sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 29.

 

(foto da autoria de FLAN Colectivo)


Globalização e progresso sem um rumo comum

29. O Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb e eu não ignoramos os avanços positivos que se verificaram na ciência, na tecnologia, na medicina, na indústria e no bem-estar, sobretudo nos países desenvolvidos. Todavia «ressaltamos que, juntamente com tais progressos históricos, grandes e apreciados, se verifica uma deterioração da ética, que condiciona a atividade internacional, e um enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido de responsabilidade. Tudo isto contribui para disseminar uma sensação geral de frustração, solidão e desespero, (…) nascem focos de tensão e acumulam-se armas e munições, numa situação mundial dominada pela incerteza, pela deceção e pelo medo do futuro, e controlada por míopes interesses económicos». Assinalamos também «as graves crises políticas, a injustiça e a falta duma distribuição equitativa dos recursos naturais (…). A respeito de tais crises que fazem morrer à fome milhões de crianças, já reduzidas a esqueletos humanos por causa da pobreza e da fome, reina um inaceitável silêncio internacional». Perante tal panorama, embora nos fascinem os inúmeros avanços, não descortinamos um rumo verdadeiramente humano.

Primeiro que tudo, quero ressaltar a preocupação do Papa com a sobrevivência digna das crianças, algo que é generalizadamente menosprezado em todo o lado. Sim, também me choca o silêncio que cobre aquilo que eu considero um verdadeiro “massacre” a ocorrer nos nossos dias, tanto dentro como fora do nosso país (mas de forma mais cruel e insensível fora, claro).

Acredito que os vindouros se sentirão profundamente chocados com a forma como nós, hoje, apesar dos progressos que fizemos, ainda pensamos a condição da criança. E com o que lhes fazemos.

Consideremos agora os interesses económicos: eles sempre existiram e, de facto, deram origem a muitas barbaridades que sempre têm feito dos mais fracos as vítimas por excelência.

Eu vivi noutros tempos, bem piores que os atuais. O que penso estar por detrás deste sentimento geral, relatado pelo Papa, é o facto de as promessas que foram feitas de uma vida desafogada e segura só terem sido cumpridas para uma minoria que, aliás, as conseguiu à custa da imensa maioria.

Ora, acontece que esta maioria que ficou para trás, cada vez mais assustada com um mundo e uma sociedade da qual desconfia, com valores nos quais não se reconhece mas que é obrigada a adotar, fecha-se sobre si própria e vai ficando cada vez mais cega e surda ao sofrimento do resto da humanidade.

Além disso, o que mudou na época atual foi que o valor do consumismo tomou conta de todos os setores da nossa vida, secando tudo à sua volta. Veja-se como valores como a compaixão, a decência, a honestidade e tantos outros passaram a submeter-se ao valor do consumismo e à obrigação de ganhar dinheiro para consumir ainda mais.

Trata-se de um valor imposto de cima, de forma gradual e suave, claro está, mas nem por isso menos impositiva, nomeadamente através da publicidade. Pelo que resistir-lhe significa inevitavelmente uma certa reprovação e ostracização social.

No entanto, por outro lado, não acredito que, por exemplo, há 50 anos, houvesse menos fome do que hoje em dia. Michael Green, no vídeo Os Objetivos Globais em que Obtivemos Progresso, e Aqueles em que Não, diz-nos: «Vivemos num mundo que está muito perto de garantir que ninguém morra de fome, de malária ou de diarreia. Se concentrarmos os nossos esforços, mobilizarmos os nossos recursos, galvanizarmos a vontade política, essa mudança é possível.»

Na verdade, não gosto muito de uma argumentação do tipo “Se (…), então é possível.” Porque este “Se” muitas vezes revela que não é mesmo possível conseguir, que se trata de uma utopia. De qualquer modo, isso não invalida o propósito de não baixar os braços nas nossas exigências para fazer isto acontecer. Termino com um dos principais lemas da minha vida: “Se lutas, podes perder. Se não lutas, estás perdido.” (que ninguém tenha dúvidas: quanta verdade, sentida na minha própria pele, este lema encerra!)

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 28.

