há muitas vidas dilaceradas. Muitos fogem da guerra, de perseguições, de catástrofes naturais. Outros, com pleno direito, «andam à procura de oportunidades para si e para a sua família. Sonham com um futuro melhor, e desejam criar condições para que se realize».

Defendem isso, mas depois aproveitam-se desses migrantes para trabalhos esgotantes e em péssimas condições, muito próximas da escravatura. Condições às quais, aliás, nenhum nacional aceitaria submeter-se. Criticam esses países, mas financiam as suas elites corruptas e equipam-nas com o armamento mais do que suficiente para que elas possam manter esses regimes ad infinitum.

Além do mais, aqui em Portugal, há muitos postos de trabalho para os quais já não se encontram trabalhadores (provavelmente, por causa dos salários miseráveis oferecidos, ausência de contratos e incapacidade de arranjar casa a preços aceitáveis). A propósito desta dificuldade em encontrar trabalhadores portugueses, veja-se o que aqui, a título de exemplo, diz Raul Martins, presidente da Associação da Hotelaria de Portugal: 

O que estamos a tentar (…) é criar fluxos de importação de mão-de-obra com países específicos, desde logo com os que formam a CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa]. (Público online de 10-11-2021)

Independentemente da bondade ou não destas intenções, o que me pergunto muitas vezes é como é que há pessoas que pensam nos outros como abstrações e não têm capacidade de os ver como seres humanos, no essencial em tudo semelhantes a si próprios – pelo menos, no sofrimento e no desejo de felicidade, para si e para os seus.

Para não me colocar num pedestal, também me interrogo a mim mesmo se não padeço do mesmo mal, isto é, o de fazer «afirmações abstratas», sem consideração pelas vidas reais «dilaceradas» de muitos seres humanos. 

Começo, então, por trazer à minha consciência aquelas pessoas que defendem teorias e práticas que eu abomino visceralmente. E aí já percebo um pouco a dificuldade em conseguir não olhar para essas pessoas como se fossem objetos.

Depois penso que tenho 63 anos de uma vida sempre a pôr como prioridade procurar ser uma pessoa melhor (mas com um caminho ainda tão longo à minha frente!). Ou seja, um percurso que outros muito legitimamente não escolheram seguir, optando antes por outras prioridades para a sua vida, escolha feita umas vezes em liberdade, outras vezes por necessidade (o que me impede, aliás, de exigir dessas pessoas o que exijo de mim).

Mesmo assim, continuo a acreditar que, neste planeta, é possível esforçarmo-nos por nos tratarmos uns aos outros (sem exceções, mas principalmente os mais vulneráveis e desamparados) com fraternidade, eu que detesto e tenho pavor à violência, sob todas as formas em que ela surge e se exprime!…

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 36.

 


36. Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio. Além disso, não se deveria ignorar, ingenuamente, que «a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca». O princípio «salve-se quem puder» traduzir-se-á rapidamente no lema «todos contra todos», e isso será pior que uma pandemia.

O que podemos opor às forças da nossa sociedade atual que nos empurram para o isolamento, o anonimato, a alienação, a solidão, o medo (ou ansiedade) e a depressão? Exatamente: a cocriação de uma «comunidade de pertença e solidariedade».

Porque só ela satisfaz uma das necessidades primordiais do ser humano: a necessidade de confiar e de pertencer.

Porque, além disso, também garante um “bem comum” a que as pessoas podem recorrer em caso de necessidade. Se ela não existir, onde podemos encontrar uma real segurança na nossa vida? Onde podemos procurar ajuda quando estivermos (falo não só ao nível individual, mas também familiar e social) na penúria ou a caminhar para ela? Onde podemos encontrar ajuda para os nossos familiares (por exemplo, crianças ou idosos), quando não estamos presentes no local?

Por conseguinte, a questão primordial é: como podemos fazer surgir e alimentar esta «comunidade de pertença e solidariedade»?

Aponto algumas possibilidades:

  • percebermos  as semelhanças que temos entre todos, 
  • reconhecermos que dependemos dos outros e que eles dependem nós, 
  • disponibilizarmo-nos para manter essa interdependência através de dádivas e de ações que vão ao encontro do que os outros precisam, 
  • lutarmos para que sejam implementadas soluções políticas e económicas que reforcem esta comunidade entre todos,
  • fazermos parte de estruturas comunitárias já existentes ou criando novas e úteis que acrescentem valor à comunidade, 
  • e cultivarmos a atitude mental de ser membro de uma comunidade que é muito mais e melhor que a simples soma dos seus indivíduos.

Diz-nos o Papa: O princípio «salve-se quem puder» traduzir-se-á rapidamente no lema «todos contra todos», e isso será pior que uma pandemia.

Na verdade, muito pior, penso eu. Basta olhar para a história passada da humanidade para perceber claramente que, sempre que optámos por destruir o sentido de comunidade e de pertença mútua, o resultado foi morte e sofrimento infindáveis para milhares ou mesmo milhões de pessoas (para não falar do incomensurável sofrimento e morte dos outros seres vivos que partilham connosco este planeta).

Claro que , nesta nossa sociedade um tanto hipócrita, ninguém usa estas expressões ("salve-se quem puder" e "todos contra todos"). Mas não se ouvirão outras equivalentes? Por exemplo, após o governo Sócrates ter mudado a avaliação dos professores para uma avaliação competitiva, quantas vezes ouvi as pessoas dizerem: “Agora, é cada um por si”! E, à medida que, depois disso, esse tipo de avaliação foi sendo disseminado por outros setores de atividade, cada vez ouvi mais pessoas a afirmá-lo.

É absolutamente essencial que todos tomemos consciência de que o lema do “salve-se quem puder” e outros equivalentes são uma condenação à morte para a parte da humanidade mais fraca e vulnerável, ao mesmo tempo que servem para preservar muitas vezes aqueles que são os piores e mais desumanos.

Termino, evocando John Donne e o seu famoso excerto da Meditação XVII. Nunc lento sonitu dicunt, morieris:

Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte do mundo. Se um torrão de terra é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 35.


 

35. Contudo rapidamente esquecemos as lições da história, «mestra da vida». Passada a crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e em novas formas de autoproteção egoísta. No fim, oxalá já não existam «os outros», mas apenas um «nós». Oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos capazes de aprender. Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de respiradores, em parte como resultado de sistemas de saúde que foram sendo desmantelados ano após ano. Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a Humanidade renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos.»

Não me parece. O ser humano em grupo não muda, por exemplo, com a facilidade com que esquece (para sua grande desgraça, por vezes). E, assim, vamos vendo como não têm surgido grandes mudanças políticas no nosso dia-a-dia, no sentido de uma vida melhor.

Pelo menos, não no que se refere ao nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS) que, a cada mês que passa, vai piorando e piorando – a nossa própria experiência e as histórias que vamos ouvindo, de familiares e amigos, de doentes e de profissionais do SNS, abrem-nos janelas de horror que gostaríamos de pensar que não acontecessem na nossa civilização (ela, tão arrogante das suas conquistas e, no entanto, tão cada vez mais assustadora e vazia de valores humanos!)

É tristemente óbvio que, para todos aqueles que ganham fortunas com a saúde, o desmantelamento do SNS constitui uma prioridade, a fim de terem clientes e de satisfazerem a sua ganância. Ora, a Covid-19 representou, para essas forças sinistras, uma oportunidade de ouro para afundar ainda mais o SNS. Com a colaboração hipócrita e desavergonhada dos governantes e demais políticos, claro, porque sem a ajuda destes eles não o conseguiriam.

Portanto, diz o Papa: “oxalá”? Duvido que o próprio Papa acredite nisto. Mesmo considerando o que ele escreveu no original italiano desta encíclica: “Voglia il Cielo che (…)” Porque se o “Cielo” quisesse, já há muito teria parado com estes horrores e outros muito piores do que estes. E não quis. Por isso, eles continuam aí. Sempre com as fronteiras fechadas aos mais desamparados.

domingo, 17 de outubro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 34.

