domingo, 27 de junho de 2021

Salvador Santos, Selvagem

 


Publicações Dom Quixote, 2021


Comecemos com uma partilha: sou tomado por uma pena imensa de não ser capaz de transmitir e de explicar tudo o que sinto e penso ao ler estes poemas. Aqui ficará apenas uma tentativa um tanto inábil.

Logo a uma primeira leitura, encontramos nesta obra uma capacidade agudíssima de observar a vida comum que escapa a todos nós, porque talvez não estejamos (não consigamos ou não queiramos estar?) suficientemente atentos.

Mesmo quando essa vida comum não nos escapa, vamos poder surpreender-nos aqui com olhares diferentes e bem mais lúcidos. Que surgem como relâmpagos a deixar-nos ver, ver com uma nitidez absoluta, a beleza do que nos rodeia no nosso rotineiro dia-a-dia. Na verdade, as imagens felizes que o poeta partilha connosco neste livro poderiam facilmente constituir uma lista infindável!


Um dos modos de o poeta nos encantar é estilhaçando a realidade e, com os estilhaços, ordenar uma realidade poética, diferente e original (veja-se, por exemplo, o poema "Mobiliário").

Ou contando histórias que são, muitas vezes, também História, tanto a presente ("Compradores") como a passada ("Mercado").


Registe-se também a presença inesperada de outros para além da dos adultos: por exemplo, de crianças e de cães.

Como em "Arqueologia", onde se fala do facto de os estrangeiros que convidamos a vir viver em Portugal são os que não trazem crianças.

Ocorre-me agora refletir como a nossa sociedade procura expulsar as crianças do espaço público, encerrando as poucas que vão restando em recintos fechados (casas, instituições, escolas, etc.), multiplicados de ecrãs. É como se não tivéssemos uso nenhum para as crianças, como se elas fossem excrescências incomodativas e que para nada prestam - mas suspeito que somos nós que não prestamos e que, por isso, nada temos a comunicar às crianças, pelo que a sua presença nos é constrangedora. Será por isso que as afastamos do nosso convívio?

Aprendemos com "Arqueologia" o destino fatal das comunidades que não acolhem as crianças, que não desejam que elas ocupem um lugar central de esperança e de significado para a vida, que apenas as toleram, e mal.

Mas atenção, "Arqueologia" é muito, muito mais do que apenas isto! Será, verdade seja dita, possivelmente um dos melhores poemas deste livro.


É assim que todos estes poemas constituem um estímulo e uma provocação para a inteligência, e um prazer para a sensibilidade. Por vezes, também um sobressalto para a consciência distraída ou adormecida.

Porque este livro também apela ao sentido crítico do leitor e até, bastantes vezes, ao seu sentido de revolta pelos atentados feitos contra a justiça, contra a beleza, contra a memória, etc. (por exemplo, em "Periferia", "Mercado" ou "O cão sozinho").

Mas sempre com uma arte elaborada e atraentemente poética e profunda.


Numa experiência que será comum a muitos leitores deste livro, descubro que vários destes poemas "contam" a minha história pessoal. Por exemplo, em "Naufrágio", é como se o poema me falasse do que é pedido ou perguntado ao professor de Ao Encontro da Felicidade, ao hipnoterapeuta, ao profissional de ajuda que eu também sou...


Não podemos menosprezar o aviso feito pelo poeta na epígrafe que abre o livro. Nem o magnífico último verso que encerra esta obra. Assim, é a noite (por vezes, o entardecer ou a madrugada) que atravessa a maior parte das suas páginas. Ora, diz Vergílio Ferreira que «é contra a noite que uma luz melhor se vê» (Espaço do Invisível IV, p. 16), e por isso é igualmente possível encontrar um rumor de felicidade, de paz ou de alegria a perpassar ao longo destas páginas.


Em suma, nesta experiência fecunda de leitura encontra-se uma arte poética finíssima, que abre múltiplos caminhos até à nossa mente emocional, tanto como até à nossa mente racional, sem nunca elas se obstruírem mutuamente. Estimulando-nos a descobrir sínteses surpreendentes e originais, nítidas como fotografias.

Assim, não seremos os mesmos depois de ler esta extraordinária obra, mas ficaremos seguramente seres humanos melhores e mais sábios. O que não é dizer pouco de um livro de poemas.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Bertolt Brecht, Perguntas de um Operário Letrado

 


Poema escrito em 1935.

Infelizmente, não encontro referências a quem o traduziu. Parece que ele foi publicado, pelo menos uma vez, no livro Poemas do Último Século Antes do Homem, na editora Modo de Ler (atualmente esgotado).

Quando o li, irresistivelmente surgiu-me uma pergunta que sinto fascinante:

Terá José Saramago lido este poema e, quem sabe se muitos anos depois, a partir dele, lhe ter começado a crescer a ideia de escrever o Memorial do Convento? Porque, não há dúvida nenhuma, o Memorial é uma resposta plena ao desafio lançado por Bertolt Brecht neste poema (de que junto o original alemão).

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Perguntas de um Operário Letrado


Quem construiu Tebas, a das sete portas?

Nos livros vem o nome dos reis,

Mas foram os reis que transportaram as pedras?

Babilônia, tantas vezes destruída,

Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas

Da Lima Dourada moravam seus obreiros?

No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde

Foram os seus pedreiros? A grande Roma

Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem

Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio

Só tinha palácios

Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida

Na noite em que o mar a engoliu

Viu afogados gritar por seus escravos.


O jovem Alexandre conquistou as Índias

Sozinho?

César venceu os gauleses.

Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?

Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha

Chorou. E ninguém mais?

Frederico II ganhou a guerra dos sete anos

Quem mais a ganhou?


Em cada página uma vitória.

Quem cozinhava os festins?

Em cada década um grande homem.

Quem pagava as despesas?


Tantas histórias

Quantas perguntas.

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Fragen eines lesenden Arbeiters

Wer baute das siebentorige Theben?
In den Büchern stehen die Namen von Königen.
Haben die Könige die Felsbrocken herbeigeschleppt?
Und das mehrmals zerstörte Babylon
Wer baute es so viele Male aufy? In welchen Häusern
Des goldstrahlenden Lima wohnten die Bauleute?
Wohin gingen an dem Abend, wo die chinesische Mauer fertig war
Die Maurer? Das große Rom
Ist voll von Triumphbögen. Wer errichtete sie? Über wen
Triumphierten die Cäsaren? Hatte das vielbesungene Byzanz
Nur Paläste für seine Bewohner? Selbst in dem sagenhaften Atlantis
Brüllten doch in der Nacht, wo das Meer es verschlang
Die Ersaufenden nach ihren Sklaven.

Der junge Alexander eroberte Indien.
Er allein?
Cäsar schlug die Gallier.
Hatte er nicht wenigstens einen Koch bei sich?
Philipp von Spanien weinte, als seine Flotte
Untergegangen war. Weinte sonst niemand?
Friedrich der Zweite siegte im Siebenjährigen Krieg. Wer
Siegte außer ihm?

Jede Seite ein Sieg.
Wer kochte den Siegesschmaus?
Alle zehn Jahre ein großer Mann.
Wer bezahlte die Spesen?

So viele Berichte
So viele Fragen.

Julian Barnes – O Papagaio de Flaubert

  Quetzal, 2019 Julian Barnes é o mais continental dos escritores anglo-saxónicos. Entre outras coisas, vê-se isso pelo fascínio que ele dem...