 


28. A solidão, os medos e a insegurança de tantas pessoas que se sentem abandonadas pelo sistema, fazem com que se crie um terreno fértil para as máfias. Com efeito, estas impõem-se apresentando-se como «protetoras» dos esquecidos, muitas vezes através de vários tipos de ajuda, enquanto perseguem os seus interesses criminosos. Há uma pedagogia tipicamente mafiosa que, com um falso espírito comunitário, cria laços de dependência e subordinação, dos quais é muito difícil libertar-se.

O Papa retrata aqui uma realidade que está ligada muito mais à história italiana do que à portuguesa . Mas as máfias existem em todo o lado, e Portugal não será certamente uma exceção.

Embora não seja isto a que o Papa se refere, devo confessar que ao acabar de ler este parágrafo surgiram-me à mente as milhares de pessoas com dívidas aos bancos. Pessoas a pagar muito, muito mais do que o valor daquilo que receberam. Pessoas que, não pagando, são punidas, por exemplo, ficando sem casa. Pessoas realmente «abandonadas pelo sistema». Talvez às mãos de outras “máfias”…

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 27.

 

27. Paradoxalmente, existem medos ancestrais que não foram superados pelo progresso tecnológico; mais ainda, souberam esconder-se e revigorar-se por detrás das novas tecnologias. Também hoje, atrás das muralhas da cidade antiga está o abismo, o território do desconhecido, o deserto. O que vier de lá não é fiável, porque desconhecido, não familiar, não pertence à aldeia. Trata-se do território do que é «bárbaro», do qual há que defender-se a todo o custo. Consequentemente, criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o «meu» mundo; e muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável passando a ser apenas «os outros». Reaparece «a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer os muros, muros no coração, muros na Terra, para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas. E quem levanta um muro, quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes. Porque lhe falta esta alteridade».

Quando nos sentimos inseguros, ativa-se o sistema neurológico focado na ameaça e no perigo que, como vimos no post anterior, é muito básico e tem respostas automáticas também muito básicas e primitivas. Por outras palavras, o nosso espírito estreita-se ou é simplesmente posto ao serviço do medo e da fúria. Mais claramente, poderemos talvez ganhar em rapidez (a coisa funcionava muito bem há uns milhares de anos atrás e, hoje, em algumas regiões do globo; mas, na sociedade complexa em que vivemos, que exige de nós respostas complexas, já não é bem assim). Mas perdemos em inteligência. O nosso cérebro racional é “capturado” pelas regiões mais primitivas do nosso sistema nervoso central e até chegamos a ser capazes dos maiores horrores.

Apesar de saber isto tudo, devo admitir que poderia subscrever a parte deste parágrafo que vai até “o «meu» mundo;”. É que ando a sentir algo muito parecido com isto, não exatamente com origem no exterior, mas proveniente do interior da própria sociedade onde vivo, daqueles que, aparentemente, são os meus iguais: uma ameaça a pender sobre mim, sobre os meus e sobre aquilo que eu acho ser a minha civilização (consciente, também, de que posso estar enganado e esta “civilização” ser uma fantasia da minha mente, um “wishful thinking”).

Já não pertence à minha experiência pessoal o corolário que se segue: “e muitos deixam de ser considerados seres humanos (…)”. Ele pode ser real para muitas pessoas, mas a mim só me causa repulsa, embora ache que sou capaz de as compreender: é que, quando o inimigo se torna invisível e difuso, é muito difícil não começar a ficar paranoico.

Como evitá-lo? Aguçando as nossas capacidades de perceção, de pensamento e de abertura não só à informação credível que não nos agrada como também ao debate sério e elevado de ideias e de políticas. Só assim conseguiremos que seja mais difícil sermos enganados e manipulados (e destruídos!) pelos nossos inimigos que se disfarçam de amigos.

Mais uma vez, admito que tenho a tendência para cultivar o “o «meu» mundo;”, como reação à violência que sinto impregnar-se cada vez mais em muita da cultura que me rodeia. Assusta-me deveras essa violência que vejo, por exemplo, em obras de arte contemporânea, sejam pinturas, sejam filmes, séries ou livros de ficção.

No entanto, a verdade é que, a mim, atrai-me o diferente, a alternativa, a pluralidade, nenhuma destas coisas me incomoda, pelo contrário, quanto mais diferente, mais me atrai (desde que a variável da violência esteja totalmente fora da equação).