 


34. Se tudo está interligado, é difícil pensar que este desastre mundial não tenha a ver com a nossa maneira de encarar a realidade, pretendendo ser senhores absolutos da própria vida e de tudo o que existe. Não quero dizer que se trate de uma espécie de castigo divino. Nem seria suficiente afirmar que o dano causado à natureza acaba por se cobrar dos nossos atropelos. É a própria realidade que geme e se rebela… Vem à mente o conhecido verso do poeta Virgílio evocando as lágrimas das coisas, das vicissitudes da história.

(Cf. Eneida I, 462: «Sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt» – São lágrimas das coisas, as peripécias dos mortais confrangem a alma.)

Mas se muitos dos nossos políticos até para o sofrimento dos animais, visível e audível, são cegos e surdos, quanto mais para a natureza em geral!

Veja-se o que se passa com as touradas e a defesa que eles fazem do direito ao divertimento com o sofrimento sangrento dos touros. Ou da defesa do direito de caçar seres vivos com o mesmo fim, isto é, sem ser para o sustento e sobrevivência.

Tratam-se de manifestações claras de como achamos que somos donos de tudo, sem qualquer respeito pela vida, como se tudo fossem objetos mecânicos postos sob o nosso domínio para dispormos deles à nossa vontade e segundo os nossos apetites mais bárbaros.

Eu defendo o respeito pela vida de todos os seres vivos. Mas, argumentam muitos, não temos de matar para sobreviver? Por enquanto, temos. O que não temos é o direito de fazer dessa matança (e muito menos da tortura de um animal) um modo de divertimento.

Esta mentalidade de que tudo existe para satisfazer os nossos apetites é algo de cujas consequências trágicas larguíssimas faixas da população mundial já estão a sofrer (por exemplo, com as secas, com a exaustão dos solos, com o extermínio da diversidade da flora e da fauna, etc., resultando tudo num sofrimento extremo que não se consegue debelar).

O que as pessoas se esquecem (e o Papa nos recorda aqui) é que, mais tarde ou mais cedo, a natureza vai exigir de nós uma inapelável prestação de contas dos nossos abusos. E todos estes políticos e demais pessoas famosas de hoje irão ser inevitavelmente objeto do opróbrio das gerações vindouras.

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Para quem estiver interessado em aprofundar os seus conhecimentos científicos, repito, conhecimentos científicos sobre o sofrimento animal, recomendo o informativo e acessível livro "Touro como Nós - A Ciência da Vida e o Espetáculo da Dor", do neurobiólogo português, Luís M. Vicente (2021, Editora Pergaminho).

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 33.

 


33. O mundo avançava implacavelmente para uma economia que, utilizando os progressos tecnológicos, procurava reduzir os «custos humanos»; e alguns pretendiam fazer-nos crer que era suficiente a liberdade de mercado para garantir tudo. Mas, o golpe duro e inesperado desta pandemia fora de controle obrigou, por força, a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que nos benefícios de alguns. Hoje podemos reconhecer que «alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade. Buscamos o resultado rápido e seguro, e encontramo-nos oprimidos pela impaciência e a ansiedade. Prisioneiros da virtualidade, perdemos o gosto e o sabor da realidade». A tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência.

Sim, temos de repensar tudo, já que as respostas convencionais a que estávamos habituados mostraram uma eficácia muito aquém daquilo que prometiam.

Além disso, como diz aqui o Papa, a pandemia confrontou-nos com a realidade desagradável da nossa fragilidade, ao nível individual e coletivo. Aliás, essa fragilidade é de tal modo evidente que as manifestações de arrogância de muitos políticos (locais e mundiais) nos surgem como patéticas e risíveis (ao mesmo tempo que um pouco assustadoras, visto que a loucura associada ao poder provoca sempre medo). Infelizmente, essa arrogância teve consequências trágicas para milhares de famílias (vejam-se os exemplos do Brasil, Estados Unidos e Reino Unido).

Diz o Papa que «alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza». Na verdade, é bom que o façamos, pois precisamos de sonhos estimulantes para termos uma presença útil e boa no mundo.

Mas não confundamos com sonhos de fama e de aparência grandiosa; é que estes são habitualmente destrutivos para nós e para os mais próximos que nos rodeiam.


Escolhi a foto que acompanha esta publicação porque, no contexto deste parágrafo, ela nos interpela de alguma forma. É tirada de Verywell Mind, sendo uma recomendação muito positiva de como lidar com a solidão durante a pandemia da Covid-19 (How to Cope With Loneliness During the Coronavirus Pandemic, de Arlin Cuncic).  Veja-se como uma recomendação útil no contexto da pandemia se pode tornar numa prática algo tóxica (pelo isolamento em relação aos outros que incentiva), se ela passou a ser um hábito de vida, agora que já não estamos sujeitos ao confinamento. Isto é, se nos transforma em «Prisioneiros da virtualidade».

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 32.

 


As pandemias e outros flagelos da história

32. É verdade que uma tragédia global como a pandemia do Covid-19 despertou, por algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos. Recordamo-nos de que ninguém se salva sozinho, que só é possível salvarmo-nos juntos. Por isso, «a tempestade – dizia eu – desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. (…) Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso “eu” sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, esta (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos».

Apenas acrescento que os desafios que teremos de enfrentar e resolver num espaço talvez já não de décadas, mas de alguns (poucos!) anos, obrigam-nos a mudar o paradigma em que temos vivido, o da competição desenfreada e destrutiva pelos recursos (sejam os da natureza, sejam os dos salários, os dos lucros, etc.) sobre o qual o capitalismo se tem sustentado em detrimento do nosso planeta.

Então, qual a alternativa? Ela é muito clara. A colaboração, a cooperação, ou algo equivalente. Esta cooperação tem de ser instaurada entre pessoas em geral, entre políticos em particular e, principalmente, com a Natureza ao nível planetário (e não só ao nível local).

Em particular, a ideia mítica de que o ser humano pode domar a Natureza e pô-la ao seu serviço tem-se revelado cada vez mais catastrófica. É inevitável rever urgentemente a nossa relação política e económica com a Natureza. Senão, o que acabará por ser inevitável é a nossa autoaniquilação (após imenso sofrimento para todos, é importante não esquecer).

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Lev Tolstói, Anna Karénina

 


Editorial Presença, 2014


À medida que fui lendo este livro, vêm-me à mente estas palavras de Walt Whitman em Canto de Mim Mesmo, secção LI, p. 143 (trad. de José Agostinho Baptista, Lisboa, Assírio & Alvim, 1992):


Contradigo-me?

Muito bem, então contradigo-me,

(Sou imenso, contenho multidões).


É exatamente isto o que este livro é: 170 e tal personagens (das quais muitas são por vezes algo e o seu contrário), abarcando uma multiplicidade de temas. 

Tudo escrito de uma forma acessível e interessante para todos (mérito da tradução que também é maravilhosa). Além disso, , as técnicas de narração usadas por Tolstói não são muito evidentes, e os nossos olhos e espírito deslizam por estas páginas com verdadeira delícia.


As minhas personagens preferidas: Anna e Alexei, porque não são tontinhos, têm muita grandeza. Todos os outros são um pouco tolos – é, aliás, na caracterização das personagens, muito mais do que nas situações, que Tolstói revela um sentido de humor apuradíssimo que perpassa subtilmente por todo o livro.


