segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 36.

 


36. Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio. Além disso, não se deveria ignorar, ingenuamente, que «a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca». O princípio «salve-se quem puder» traduzir-se-á rapidamente no lema «todos contra todos», e isso será pior que uma pandemia.

O que podemos opor às forças da nossa sociedade atual que nos empurram para o isolamento, o anonimato, a alienação, a solidão, o medo (ou ansiedade) e a depressão? Exatamente: a cocriação de uma «comunidade de pertença e solidariedade».

Porque só ela satisfaz uma das necessidades primordiais do ser humano: a necessidade de confiar e de pertencer.

Porque, além disso, também garante um “bem comum” a que as pessoas podem recorrer em caso de necessidade. Se ela não existir, onde podemos encontrar uma real segurança na nossa vida? Onde podemos procurar ajuda quando estivermos (falo não só ao nível individual, mas também familiar e social) na penúria ou a caminhar para ela? Onde podemos encontrar ajuda para os nossos familiares (por exemplo, crianças ou idosos), quando não estamos presentes no local?

Por conseguinte, a questão primordial é: como podemos fazer surgir e alimentar esta «comunidade de pertença e solidariedade»?

Aponto algumas possibilidades:

  • percebermos  as semelhanças que temos entre todos, 
  • reconhecermos que dependemos dos outros e que eles dependem nós, 
  • disponibilizarmo-nos para manter essa interdependência através de dádivas e de ações que vão ao encontro do que os outros precisam, 
  • lutarmos para que sejam implementadas soluções políticas e económicas que reforcem esta comunidade entre todos,
  • fazermos parte de estruturas comunitárias já existentes ou criando novas e úteis que acrescentem valor à comunidade, 
  • e cultivarmos a atitude mental de ser membro de uma comunidade que é muito mais e melhor que a simples soma dos seus indivíduos.

Diz-nos o Papa: O princípio «salve-se quem puder» traduzir-se-á rapidamente no lema «todos contra todos», e isso será pior que uma pandemia.

Na verdade, muito pior, penso eu. Basta olhar para a história passada da humanidade para perceber claramente que, sempre que optámos por destruir o sentido de comunidade e de pertença mútua, o resultado foi morte e sofrimento infindáveis para milhares ou mesmo milhões de pessoas (para não falar do incomensurável sofrimento e morte dos outros seres vivos que partilham connosco este planeta).

Claro que , nesta nossa sociedade um tanto hipócrita, ninguém usa estas expressões ("salve-se quem puder" e "todos contra todos"). Mas não se ouvirão outras equivalentes? Por exemplo, após o governo Sócrates ter mudado a avaliação dos professores para uma avaliação competitiva, quantas vezes ouvi as pessoas dizerem: “Agora, é cada um por si”! E, à medida que, depois disso, esse tipo de avaliação foi sendo disseminado por outros setores de atividade, cada vez ouvi mais pessoas a afirmá-lo.

É absolutamente essencial que todos tomemos consciência de que o lema do “salve-se quem puder” e outros equivalentes são uma condenação à morte para a parte da humanidade mais fraca e vulnerável, ao mesmo tempo que servem para preservar muitas vezes aqueles que são os piores e mais desumanos.

Termino, evocando John Donne e o seu famoso excerto da Meditação XVII. Nunc lento sonitu dicunt, morieris:

Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte do mundo. Se um torrão de terra é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

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