Aliás, sempre adorei ser professor de turmas com alunos portugueses, estrangeiros, sobredotados, com dificuldades, etc., pois descobri que todos contribuíam para nos tornarmos melhores pessoas (e a mim também melhor professor).

Finalmente, muito interessante a ideia expressa pelo Papa no final do parágrafo. Na verdade, quem constrói muros à sua volta está, de facto, a contruir uma prisão para si, a empobrecer a sua existência e a rejeitar vários horizontes de possíveis enriquecedores da sua vida.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 26.

 


26. Isto não surpreende, se atendermos à falta de horizontes capazes de nos fazer convergir para a unidade, pois em qualquer guerra o que acaba destruído é «o próprio projeto de fraternidade, inscrito na vocação da família humana», pelo que «toda a situação de ameaça alimenta a desconfiança e a retirada». Assim, o nosso mundo avança numa dicotomia sem sentido, pretendendo «garantir a estabilidade e a paz com base numa falsa segurança sustentada por uma mentalidade de medo e desconfiança».

Se desconfiamos dos outros, isso causa-nos insegurança. Esta insegurança surge como uma ameaça à nossa sobrevivência, pelo que o nosso organismo responde-lhe com emoções negativas, entre as quais o medo se destaca largamente (muitas vezes, independentemente da nossa consciência ou racionalidade).

O nosso organismo está construído pela natureza para que este medo dê origem, mais uma vez sem necessitar de uma decisão consciente (muitas vezes, são respostas automáticas), a um de cinco comportamentos (que, no entanto, podem suceder-se uns aos outros, não sendo fixos). Em que três são de ação e dois são de inibição da ação, a saber:

1) Luta, quando estimamos que somos capazes de levar de vencida quem causou esse medo e, assim, de anular a ameaça que ele representa.

2) Fuga, quando, pelo contrário, percebemos que não temos hipóteses de triunfar sobre quem nos causou o medo, mas temos capacidade para nos pormos fora do seu alcance, assegurando a nossa sobrevivência.

3) Submissão, quando damos conta que nenhuma das duas respostas anteriores tem possibilidade de sucesso.

4) Paralisação, quando concluímos que nenhuma das três respostas anteriores é capaz de assegurar a nossa sobrevivência.

5) Finalmente, quando nos sentimos encurralados porque nenhum destes comportamentos foi suficiente para afastar a ameaça ou para, pelo menos, nos dar a esperança de a afastar, o nosso organismo reage com uma fúria desesperada (bastantes vezes até dirigida para nós próprios – é por essa razão que, por exemplo, são muitos os casos de assédio moral no local de trabalho que acabam em suicídio).

São cinco respostas muito simples e básicas, pelo que resultam quase sempre desadequadas na sociedade complexa e exigente de hoje.

Pelo que, onde há medo e desconfiança, nunca pode surgir a segurança no nosso espírito. Portanto, há que descobrir quais as reais causas dessa insegurança e resolvê-las. Tentar eliminá-las não resulta, pois elas nunca desaparecem totalmente. Além de que o próprio processo de eliminação é habitualmente violento e causador de sofrimento, pelo que não pode trazer felicidade. Por outras palavras, tenhamos presente que de tigres não podem nascer cordeiros!


Proponho que a única saída com alguma probabilidade de sucesso (em linha com o que o Papa nos apresenta nesta encíclica "Fratelli Tutti") é irmos ao encontro daquele que nos parece ameaçar a nossa segurança, sabendo que também ele se sente inseguro e que também ele, tal como nós, deseja alcançar a segurança e a felicidade, para si e para os seus.

Sendo verdade que ambos desejamos o mesmo, o acordo não será difícil de alcançar, desde que nenhum de nós queira “vencer” e humilhar o outro. Porque a realidade que todos nós já experimentámos alguma vez nas nossas vidas é que, quando vencemos alguém, arranjamos um adversário; mas quando o convencemos, ganhamos um aliado!

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 25.