O livro é sobre a paixão de Anna por Vronski… ou sobre a aversão de Anna pelo seu marido, Alexei Aleksândrovitch? Que, aliás, tem o mesmo 1º nome que Vronski, o que não deve ser por acaso: como se Tolstói propusesse que a paixão e a aversão sejam duas faces da mesma moeda (mas que moeda? Da nossa afetividade? Uma questão interessante…)

Ora, qual é a que está mais presente em todo o livro, a paixão ou a aversão? Sinto que a segunda e, pelo menos, de forma muito mais dramática e intensa.

Aliás, Alexei Aleksândrovitch representa bem o quanto os homens em geral se sentem mais perdidos face aos imprevistos dramáticos da vida do que as mulheres. E, neste livro, Tolstói retrata melhor (quer dizer, mais intimamente e mais verosimilmente) os homens do que as mulheres.


Alguns dos temas tratados (incluo aqui apenas 12 grupos):

- 2 grandes questões:

Anna está errada moralmente, tanto no adultério como no suicídio? 

E o marido, estará errado com o seu conformismo aos ditames da sociedade (desse conformismo vem a angústia dele quando não sabe bem quais serão esses ditames em determinadas situações particulares)?

- Casamento, amor, paixão e vida familiar.

- Adultério, ciúmes e sociedade.

- Como a razão prisioneira de emoções negativas e apetites fortes pode levar à desgraça (Anna?). E como a razão pode ser usada para justificar o injustificável (marido de Anna para justificar não duelar).

- Mistério dessa entidade chamada “povo”.

- Incomunicabilidade essencial do ser humano: inclusivamente, mostrada até à última página, onde Lióvin decide nada dizer à sua mulher Kitty sobre a revolução que se deu no seu espírito. 

Aliás, para ilustrar esta incomunicabilidade, Tolstói está sempre a mostrar como os encontros aqui são quase sempre desencontros: veja-se Anna e Vronski, com o seu contraponto positivo Lióvin e Kitty (mas sempre desencontro até ao fim); até mesmo Laska, a cadela, e Lióvin!

E como as consequências desta incomunicabilidade só podem ser positivamente orientadas por atos de compaixão e de perdão; onde isto não acontece, está tudo perdido (observe-se como Kitty salva tudo o que pode ser salvo tornando-se compassiva): Aleksei e Anna, Vronski e Anna, Stepan e Dolly, Lióvin e Kitty, Lióvin e Nikolai, etc.

- Agricultura, em particular como metáfora de várias realidades: como motivar as pessoas a envolverem-se no seu trabalho; como introduzir modernizações; e como as pessoas, suspeitando de manipulação (porque não tomaram a iniciativa nem foram envolvidas nas decisões), resistem passivamente mas com muita eficácia (até ao cansaço de quem dirige).

- Onde está o lado certo vital para o ser humano: no campo (longe da civilização e em contacto estreito com a natureza), na família e no silêncio inteligente e humanamente gerido.

- Política da época: cenas ultrapassadas ou ainda atualíssimas?

- Fé e razão.

- Avanço com uma hipótese de explicação para os ciúmes de Anna. Anna está tão ansiosa por se libertar das peias da sociedade que o adultério com Vronski está longe de ser suficiente. Ora, Anna talvez ache que o que transgrediu ainda tem alguma justificação, mas com mais outras transgressões já não teria. Assim, ela não é capaz de aceitar e de trazer à consciência este aspeto de si mesma. Daí que o projete em Vronski, acabando por condicionar o comportamento e os sentimentos deste. 

(por exemplo: mulher - tu não queres saber de mim, estás sempre fora. Marido – não quero estar em casa para ouvir queixas, vou sair. Mulher – aí está, estás sempre fora!, etc., etc.)


A sociedade tem regras, mas também tem maneiras de suavizar o seu cumprimento e tem até algumas portas de saída: o divórcio é uma delas. O ponto fraco deste livro parece-me que está em não se perceber muito bem porque é que Anna se recusa divorciar do seu marido. A razão apresentada é assim ter de ficar sem o filho Serioja; mas ela ficou sem ele na mesma! Aliás, Anna é a personagem que mais dificilmente pode ser compreendida, porque aparece cheia de contradições (Alexei também tem contradições, mas percebemo-las). Na verdade, Tolstoi perde-se um bocado nas mulheres.


Porque Anna sente ciúmes de Vronski? 1º, porque as mulheres estão muito mais desamparadas em caso de adultério, logo sentem-se muito mais inseguras com razão; 2º, porque ela foi infiel e sabe que a infidelidade pode acontecer (mas Vronski também foi e não sente muito ciúmes); 3º, uma razão que normalmente se dá, mas que é falsa na maior parte dos casos, é ela amar profundamente Vronski; ora, sabemos hoje que os ciúmes não são a consequência nem o resultado de um amor profundo.


Repare-se que o retrato que Tolstói faz das personagens não é muito lisonjeiro, mas choca mais por ser injusto relativamente às mulheres, já que a elas não era permitida uma educação superior (até 1868, elas não tinham acesso às universidades). Até a discussão sobre a educação feminina (390), feita exclusivamente por homens, não é muito brilhante, Tolstói tinha infinitas capacidades para fazer muito melhor.


(38), 2º e 3º parágrafos

Tolstói revela aqui duas realidades que se prolongaram ainda muito no tempo..

A primeira é como era atroz o desconhecimento dos homens sobre as mulheres. E, marginalmente, dos adultos sobre as crianças – o cap. 26 da Quinta Parte mostra, sem precisar de explicar, como as crianças têm de ser consideradas “inteiras” em si mesmas, e não como adultos com “deficiências” (reconheço que é algo que talvez não seja fácil conseguir fazer).

Eu ainda vivi intensamente este desconhecimento: o meu primeiro livro de educação sexual ainda dizia que a vagina era um pénis ao contrário; líamos Freud dizer que “A mulher é o continente negro da psicanálise”; ou Lacan que “A mulher não existe”; ou ainda Pierre Vachet escrever o livro “Mulher, esse enigma psicossexual”; etc.

Este desconhecimento tomava a forma concreta de uma total fantasia sobre a mulher ou como um ser ideal, ou como uma “perdida” (mulher de má vida), ou ainda como um ser funcional e estereotipado (dona de casa, mãe dos filhos, e pouco mais).

A segunda realidade revelada por Tolstói é a confusão que se faz habitualmente entre amar e apaixonar-se (repare-se, aliás, como o segundo conceito é formulado sob a forma reflexa), confusão que serve para alimentar muitos romances (talvez incluindo este). Parecem conceitos iguais, mas são distintos. E a principal distinção está nos picos de sofrimento e de felicidade que a paixão habitualmente traz, fazendo as pessoas oscilarem entre o céu e o inferno. 

Mas ninguém consegue viver nem num nem noutro constantemente. E, por isso, a paixão, mais tarde ou mais cedo, acaba. Às vezes, a sua vivência prolonga-se diluindo-se nas águas mais tranquilas do amor; outras vezes, não, ficando apenas o deserto e/ou a devastação.

A paixão talvez seja suscitada pelo desejo do que se não tem, a um nível psíquico profundo. Enquanto o amor celebra o que se tem, em si e no outro, e sente-se feliz com isso (se não se sente feliz, então surge o enfado que é talvez o oposto do amor). Este traduz-se, então, em respeito, empatia e valorização do outro.

Uma outra distinção é que o amor, por inerência e definição feliz (por isso, todas as religiões insistem na tecla do amor ao outro), pode chegar a toda a gente, pois ele pode surgir e ser mantido de muitas maneiras diferentes. Simplificando, toda a gente pode conseguir ser “amável”, sendo esta amabilidade uma das portas mais atrativas para acolher o nascimento do amor entre duas pessoas (estou a falar por experiência própria).

Dito isto, no entanto, no fundo, o amor e a paixão nunca deixam de ser um mistério. Por isso, talvez nunca cheguemos a saber responder à questão: o que leva duas pessoas a apaixonarem-se ou a amarem-se uma à outra?


