terça-feira, 16 de novembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 37.

 

Sem dignidade humana nas fronteiras

37. Tanto na propaganda de alguns regimes políticos populistas como na leitura de abordagens económico-liberais, defende-se que é preciso evitar a todo o custo a chegada de pessoas migrantes. Simultaneamente, argumenta-se que convém limitar a ajuda aos países pobres, para que toquem o fundo e decidam adotar medidas de austeridade. Não se dão conta que, atrás destas afirmações abstratas difíceis de sustentar, há muitas vidas dilaceradas. Muitos fogem da guerra, de perseguições, de catástrofes naturais. Outros, com pleno direito, «andam à procura de oportunidades para si e para a sua família. Sonham com um futuro melhor, e desejam criar condições para que se realize».

Defendem isso, mas depois aproveitam-se desses migrantes para trabalhos esgotantes e em péssimas condições, muito próximas da escravatura. Condições às quais, aliás, nenhum nacional aceitaria submeter-se. Criticam esses países, mas financiam as suas elites corruptas e equipam-nas com o armamento mais do que suficiente para que elas possam manter esses regimes ad infinitum.

Além do mais, aqui em Portugal, há muitos postos de trabalho para os quais já não se encontram trabalhadores (provavelmente, por causa dos salários miseráveis oferecidos, ausência de contratos e incapacidade de arranjar casa a preços aceitáveis). A propósito desta dificuldade em encontrar trabalhadores portugueses, veja-se o que aqui, a título de exemplo, diz Raul Martins, presidente da Associação da Hotelaria de Portugal: 

O que estamos a tentar (…) é criar fluxos de importação de mão-de-obra com países específicos, desde logo com os que formam a CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa]. (Público online de 10-11-2021)

Independentemente da bondade ou não destas intenções, o que me pergunto muitas vezes é como é que há pessoas que pensam nos outros como abstrações e não têm capacidade de os ver como seres humanos, no essencial em tudo semelhantes a si próprios – pelo menos, no sofrimento e no desejo de felicidade, para si e para os seus.

Para não me colocar num pedestal, também me interrogo a mim mesmo se não padeço do mesmo mal, isto é, o de fazer «afirmações abstratas», sem consideração pelas vidas reais «dilaceradas» de muitos seres humanos. 

Começo, então, por trazer à minha consciência aquelas pessoas que defendem teorias e práticas que eu abomino visceralmente. E aí já percebo um pouco a dificuldade em conseguir não olhar para essas pessoas como se fossem objetos.

Depois penso que tenho 63 anos de uma vida sempre a pôr como prioridade procurar ser uma pessoa melhor (mas com um caminho ainda tão longo à minha frente!). Ou seja, um percurso que outros muito legitimamente não escolheram seguir, optando antes por outras prioridades para a sua vida, escolha feita umas vezes em liberdade, outras vezes por necessidade (o que me impede, aliás, de exigir dessas pessoas o que exijo de mim).

Mesmo assim, continuo a acreditar que, neste planeta, é possível esforçarmo-nos por nos tratarmos uns aos outros (sem exceções, mas principalmente os mais vulneráveis e desamparados) com fraternidade, eu que detesto e tenho pavor à violência, sob todas as formas em que ela surge e se exprime!…

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