 

(Foto: https://pt.wikipedia.org/wiki/Segunda_Guerra_Mundial)


Conflito e medo

25. As guerras, os atentados, as perseguições por motivos raciais ou religiosos e tantas afrontas contra a dignidade humana são julgados de maneira diferente, segundo convenham ou não a certos interesses fundamentalmente económicos: o que é verdade quando convém a uma pessoa poderosa, deixa de o ser quando já não a beneficia. Estas situações de violência vão-se «multiplicando cruelmente em muitas regiões do mundo, a ponto de assumir os contornos daquela que se poderia chamar uma “terceira guerra mundial por pedaços”».

Enfim, isto não se passa só com as pessoas poderosas:

Nós todos julgamos as coisas, principalmente as problemáticas, desfavoravelmente quando nos sentimos prejudicados por elas. Quando prejudicam apenas os outros, somos muito mais tolerantes. Há um conto delicioso de Oscar Wilde, O Foguete de Lágrimas (in Contos, de Oscar Wilde, Portugália Editora, 1969, p. 231), em que este é um dos temas:

(…) sou sensível ao máximo. Estou convencido de que não há no mundo ninguém mais sensível do que eu.

- O que é ser sensível? – perguntou um petardo à roda-de-fogo.

- É quem, sofrendo dos calos, anda sempre a pisar os dos outros – respondeu baixinho a interpelada. (…).

Depois há todos aqueles que, não sendo poderosos, põem-se ao serviço dos poderosos, funcionando como seus megafones ou, ainda pior, como seus sicários. Talvez alguns de nós, numa ou noutra altura das nossas vidas, o tenhamos feito sem nos darmos conta. Mas muitos fazem-no por um salário, claro. E certamente até haverá alguns que, não sendo nem ricos nem poderosos, o fazem por convicção.

A refletir se, no nosso dia-a-dia e nas ideias e práticas que defendemos, não estamos a ser coniventes com malfeitores poderosos. Porque se é verdade que as guerras (sob quaisquer formas que elas tomem) são decididas por esses poderosos, não podemos deixar de constatar que elas, no terreno, são levadas a cabo pelos seus subalternos (os poderosos, aliás, nunca lá aparecem).

sábado, 11 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 24.

 

Esta imagem é um trabalho do cartoonista Vasco Gargalo que, em 2021, foi selecionado como vencedor, por unanimidade, entre 460 cartoons de 65 países, que responderam ao desafio "E se o seu lápis fosse uma ferramenta contra o trabalho forçado? ".


24. Reconhecemos igualmente que, «apesar de a comunidade internacional ter adotado numerosos acordos para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este fenómeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura. (…) Hoje como ontem, na raiz da escravatura, está uma conceção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objeto. (…) Com a força, o engano, a coação física ou psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim». As redes criminosas «utilizam habilmente as tecnologias informáticas modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do mundo». E a aberração não tem limites quando são subjugadas mulheres, forçadas depois a abortar; um ato abominável que chega mesmo ao sequestro da pessoa, para vender os seus órgãos. Isto torna o tráfico de pessoas e outras formas atuais de escravatura num problema mundial que precisa de ser tomado a sério pela Humanidade no seu conjunto, porque «assim como as organizações criminosas usam redes globais para alcançar os seus objetivos, assim também a ação para vencer este fenómeno requer um esforço comum e igualmente global por parte dos diferentes atores que compõem a sociedade».

Que há que se possa acrescentar a isto? Apenas pensarmos um pouco no que podemos fazer em relação ao trabalho forçado.

Primeiro, manifestarmos a nossa revolta por diversos meios, incluindo pelo apoio à ação de organizações que lutam contra a escravatura no mundo.

Segundo, exigirmos intransigentemente dos responsáveis políticos uma prática de fiscalização eficaz, de punição exemplar e de divulgação pública das empresas que utilizam o trabalho escravo ou forçado na sua laboração. Note-se que este último ponto é absolutamente fundamental para que eu, um cidadão comum, possa escolher com consciência ser um consumidor ético, comprando sem promover a injustiça e a selvajaria (pelo menos neste domínio).

Interrogo-me muitas vezes se as empresas que lucram com este tipo de trabalho desumano não receiam que percamos a confiança nelas, criando em nós uma profunda aversão aos produtos que vendem. A denúncia pública e publicada destas empresas contribuiria certamente para uma ética mais humana. Falo de empresas, mas trata-se, no fundo, dos seus CEOs e esses, com os seus ordenados milionários (e a consequente aprovação social de uma sociedade que valoriza cada vez mais o sucesso financeiro, obtido seja de que maneira for), nunca têm muito a recear, infelizmente.