(214) e outras

A personagem de Alexei Aleksândrovitch, marido de Anna, é tratada por Tolstói de forma particularmente interessante e digna e, por isso, pouco convencional.

Tolstói retira-lhe todo o ridículo, dá-lhe traços humanos comuns a todos nós: não saber o que fazer, refugiar-se no trabalho, não saber expressar os sentimentos que o atravessam, planear um comportamento e depois ter outro, sofrer em silêncio sem conseguir falar com ninguém, apresentar um diferencial entre o que mostra aos outros e aquilo que é por dentro (e Anna é particularmente cega para com ele neste aspeto).

Na minha opinião, nesta personagem, Tolstói mostra claramente o resultado a que uma educação emocionalmente deficiente pode dar origem. Curiosamente, esta afirmação também se aplica com propriedade a Vronski.


(215)

(...) O monstruoso desporto do combate com os punhos ou o das touradas espanholas são indício de barbárie. (...)

Nada tenho a acrescentar. Apenas chamar a atenção para a data de publicação deste livro: 1877, portanto há 144 anos.


(245-247)

Os dois irmãos, Serguei e Lióvin.

O primeiro tem uma teoria que, nas discussões e nas ações, lhe confere consistência e solidez, o que lhe permite ganhá-las.

O segundo não tem uma teoria consolidada porque está bem mais aberto a informação nova que lhe surja (o primeiro procura informação apenas para confirmar o que já pensa). Ora, esta postura traz-lhe vários problemas.

Um é não ter certezas, o que dá origem a ações mais erráticas e menos consistentes. 

Outro é que esta atitude mental leva-o a alterar a sua opinião. O problema está em que ela vai ficando cada vez mais complexa, o que dificulta formulá-la de forma suficientemente simples para poder ser "arremessada" contra o outro para ganhar uma discussão (e, por esse motivo, ele perde-as).

Gosto muito mais de Lióvin, mas na realidade somos habitualmente muito mais Serguei. O que nem sempre é mau. Para além de sermos mais eficazes na ação, dá muitas vezes bom resultado tomarmos previamente uma decisão racionalmente fundamentada (por exemplo de ser bom – 247), em vez de deixar isso para os impulsos do momento (infelizmente, Tolstói não aprofunda suficientemente esta questão).


(306)

Vronski não é má pessoa, como também não o é o marido de Anna. Não há pessoas más neste livro, como também não há pessoas boas: veja-se o modo como Lióvin vê os mujiques. O que há é pessoas educadas pela cultura e pressionadas pela sociedade onde se movem, que as pressionam muitas vezes para atos menos bons, ainda que aceitáveis socialmente.


(339 e 340), 4º parágrafo

Retrato de qualquer sociedade talvez moderna:

  • O povo não educado (mujiques) ou simplesmente muito mal educado – repare-se que não é por ter poucos conteúdos que se aprende mal, mas é a maneira de os aprender que os torna mal educados.
  • O diletante de ideias progressistas (e que em casa é retrógado)
  • O povo culto que tira conclusões superficiais da sua experiência de vida (por exemplo, na época atual, o povo é capaz de manifestações públicas contra ciganos, mas não contra banqueiros que nos sugam biliões; ou os intelectuais/escritores que acreditam no que veem escrito ou que lhes é dito - casos típicos de José Saramago nos Cadernos de Lanzarote e de Vergílio Ferreira no Conta.Corrente).
  • O idealista que busca uma solução realista (o que é bom, embora talvez não ótimo) e, ao mesmo tempo, simples (que nunca existe para problemas complexos).


(341), 2ª li

O método educativo por excelência: «achou maneira de criar nos trabalhadores o interesse pelo trabalho». Não se trata ainda de um método ideal, pois aqui propõe-se a recompensa e esta não é particularmente eficaz. Mas é muito melhor do que não se preocupar em suscitar o interesse dos alunos.


(353), último parág.

Um projeto para a vida (que, apesar de sabermos que nunca será completado, não deve ser razão para desistirmos dele) pode ser o melhor antídoto contra a consciência da nossa morte e do fim de tudo.

Repare-se que nem os crentes acreditam muito num Céu pós-morte porque, se acreditassem, seguiriam o que Jesus disse: «Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me.» (Mt 19:21)

Note-se como Tolstói, em todo o livro, tem uma sabedoria que vai passando para a escrita, um pouco como quem não quer a coisa, e sem explanações complexas, como nesta questão de como enfrentar a ideia de morte.


(398-409)

Descrição da paixão luminosa de Lióvin por Kitty está perfeita. 


(438/9)

Os problemas de Lióvin com a fé que quer adquirir por uma questão de honestidade, já que se vai casar pela igreja.

Tolstói parece propor que não é possível uma posição definida face à fé, pois ela só parece trazer incómodos, quando curiosamente ela aparenta ser a solução mais fácil.


(494)

Este é o único capítulo a que Tolstói dá um título: A Morte. É um relato dos últimos momentos de Nikolai, irmão de Lióvin. Um relato terrível, realista e assustador (é irresistível para mim comparar a dignidade dos seres humanos com a dos animais nos dias e horas que antecedem o morrer). Tolstói é brilhante, como mais tarte o seria com a sua obra A Morte de Ivan Ilitch.


(519)

(…) Esta possibilidade metia-lhe tanto medo que deixou de compreender fosse o que fosse. (…)

Que grande lucidez! Efetivamente, o medo excessivo estupidifica qualquer um (não só as crianças) e é por isso que utilizá-lo como instrumento educativo revela muito pouca sabedoria.

Estas páginas (514 e seguintes) dão-nos uma visão compreensiva da vida interior de um menino, Serioja. Lidas com cuidado, aprendemos imenso sobre o que é uma criança, e sobre o que a move e a motiva.

(…) Do ponto de vista do pai, Serioja não queria aprender o que lhe ensinavam. No fundo, nem podia aprendê-lo. Não o podia porque havia na sua alma exigências mais importantes para ele do que as apresentadas pelo pai e pelo pedagogo. (…) (520) E ele andava a aprender – com (…), mas não com os professores. Aquela água que o pai e o pedagogo esperavam para o seu moinho, há muito se desviara e trabalhava noutro sítio.

Imaginemos, noutros contextos, exigências como a fome, a doença ou a dor, a violência familiar, etc., etc., e ficamos a perceber porque tantas crianças não conseguem aprender. Não é que não estejam a aprender, só que não é o currículo escolar; provavelmente, estarão a aprender a sobreviver, que é uma das aprendizagens mais difíceis de se fazer sozinho.

Mais uma vez, refira-se como Tolstói não é de teses, preferindo mostrar a sua lucidez e sabedoria no meio da história que está a contar.


(623)

«--------------»: Isto significa  que Tolstói não podia escrever “esterilização”?


(666)

(…) O papá diz, e diz bem, que quando nos educavam havia só um extremo: punham-nos a viver nas águas-furtadas, enquanto os pais viviam na sobreloja; agora é ao contrário: os pais na cave, os filhos na sobreloja. Hoje em dia os pais não devem viver a sua vida, é tudo para os filhos.

Já em 1878 existia este mito absolutamente falso, como múltiplas investigações o comprovam. Obviamente que existe alguma indulgência parental que nasce principalmente do facto de muitos pais não conseguirem estar quase tempo nenhum com os seus filhos e chegarem a casa esgotados do seu trabalho. Mas esta indulgência não significa atenção de qualidade, tempo de qualidade, apoio de qualidade em relação aos filhos, muito pelo contrário. Normalmente, significa oferta de objetos que entorpeçam os filhos (televisões, playstations, smartphones, etc.) e, na melhor das hipóteses, muitas críticas e gritos. Na realidade, em Portugal, 3 em cada 4 crianças são maltratadas pelos pais; 1 em cada 10 são vítimas de maus tratos violentos – ver relatórios do Projeto Geração XXI.


(758)

Mais uma vez, o estilo de Tolstói de mostrar mais do que explicar. Agora, trata-se de mostrar porque é que o suicídio é reprovável (1º parágrafo). Depois (3º parágrafo), como um projeto que envolva o espírito e o corpo é o melhor antídoto contra o desespero (embora uma guerra não seja em absoluto o melhor exemplo de projeto…)


(764)

(…) O organismo, a sua destruição, a conservação da matéria, a lei da conservação da força, a evolução – eram tudo palavras que substituíram nele a antiga fé. Estas palavras e os conceitos que lhes estavam ligados eram muito bons para fins intelectuais; mas não davam de modo algum para a vida, (…)

A conclusão de que as ideias científicas não dão para a vida é-me surpreendente.

As ideias científicas, por darem uma segurança baseada na observação objetiva da realidade, são um conforto e um apoio que as ideias religiosas não dão. Eu acho que são estas que, pela sua fantasia sempre tão distante da realidade, não dão para a vida.

O único problema da ciência é, para falar verdade, aquilo que a aproxima das ideias religiosas: é quando chega a ideias erradas e as defende como se fossem verdades últimas a serem aplicadas sem qualquer critério ético aos seres humanos – veja-se o exemplo do conceito de raça; ou de eugenia (tanto a positiva como a negativa).

Porque a razão está muitas vezes errada. Lióvin mostra-nos nesta passagem (775) como a razão nos leva a conclusões completamente erradas: (…) A razão revelou-me a luta pela existência e a lei que exige que estrangule todos os que impeçam a satisfação das minhas necessidades. É essa a conclusão da razão. Quanto ao amor ao próximo, a razão não podia revelar porque é insensato.


(793)

Subscrevo inteiramente as últimas palavras do romance:

(…) mas a minha vida, toda a minha vida, independentemente do que me possa acontecer, cada minuto dela, não só não está privada de sentido, como antes, mas tem um indubitável sentido do bem e tenho o poder de a preencher com ele!

Eu acrescento apenas o sentido da beleza, para mim igualmente imprescindível.


segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 31.

 

31. Neste mundo que corre sem um rumo comum, respira-se uma atmosfera em que «a distância entre a obsessão pelo próprio bem-estar e a felicidade da humanidade partilhada parece aumentar: até fazer pensar que entre o indivíduo e a comunidade humana já esteja em curso um cisma. (...) Porque uma coisa é sentir-se obrigado a viver juntos, outra é apreciar a riqueza e a beleza das sementes de vida em comum que devem ser procuradas e cultivadas em conjunto». A tecnologia regista progressos contínuos, mas «como seria bom se, ao aumento das inovações científicas e tecnológicas, correspondesse também uma equidade e uma inclusão social cada vez maior! Como seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor!»

Preocuparmo-nos com o nosso bem-estar e o dos nossos familiares não tem mal em si mesmo (desde que não seja uma obsessão que nos leve a prejudicar os outros e a infringir leis). Até porque as condições de vida atuais não são particularmente boas para a nossa saúde física e mental, em especial na maioria das empresas e organizações. Além de que, como toda a gente sabe por experiência própria, nós somos melhores para os outros (nomeadamente, estamos mais disponíveis e compreensivos para as suas necessidades) se estivermos mais descansados e menos tensos, isto é, no fundo, se tivermos algum cuidado com o nosso bem-estar.

O ambiente toxicamente competitivo e consumista das sociedades atuais vai fazendo desaparecer o prazer e o repouso que deveria resultar normalmente da vivência em comunidade.

Talvez por isso, também em mim esse “cisma” existe em algum grau. Isto é, tenho consciência de viver em comunidade, sei o muito que devo a esta comunidade (educação, saúde, proteção, etc.), mas reconheço que me sinto cada vez mais distante dela. Distante em relação aos seus valores, à sua sensibilidade e à sua postura em relação a todos os seres vivos mais fracos e desamparados, nomeadamente crianças, idosos, pobres, refugiados e animais.

Eu reconheço o quanto isto é mau e tento combater esta tendência. Mas é difícil, principalmente porque as pessoas inspiram-me cada vez mais medo, e o medo em mim alimenta o fechamento, a defesa, a fuga e o desalento (e nem sequer televisão tenho, caso contrário ainda estaria muito pior).

Por outras palavras, está a ser-me muito difícil apreciar a riqueza e a beleza das sementes de vida em comum que devem ser procuradas e cultivadas em conjunto». Esta aproximação à humanidade tem sido, desde há alguns anos, tema da minha meditação diária. Mas, depois, quando chego ao contacto real com esta humanidade, surge por vezes algo que acaba por me chocar. E isto é o suficiente para o efeito da meditação desaparecer.

A propósito disto, lembro aqui as palavras do starets Zósimas, em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky:

— É nem mais nem menos – retorquiu aquele - o que me contava, já há muito tempo, certo médico meu amigo, homem de meia-idade e bastante inteligente. Exprimia-se sem rebuço, como a senhora, e com ar triste, embora gracejando. «Amo», dizia ele, «a humanidade, mas, com grande surpresa minha, quanto mais amo a humanidade em geral, menos o faço em relação às pessoas individualmente consideradas. (…)» (Círculo de Leitores, 1981, p. 52)

Razões para isto também acontecer comigo? Primeiro, já senti na pele como as pessoas individualmente e os políticos no poder são capazes de espalhar à sua volta muito mal e sofrimento (muitas vezes escudando-se por detrás de argumentos tecno económicos). Segundo, sei a minha idade e tenho uma crescente consciência do desamparo que é consequência de uma sociedade que deprecia os mais velhos. Terceiro, porque tive de aprender muito cedo que as pessoas em geral não são de confiar (nem me lembro de alguma vez na minha infância ter confiado em quem quer que seja; ainda tentei Deus, mas não deu em nada).

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 30.


 30. No mundo atual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia de outros tempos. Vemos como reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha duma profunda desilusão que se esconde por detrás desta ilusão enganadora: considerar que podemos ser omnipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco. Esta desilusão, que deixa para trás os grandes valores fraternos, conduz «a uma espécie de cinismo. Esta é a tentação que temos diante de nós, se formos por este caminho do desengano ou da desilusão. (…) O isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios interesses nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas é a proximidade, a cultura do encontro. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim».

A indústria da autoajuda contribui muito para alimentar esta ilusão de que, se quisermos e nos esforçarmos, podemos ser praticamente omnipotentes face aos outros. Por um lado, não há dúvida de que, de vez em quando, há um espaço individual em que precisamos de nos fechar temporariamente para refletir sobre a nossa própria vida (por exemplo, lendo, escrevendo e meditando), para cuidarmos de nós, para “recarregarmos baterias”, por assim dizer. Mas nós, a maior parte do tempo, temos de passar pelo encontro porque ele é absolutamente fundamental para acordar e implementar soluções coletivas a problemas que são, também eles, coletivos (o tal “mesmo barco” de que o Papa aqui nos fala).

Assim, repito aqui e subscrevo inteiramente: (…) O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim. Seremos capazes de aceitar esta ideia?

A verdade é que a aceitamos pouco na nossa relação com as crianças. Apesar de a investigação sugerir que, depois da punição, o confronto é das piores estratégias que podemos usar para conseguir mudar os comportamentos dos outros, em particular das crianças.

Mas o que mais me inquieta e assusta é ver que não parecemos valorizar esta ideia no mundo da política. Nem nós, nem os media, nem ninguém. Porquê? Será porque a política se reduziu quase exclusivamente a um circo-espetáculo de gladiadores de palavras? Haverá outra razões mais profundas e menos lúdicas que estarão a trabalhar na sombra das nossas psiques individuais e sociais?