Como acredito que esta aversão que surge em nós perante as práticas assassinas destas empresas têm a sua raiz num sentido básico de decência, defendo ainda que ele deve ser estimulado naqueles que ainda não são sensíveis a esta problemática.

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 23.

 


23. De modo análogo, a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam outra. Com efeito, «duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos».

Continuamos a refletir sobre estes parágrafos que se encontram reunidos sob o tópico «Direitos humanos não suficientemente universais».

É muito interessante o Papa escrever isto porque, irresistivelmente, nos lembramos que exatamente a Igreja (aliás, como em quase todas as religiões) é uma das organizações onde não são reconhecidos «idênticos direitos» a mulheres e homens. Portanto, aqui, o Papa está a falar para fora, mas também para dentro da Igreja.

Depois, relata-se aqui uma evidência: as mulheres têm muito menos poder para se defenderem dos abusos, normalmente dos homens – é talvez por isso que há muito mais vítimas mulheres que homens.

Por isso, várias interrogações se acumulam em mim: Porque será tão difícil para os seres humanos tratarem-se como iguais? Afinal, onde está a nossa racionalidade? Ao serviço das crenças mais estúpidas? Ou da animalidade mais mecânica? Porque é que os homens revelam tanta falta de nobreza e de cavalheirismo em privado (e, infelizmente, também muitas vezes em público)? Qual a satisfação retirada de fazer sofrer os outros? Perguntas (ainda) sem resposta, creio.

Posto isto, proponho agora uma experiência a complementar na leitura deste parágrafo: onde surge a palavra «mulheres», experimentemos agora substituí-la por «crianças».

Veremos como praticamente todo este texto mantém a sua verdade, tanto mais aguda e pungente quanto sabemos que, de todas as pessoas, as crianças são as mais maltratadas, desprotegidas e vulneráveis … e as mais inocentes, não o esqueçamos.

domingo, 5 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 22.

 


Direitos humanos não suficientemente universais

22. Muitas vezes constata-se que, de facto, os direitos humanos não são iguais para todos. O respeito destes direitos «é condição preliminar para o próprio progresso económico e social de um país. Quando a dignidade do homem é respeitada e os seus direitos são reconhecidos e garantidos, florescem também a criatividade e a audácia, podendo a pessoa humana explanar suas inúmeras iniciativas a favor do bem comum». Mas, «observando com atenção as nossas sociedades contemporâneas, deparamos com numerosas contradições que induzem a perguntar-nos se deveras a igual dignidade de todos os seres humanos, solenemente proclamada há 70 anos, é reconhecida, respeitada, protegida e promovida em todas as circunstâncias. Persistem hoje no mundo inúmeras formas de injustiça, alimentadas por visões antropológicas redutivas e por um modelo económico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar o homem. Enquanto uma parte da humanidade vive na opulência, outra parte vê a própria dignidade não reconhecida, desprezada ou espezinhada e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados». Que diz isto a respeito da igualdade de direitos fundada na mesma dignidade humana?

Quando as pessoas não têm de estar permanentemente a lutar pela sobrevivência, seja esta material ou psíquica, ficam mais livres de dedicar os seus melhores esforços em áreas que contribuem para o bem comum. É por isso que "O respeito destes direitos «é condição preliminar para o próprio progresso económico e social de um país."

Porém, numa sociedade organizada à volta do lucro como seu pilar essencial, o bem comum interessa pouco. Aliás, como interessa pouco a dignidade das pessoas.

O que fazer, então?

Talvez possamos começar por não valorizarmos o dinheiro, nem nenhuma manifestação da sua posse (recusando, por exemplo, o consumismo).

Podemos também votar em políticos e partidos que, sem deixarem de reconhecer a importância do dinheiro e do bem estar material, mostrem claramente a intenção de colocar o foco da sua ação nestas coisas bem mais importantes e urgentes: a dignidade de cada um e o bem-estar para todos.

Por fim, valorizemos estas duas vertentes de uma vida melhor, dando o exemplo com as nossas ações na vida do dia a dia, com os pares, com os subordinados, com os idosos, com as crianças; ao que eu acrescentaria sem hesitações: e com os animais. 