Sendo o homem o bicho mais mortífero que este planeta já gerou, esta atitude descuidada de nós em relação a nós mesmos aflige-me.

Há um paradigma de competição a todos os níveis da sociedade que é preciso mudar, pois é ele uma das raízes principais do confronto. Ora, face aos desafios que se estão a pôr de forma cada vez mais premente no que respeita à própria sobrevivência da nossa espécie, não faz sentido alimentar uma luta competitiva da qual, seja qual for o resultado e no fim de tudo, só restarão perdedores.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 29.

 

(foto da autoria de FLAN Colectivo)


Globalização e progresso sem um rumo comum

29. O Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb e eu não ignoramos os avanços positivos que se verificaram na ciência, na tecnologia, na medicina, na indústria e no bem-estar, sobretudo nos países desenvolvidos. Todavia «ressaltamos que, juntamente com tais progressos históricos, grandes e apreciados, se verifica uma deterioração da ética, que condiciona a atividade internacional, e um enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido de responsabilidade. Tudo isto contribui para disseminar uma sensação geral de frustração, solidão e desespero, (…) nascem focos de tensão e acumulam-se armas e munições, numa situação mundial dominada pela incerteza, pela deceção e pelo medo do futuro, e controlada por míopes interesses económicos». Assinalamos também «as graves crises políticas, a injustiça e a falta duma distribuição equitativa dos recursos naturais (…). A respeito de tais crises que fazem morrer à fome milhões de crianças, já reduzidas a esqueletos humanos por causa da pobreza e da fome, reina um inaceitável silêncio internacional». Perante tal panorama, embora nos fascinem os inúmeros avanços, não descortinamos um rumo verdadeiramente humano.

Primeiro que tudo, quero ressaltar a preocupação do Papa com a sobrevivência digna das crianças, algo que é generalizadamente menosprezado em todo o lado. Sim, também me choca o silêncio que cobre aquilo que eu considero um verdadeiro “massacre” a ocorrer nos nossos dias, tanto dentro como fora do nosso país (mas de forma mais cruel e insensível fora, claro).

Acredito que os vindouros se sentirão profundamente chocados com a forma como nós, hoje, apesar dos progressos que fizemos, ainda pensamos a condição da criança. E com o que lhes fazemos.

Consideremos agora os interesses económicos: eles sempre existiram e, de facto, deram origem a muitas barbaridades que sempre têm feito dos mais fracos as vítimas por excelência.

Eu vivi noutros tempos, bem piores que os atuais. O que penso estar por detrás deste sentimento geral, relatado pelo Papa, é o facto de as promessas que foram feitas de uma vida desafogada e segura só terem sido cumpridas para uma minoria que, aliás, as conseguiu à custa da imensa maioria.

Ora, acontece que esta maioria que ficou para trás, cada vez mais assustada com um mundo e uma sociedade da qual desconfia, com valores nos quais não se reconhece mas que é obrigada a adotar, fecha-se sobre si própria e vai ficando cada vez mais cega e surda ao sofrimento do resto da humanidade.

Além disso, o que mudou na época atual foi que o valor do consumismo tomou conta de todos os setores da nossa vida, secando tudo à sua volta. Veja-se como valores como a compaixão, a decência, a honestidade e tantos outros passaram a submeter-se ao valor do consumismo e à obrigação de ganhar dinheiro para consumir ainda mais.

Trata-se de um valor imposto de cima, de forma gradual e suave, claro está, mas nem por isso menos impositiva, nomeadamente através da publicidade. Pelo que resistir-lhe significa inevitavelmente uma certa reprovação e ostracização social.

No entanto, por outro lado, não acredito que, por exemplo, há 50 anos, houvesse menos fome do que hoje em dia. Michael Green, no vídeo Os Objetivos Globais em que Obtivemos Progresso, e Aqueles em que Não, diz-nos: «Vivemos num mundo que está muito perto de garantir que ninguém morra de fome, de malária ou de diarreia. Se concentrarmos os nossos esforços, mobilizarmos os nossos recursos, galvanizarmos a vontade política, essa mudança é possível.»

Na verdade, não gosto muito de uma argumentação do tipo “Se (…), então é possível.” Porque este “Se” muitas vezes revela que não é mesmo possível conseguir, que se trata de uma utopia. De qualquer modo, isso não invalida o propósito de não baixar os braços nas nossas exigências para fazer isto acontecer. Termino com um dos principais lemas da minha vida: “Se lutas, podes perder. Se não lutas, estás perdido.” (que ninguém tenha dúvidas: quanta verdade, sentida na minha própria pele, este lema encerra!)

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 28.

 


28. A solidão, os medos e a insegurança de tantas pessoas que se sentem abandonadas pelo sistema, fazem com que se crie um terreno fértil para as máfias. Com efeito, estas impõem-se apresentando-se como «protetoras» dos esquecidos, muitas vezes através de vários tipos de ajuda, enquanto perseguem os seus interesses criminosos. Há uma pedagogia tipicamente mafiosa que, com um falso espírito comunitário, cria laços de dependência e subordinação, dos quais é muito difícil libertar-se.

O Papa retrata aqui uma realidade que está ligada muito mais à história italiana do que à portuguesa . Mas as máfias existem em todo o lado, e Portugal não será certamente uma exceção.

Embora não seja isto a que o Papa se refere, devo confessar que ao acabar de ler este parágrafo surgiram-me à mente as milhares de pessoas com dívidas aos bancos. Pessoas a pagar muito, muito mais do que o valor daquilo que receberam. Pessoas que, não pagando, são punidas, por exemplo, ficando sem casa. Pessoas realmente «abandonadas pelo sistema». Talvez às mãos de outras “máfias”…

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 27.

 

27. Paradoxalmente, existem medos ancestrais que não foram superados pelo progresso tecnológico; mais ainda, souberam esconder-se e revigorar-se por detrás das novas tecnologias. Também hoje, atrás das muralhas da cidade antiga está o abismo, o território do desconhecido, o deserto. O que vier de lá não é fiável, porque desconhecido, não familiar, não pertence à aldeia. Trata-se do território do que é «bárbaro», do qual há que defender-se a todo o custo. Consequentemente, criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o «meu» mundo; e muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável passando a ser apenas «os outros». Reaparece «a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer os muros, muros no coração, muros na Terra, para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas. E quem levanta um muro, quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes. Porque lhe falta esta alteridade».

Quando nos sentimos inseguros, ativa-se o sistema neurológico focado na ameaça e no perigo que, como vimos no post anterior, é muito básico e tem respostas automáticas também muito básicas e primitivas. Por outras palavras, o nosso espírito estreita-se ou é simplesmente posto ao serviço do medo e da fúria. Mais claramente, poderemos talvez ganhar em rapidez (a coisa funcionava muito bem há uns milhares de anos atrás e, hoje, em algumas regiões do globo; mas, na sociedade complexa em que vivemos, que exige de nós respostas complexas, já não é bem assim). Mas perdemos em inteligência. O nosso cérebro racional é “capturado” pelas regiões mais primitivas do nosso sistema nervoso central e até chegamos a ser capazes dos maiores horrores.

Apesar de saber isto tudo, devo admitir que poderia subscrever a parte deste parágrafo que vai até “o «meu» mundo;”. É que ando a sentir algo muito parecido com isto, não exatamente com origem no exterior, mas proveniente do interior da própria sociedade onde vivo, daqueles que, aparentemente, são os meus iguais: uma ameaça a pender sobre mim, sobre os meus e sobre aquilo que eu acho ser a minha civilização (consciente, também, de que posso estar enganado e esta “civilização” ser uma fantasia da minha mente, um “wishful thinking”).