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 21.

 


21. Há regras económicas que foram eficazes para o crescimento, mas não de igual modo para o desenvolvimento humano integral. Aumentou a riqueza, mas sem equidade, e assim «nascem novas pobrezas». Quando dizem que o mundo moderno reduziu a pobreza, fazem-no medindo-a com critérios doutros tempos não comparáveis à realidade atual. Pois noutros tempos, por exemplo, não ter acesso à energia elétrica não era considerado um sinal de pobreza nem causava grave incómodo. A pobreza analisa-se e compreende-se sempre no contexto das possibilidades reais de um momento histórico concreto.

Há uma ideia de que um regime económico que permita apenas a alguns serem possuidores da maioria de riqueza do planeta e deixar todos sozinhos a decidirem da sua vida é tudo quanto basta para uma sociedade progredir. Parece-me tratar-se aqui, no mínimo, de um pensamento ilusório (“wishful thinking”´): a história tem-nos mostrado que isto nunca acaba bem e que, entretanto, há que contabilizar o sofrimento de biliões de seres vivos (todos os que vivemos neste planeta).

A pobreza dos outros (seja ela de que tipo for) deve sempre incomodar-nos porque ela causa infindáveis sofrimentos. Uso deliberadamente a palavra “infindáveis” porque muitos estudos mostram que é muito mais fácil cair na pobreza do que sair dela – aliás, vários estudos referem que, nos países da OCDE, para que uma criança saia da pobreza em que a sua família vive, são precisas, em média, cinco gerações até ela conseguir chegar a um padrão de vida médio; e, fora destes países, o número de gerações necessárias aumenta substancialmente.

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 20.



 20. Este descarte exprime-se de variadas maneiras, como, por exemplo, na obsessão por reduzir os custos laborais sem se dar conta das graves consequências que provoca, pois o desemprego daí resultante tem como efeito direto alargar as fronteiras da pobreza. Além disso, o descarte assume formas abjetas, que julgávamos já superadas, como o racismo que se dissimula mas não cessa de reaparecer. De novo envergonham-nos as expressões de racismo, demonstrando assim que os supostos avanços da sociedade não são assim tão reais nem estão garantidos de uma vez por todas.

O Papa fala-nos aqui de dois males que assolam a humanidade há séculos: a ganância e o racismo.

Comecemos pela ganância.

É normal que todos a sintamos, numa ou noutra altura das nossas vidas. O nosso cérebro empurra-nos para a busca e acumulação de recursos.

Mas isso não quer dizer que devamos deixar estes nossos impulsos primitivos dominarem a nossa mente. Diminuir os custos laborais (por exemplo, recorrendo a despedimentos e cortes salariais, para dar lucros e ordenados milionários a quem é mais poderoso) é uma forma miserável de ganância, por causa das terríveis consequências sociais que tem.

Felizmente, temos um cérebro racional que pode regular razoavelmente estes impulsos, desde que o queiramos.

Mas temos, também, de modificar a cultura que, no fundo, estamos a alimentar hoje em dia, em que o sucesso é exacerbadamente medido pelas manifestações de riqueza, tornando a ganância num valor a cultivar.

Quanto ao racismo, tratar-se-á de um problema essencialmente cultural? Talvez sim, mas sabemos, no entanto, que joga a um nível profundo com o medo do diferente. Até a ciência, numa das suas páginas da história mais tristes, no passado, contribuiu para este flagelo. Felizmente que agora veio corrigir e dizer-nos que está provado que não existe isso de “raças”.

Mais uma vez, é ao nosso cérebro racional que devemos recorrer para rejeitar impulsos, ideias e comportamentos que nos envergonham, mas que podem surgir em qualquer momento (devido à educação recebida, à influência de líderes, ou de outras pessoas significativas, ou de grupos, etc.).

Finalmente, o Papa alerta-nos para uma grande verdade: que a luta por uma humanidade melhor e mais elevada nunca está terminada.

Não podemos nunca baixar os braços.

Julian Barnes – O Papagaio de Flaubert

  Quetzal, 2019 Julian Barnes é o mais continental dos escritores anglo-saxónicos. Entre outras coisas, vê-se isso pelo fascínio que ele dem...