Já não pertence à minha experiência pessoal o corolário que se segue: “e muitos deixam de ser considerados seres humanos (…)”. Ele pode ser real para muitas pessoas, mas a mim só me causa repulsa, embora ache que sou capaz de as compreender: é que, quando o inimigo se torna invisível e difuso, é muito difícil não começar a ficar paranoico.

Como evitá-lo? Aguçando as nossas capacidades de perceção, de pensamento e de abertura não só à informação credível que não nos agrada como também ao debate sério e elevado de ideias e de políticas. Só assim conseguiremos que seja mais difícil sermos enganados e manipulados (e destruídos!) pelos nossos inimigos que se disfarçam de amigos.

Mais uma vez, admito que tenho a tendência para cultivar o “o «meu» mundo;”, como reação à violência que sinto impregnar-se cada vez mais em muita da cultura que me rodeia. Assusta-me deveras essa violência que vejo, por exemplo, em obras de arte contemporânea, sejam pinturas, sejam filmes, séries ou livros de ficção.

No entanto, a verdade é que, a mim, atrai-me o diferente, a alternativa, a pluralidade, nenhuma destas coisas me incomoda, pelo contrário, quanto mais diferente, mais me atrai (desde que a variável da violência esteja totalmente fora da equação).

Aliás, sempre adorei ser professor de turmas com alunos portugueses, estrangeiros, sobredotados, com dificuldades, etc., pois descobri que todos contribuíam para nos tornarmos melhores pessoas (e a mim também melhor professor).

Finalmente, muito interessante a ideia expressa pelo Papa no final do parágrafo. Na verdade, quem constrói muros à sua volta está, de facto, a contruir uma prisão para si, a empobrecer a sua existência e a rejeitar vários horizontes de possíveis enriquecedores da sua vida.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 26.

 


26. Isto não surpreende, se atendermos à falta de horizontes capazes de nos fazer convergir para a unidade, pois em qualquer guerra o que acaba destruído é «o próprio projeto de fraternidade, inscrito na vocação da família humana», pelo que «toda a situação de ameaça alimenta a desconfiança e a retirada». Assim, o nosso mundo avança numa dicotomia sem sentido, pretendendo «garantir a estabilidade e a paz com base numa falsa segurança sustentada por uma mentalidade de medo e desconfiança».

Se desconfiamos dos outros, isso causa-nos insegurança. Esta insegurança surge como uma ameaça à nossa sobrevivência, pelo que o nosso organismo responde-lhe com emoções negativas, entre as quais o medo se destaca largamente (muitas vezes, independentemente da nossa consciência ou racionalidade).

O nosso organismo está construído pela natureza para que este medo dê origem, mais uma vez sem necessitar de uma decisão consciente (muitas vezes, são respostas automáticas), a um de cinco comportamentos (que, no entanto, podem suceder-se uns aos outros, não sendo fixos). Em que três são de ação e dois são de inibição da ação, a saber:

1) Luta, quando estimamos que somos capazes de levar de vencida quem causou esse medo e, assim, de anular a ameaça que ele representa.

2) Fuga, quando, pelo contrário, percebemos que não temos hipóteses de triunfar sobre quem nos causou o medo, mas temos capacidade para nos pormos fora do seu alcance, assegurando a nossa sobrevivência.

3) Submissão, quando damos conta que nenhuma das duas respostas anteriores tem possibilidade de sucesso.

4) Paralisação, quando concluímos que nenhuma das três respostas anteriores é capaz de assegurar a nossa sobrevivência.

5) Finalmente, quando nos sentimos encurralados porque nenhum destes comportamentos foi suficiente para afastar a ameaça ou para, pelo menos, nos dar a esperança de a afastar, o nosso organismo reage com uma fúria desesperada (bastantes vezes até dirigida para nós próprios – é por essa razão que, por exemplo, são muitos os casos de assédio moral no local de trabalho que acabam em suicídio).

São cinco respostas muito simples e básicas, pelo que resultam quase sempre desadequadas na sociedade complexa e exigente de hoje.

Pelo que, onde há medo e desconfiança, nunca pode surgir a segurança no nosso espírito. Portanto, há que descobrir quais as reais causas dessa insegurança e resolvê-las. Tentar eliminá-las não resulta, pois elas nunca desaparecem totalmente. Além de que o próprio processo de eliminação é habitualmente violento e causador de sofrimento, pelo que não pode trazer felicidade. Por outras palavras, tenhamos presente que de tigres não podem nascer cordeiros!


Proponho que a única saída com alguma probabilidade de sucesso (em linha com o que o Papa nos apresenta nesta encíclica "Fratelli Tutti") é irmos ao encontro daquele que nos parece ameaçar a nossa segurança, sabendo que também ele se sente inseguro e que também ele, tal como nós, deseja alcançar a segurança e a felicidade, para si e para os seus.

Sendo verdade que ambos desejamos o mesmo, o acordo não será difícil de alcançar, desde que nenhum de nós queira “vencer” e humilhar o outro. Porque a realidade que todos nós já experimentámos alguma vez nas nossas vidas é que, quando vencemos alguém, arranjamos um adversário; mas quando o convencemos, ganhamos um aliado!

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 25.

 

(Foto: https://pt.wikipedia.org/wiki/Segunda_Guerra_Mundial)


Conflito e medo

25. As guerras, os atentados, as perseguições por motivos raciais ou religiosos e tantas afrontas contra a dignidade humana são julgados de maneira diferente, segundo convenham ou não a certos interesses fundamentalmente económicos: o que é verdade quando convém a uma pessoa poderosa, deixa de o ser quando já não a beneficia. Estas situações de violência vão-se «multiplicando cruelmente em muitas regiões do mundo, a ponto de assumir os contornos daquela que se poderia chamar uma “terceira guerra mundial por pedaços”».

Enfim, isto não se passa só com as pessoas poderosas:

Nós todos julgamos as coisas, principalmente as problemáticas, desfavoravelmente quando nos sentimos prejudicados por elas. Quando prejudicam apenas os outros, somos muito mais tolerantes. Há um conto delicioso de Oscar Wilde, O Foguete de Lágrimas (in Contos, de Oscar Wilde, Portugália Editora, 1969, p. 231), em que este é um dos temas:

(…) sou sensível ao máximo. Estou convencido de que não há no mundo ninguém mais sensível do que eu.

- O que é ser sensível? – perguntou um petardo à roda-de-fogo.

- É quem, sofrendo dos calos, anda sempre a pisar os dos outros – respondeu baixinho a interpelada. (…).

Depois há todos aqueles que, não sendo poderosos, põem-se ao serviço dos poderosos, funcionando como seus megafones ou, ainda pior, como seus sicários. Talvez alguns de nós, numa ou noutra altura das nossas vidas, o tenhamos feito sem nos darmos conta. Mas muitos fazem-no por um salário, claro. E certamente até haverá alguns que, não sendo nem ricos nem poderosos, o fazem por convicção.

A refletir se, no nosso dia-a-dia e nas ideias e práticas que defendemos, não estamos a ser coniventes com malfeitores poderosos. Porque se é verdade que as guerras (sob quaisquer formas que elas tomem) são decididas por esses poderosos, não podemos deixar de constatar que elas, no terreno, são levadas a cabo pelos seus subalternos (os poderosos, aliás, nunca lá aparecem).

sábado, 11 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 24.

 

Esta imagem é um trabalho do cartoonista Vasco Gargalo que, em 2021, foi selecionado como vencedor, por unanimidade, entre 460 cartoons de 65 países, que responderam ao desafio "E se o seu lápis fosse uma ferramenta contra o trabalho forçado? ".


24. Reconhecemos igualmente que, «apesar de a comunidade internacional ter adotado numerosos acordos para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este fenómeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura. (…) Hoje como ontem, na raiz da escravatura, está uma conceção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objeto. (…) Com a força, o engano, a coação física ou psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim». As redes criminosas «utilizam habilmente as tecnologias informáticas modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do mundo». E a aberração não tem limites quando são subjugadas mulheres, forçadas depois a abortar; um ato abominável que chega mesmo ao sequestro da pessoa, para vender os seus órgãos. Isto torna o tráfico de pessoas e outras formas atuais de escravatura num problema mundial que precisa de ser tomado a sério pela Humanidade no seu conjunto, porque «assim como as organizações criminosas usam redes globais para alcançar os seus objetivos, assim também a ação para vencer este fenómeno requer um esforço comum e igualmente global por parte dos diferentes atores que compõem a sociedade».

Que há que se possa acrescentar a isto? Apenas pensarmos um pouco no que podemos fazer em relação ao trabalho forçado.

Primeiro, manifestarmos a nossa revolta por diversos meios, incluindo pelo apoio à ação de organizações que lutam contra a escravatura no mundo.

Segundo, exigirmos intransigentemente dos responsáveis políticos uma prática de fiscalização eficaz, de punição exemplar e de divulgação pública das empresas que utilizam o trabalho escravo ou forçado na sua laboração. Note-se que este último ponto é absolutamente fundamental para que eu, um cidadão comum, possa escolher com consciência ser um consumidor ético, comprando sem promover a injustiça e a selvajaria (pelo menos neste domínio).

Interrogo-me muitas vezes se as empresas que lucram com este tipo de trabalho desumano não receiam que percamos a confiança nelas, criando em nós uma profunda aversão aos produtos que vendem. A denúncia pública e publicada destas empresas contribuiria certamente para uma ética mais humana. Falo de empresas, mas trata-se, no fundo, dos seus CEOs e esses, com os seus ordenados milionários (e a consequente aprovação social de uma sociedade que valoriza cada vez mais o sucesso financeiro, obtido seja de que maneira for), nunca têm muito a recear, infelizmente.

Como acredito que esta aversão que surge em nós perante as práticas assassinas destas empresas têm a sua raiz num sentido básico de decência, defendo ainda que ele deve ser estimulado naqueles que ainda não são sensíveis a esta problemática.

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 23.

 


23. De modo análogo, a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam outra. Com efeito, «duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos».

Continuamos a refletir sobre estes parágrafos que se encontram reunidos sob o tópico «Direitos humanos não suficientemente universais».

É muito interessante o Papa escrever isto porque, irresistivelmente, nos lembramos que exatamente a Igreja (aliás, como em quase todas as religiões) é uma das organizações onde não são reconhecidos «idênticos direitos» a mulheres e homens. Portanto, aqui, o Papa está a falar para fora, mas também para dentro da Igreja.

Depois, relata-se aqui uma evidência: as mulheres têm muito menos poder para se defenderem dos abusos, normalmente dos homens – é talvez por isso que há muito mais vítimas mulheres que homens.

Por isso, várias interrogações se acumulam em mim: Porque será tão difícil para os seres humanos tratarem-se como iguais? Afinal, onde está a nossa racionalidade? Ao serviço das crenças mais estúpidas? Ou da animalidade mais mecânica? Porque é que os homens revelam tanta falta de nobreza e de cavalheirismo em privado (e, infelizmente, também muitas vezes em público)? Qual a satisfação retirada de fazer sofrer os outros? Perguntas (ainda) sem resposta, creio.

Posto isto, proponho agora uma experiência a complementar na leitura deste parágrafo: onde surge a palavra «mulheres», experimentemos agora substituí-la por «crianças».

Veremos como praticamente todo este texto mantém a sua verdade, tanto mais aguda e pungente quanto sabemos que, de todas as pessoas, as crianças são as mais maltratadas, desprotegidas e vulneráveis … e as mais inocentes, não o esqueçamos.

domingo, 5 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 22.

 


Direitos humanos não suficientemente universais

22. Muitas vezes constata-se que, de facto, os direitos humanos não são iguais para todos. O respeito destes direitos «é condição preliminar para o próprio progresso económico e social de um país. Quando a dignidade do homem é respeitada e os seus direitos são reconhecidos e garantidos, florescem também a criatividade e a audácia, podendo a pessoa humana explanar suas inúmeras iniciativas a favor do bem comum». Mas, «observando com atenção as nossas sociedades contemporâneas, deparamos com numerosas contradições que induzem a perguntar-nos se deveras a igual dignidade de todos os seres humanos, solenemente proclamada há 70 anos, é reconhecida, respeitada, protegida e promovida em todas as circunstâncias. Persistem hoje no mundo inúmeras formas de injustiça, alimentadas por visões antropológicas redutivas e por um modelo económico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar o homem. Enquanto uma parte da humanidade vive na opulência, outra parte vê a própria dignidade não reconhecida, desprezada ou espezinhada e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados». Que diz isto a respeito da igualdade de direitos fundada na mesma dignidade humana?

Quando as pessoas não têm de estar permanentemente a lutar pela sobrevivência, seja esta material ou psíquica, ficam mais livres de dedicar os seus melhores esforços em áreas que contribuem para o bem comum. É por isso que "O respeito destes direitos «é condição preliminar para o próprio progresso económico e social de um país."

Porém, numa sociedade organizada à volta do lucro como seu pilar essencial, o bem comum interessa pouco. Aliás, como interessa pouco a dignidade das pessoas.

O que fazer, então?

Talvez possamos começar por não valorizarmos o dinheiro, nem nenhuma manifestação da sua posse (recusando, por exemplo, o consumismo).

Podemos também votar em políticos e partidos que, sem deixarem de reconhecer a importância do dinheiro e do bem estar material, mostrem claramente a intenção de colocar o foco da sua ação nestas coisas bem mais importantes e urgentes: a dignidade de cada um e o bem-estar para todos.

Por fim, valorizemos estas duas vertentes de uma vida melhor, dando o exemplo com as nossas ações na vida do dia a dia, com os pares, com os subordinados, com os idosos, com as crianças; ao que eu acrescentaria sem hesitações: e com os animais. 

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 21.

 


21. Há regras económicas que foram eficazes para o crescimento, mas não de igual modo para o desenvolvimento humano integral. Aumentou a riqueza, mas sem equidade, e assim «nascem novas pobrezas». Quando dizem que o mundo moderno reduziu a pobreza, fazem-no medindo-a com critérios doutros tempos não comparáveis à realidade atual. Pois noutros tempos, por exemplo, não ter acesso à energia elétrica não era considerado um sinal de pobreza nem causava grave incómodo. A pobreza analisa-se e compreende-se sempre no contexto das possibilidades reais de um momento histórico concreto.

Há uma ideia de que um regime económico que permita apenas a alguns serem possuidores da maioria de riqueza do planeta e deixar todos sozinhos a decidirem da sua vida é tudo quanto basta para uma sociedade progredir. Parece-me tratar-se aqui, no mínimo, de um pensamento ilusório (“wishful thinking”´): a história tem-nos mostrado que isto nunca acaba bem e que, entretanto, há que contabilizar o sofrimento de biliões de seres vivos (todos os que vivemos neste planeta).

A pobreza dos outros (seja ela de que tipo for) deve sempre incomodar-nos porque ela causa infindáveis sofrimentos. Uso deliberadamente a palavra “infindáveis” porque muitos estudos mostram que é muito mais fácil cair na pobreza do que sair dela – aliás, vários estudos referem que, nos países da OCDE, para que uma criança saia da pobreza em que a sua família vive, são precisas, em média, cinco gerações até ela conseguir chegar a um padrão de vida médio; e, fora destes países, o número de gerações necessárias aumenta substancialmente.

Julian Barnes – O Papagaio de Flaubert

  Quetzal, 2019 Julian Barnes é o mais continental dos escritores anglo-saxónicos. Entre outras coisas, vê-se isso pelo fascínio que ele dem...