sábado, 24 de julho de 2021

Fyodor Dostoevsky, Os Irmãos Karamazov, 1ª Parte

 


Círculo de Leitores, 1981


Esta é uma obra tão gigantesca que, quando falamos dela, ficamos sempre aquém, tanto em profundidade, como em extensão.

Os temas aqui abordados são muitos, alguns em toda a sua complexidade: questões da fé e da existência ou não de Deus, bem como as respetivas consequências; relações familiares e o papel de um pai; amor, paixão e ciúme; o uso do conhecimento psicológico para compreender o outro, chegar até ele e até para o amar, mas nunca para o condenar; etc.

Os que mais me envolveram e comoveram foram: o problema da inocência e da culpa; a crítica à crueldade com que as crianças são habitualmente tratadas; e a crítica à violência exercida sobre os animais. Infelizmente, temas ainda dilacerantemente atuais, mesmo passados 142 anos (o livro é de 1879).

Entre outras características extraordinárias, destaco a forma como Dostoievsky usa o conhecimento psicológico para chegar aos outros, para se aproximar, aceitar, compreender e, em alguns casos, até amar. Nunca para condenar ou excluir. Veja-se a minha primeira citação:


(13)

(...) Muitas vezes as pessoas, incluindo as maldosas, são ingénuas, mais simples do que supomos.


(19)

(...), e se escolheu a vida monástica foi porque só ela o atraía e porque representava a ascensão ideal para o amor radioso da sua alma liberta das trevas e dos ódios da Terra. (...)

Pergunto-me se não teremos todos esta aspiração (é certo que, por vezes, enterrada muito fundo)? Eu já tive essa aspiração de forma muito aguda e, tal como Aliosha, considerei a hipótese da vida monástica. Só que, entretanto, veio o ateísmo (descobri, por exemplo, que Deus não tem muito de "radioso" nem de "amor" - falo de Deus, claro, não de Jesus) e o ceticismo em relação a qualquer religião. E essa aspiração foi ficando para trás, já que deixou de ser alimentada. Mas ela está cá, não desapareceu nem morreu. Por isso, este excerto me tocou tanto.


(21)

(...): Aliosha era de um pudor bravio, de uma castidade exaltada. Não podia tolerar certas frases, certas conversas acerca de mulheres, que são, infelizmente, tradicionais nas escolas. (...) Vendo que Alosha Karamazov tapava logo as orelhas quando falavam «daquilo», eles logo faziam círculo em volta do rapaz, baixando-lhe as mãos à força e gritando-lhe obscenidades aos ouvidos. (...)

Tenho uma experiência pessoal semelhante à de Aliosha. Também os meus colegas me fizeram algo de parecido. Talvez por não termos muito contacto com raparigas? Eu, por exemplo, até aos 18 anos, estive sempre em escolas masculinas.

Só que em mim, a razão não era o "pudor bravio", mas a consciência de que a linguagem obscena é violenta, tem uma agressividade eu não suportava (e continuo a não suportar).


(40)

[Starets Zósimas:] (...) e, sobretudo, não tenha vergonha de si mesmo, pois todo o mal provém daí.

Brilhante intuição de Dostoievsky, confirmada pela ciência um século depois. Na realidade, a vergonha (que nos afasta dos outros, ao contrário da culpa, por exemplo) é uma característica nefasta transversal à maior parte das doenças mentais graves.


(52)

(...) «Amo», dizia ele, «a humanidade, mas, com grande surpresa minha, quanto mais amo a humanidade em geral menos o faço em relação às pessoas individualmente consideradas. (...)

Uma das frases famosas de Dostoievsky.


(76)

[Fiodor Pavlovich, pai de Aliosha] (...) Queria vingar-se nos outros da sua própria vileza. Recordou-se de que um dia, quando lhe perguntaram porque detestava determinado indivíduo, dera a seguinte resposta: « Não me fez mal nenhum, é certo, mas preguei-lhe uma partida e daí para cá passei a detestá-lo.»

1ª nota: na página 41, o starets avisa-o de que não deve mentir a si próprio para não perder o respeito por si próprio. Mas o starets estava enganado: Pavlovich não mente a si próprio, como se pode observar nesta e noutras passagens.

2ª nota: Tantos ódios, tantas maldades feita, não poderão ter esta razão por detrás? As pessoas que odeiam os ciganos ou as pessoas de diferentes sexualidades, expressando esse ódio de formas repugnantes, não sentirão um profundo desprezo por si próprias que procuram aliviar desta maneira?

3ª nota: Quando somos objeto de aversão por parte de outros, sem nada termos contribuído para isso, talvez nos ajude pensar que é o sentimento de vergonha por alguma "vileza" que cometeram que os leva a comportarem-se dessa maneira connosco. Talvez este pensamento nos ajude a perdoar-lhes e a aceitá-los como eles são, a fim de, se nos derem essa oportunidade, os podermos modificar.


Fyodor Dostoevsky, Os Irmãos Karamazov, 2ª Parte

 

(156)

[Aliosha] (...) Incapaz de amar passivamente, a sua afeição pelos outros exprimia-se pelo auxílio. Mas, para isso, tinha de saber o que convinha a cada um e então valer-lhes.

Mais uma perceção lúcida e inspirada de Dostoievsky! Por isso, Paul Gilbert, o investigador, professor e psicólogo criador da Terapia Focada na Compaixão, diz-nos numa entrevista, Compassion is an antidote to cruelty, em 2018:

«Commitment to compassion has two aspects – one is about turning towards suffering, and the second is about finding out how to alleviate and prevent it where possible. That’s important because people often forget the wisdom part of compassion, the desire to discover how to be helpful. For example, if I see someone fall in a river and I think to myself, ‘Ah, I must jump in and save them’, that’s good intention, but if I can’t swim it’s not very helpful. If you wanted to help people as a health professional but you weren’t prepared to study, then there’s not much behind your intention. So having both intentionality and commitment to learn how are really important in compassion. Compassion isn’t just this nice feeling, it’s the preparedness to turn towards difficulty and the commitment to try to work it out by taking action.»


(178)

[Lise] (...) diga-me, Alexei Fiodorovich, não haverá em toda esta conversa... desprezo por esse infeliz. Dissecamos-lhe os sentimentos com certa petulância, se não me engano...

Muito sagaz. É uma questão muito pertinente. De repente, apercebi-me que, quando "disseco" os sentimentos dos outros, há por vezes uma sensação de satisfação e de superioridade que, realmente, torna penetrante esta observação de Lise. Também constituiu uma revelação a resposta de Aliocha:

- Não, Lise, não há tal coisa - respondeu firmemente Aliocha, como se já previsse a objeção. - Pensei nisso pelo caminho. Aprecie por si mesma: que desdém pode existir se somos iguais a ele, se todos o são? Não valemos mais. Ainda que fôssemos melhores, não deixaríamos de ser-lhe iguais na sua situação. Ignoro o que acontece consigo, Lise, mas quanto a mim sinto que, em muitas ocasiões, tenho coração mesquinho. O dele não, antes é bastante delicado. Disse-me uma vez o meu starets: «Devemos tratar os outros como crianças e alguns, até, como doentes.»

Também muito inteligente e chama-nos a atenção para algo que tendemos a esquecer. Mas isto não responde diretamente à questão posta por Lise. Eu posso saber isto tudo e continuar a sentir aqueles sentimentos. O problema aqui é que Aliocha responde num nível cognitivo a uma questão que foi colocada num nível emocional. Embora, um pouco antes do fim, admita que talvez a Lise tenha razão, pelo menos em certas ocasiões. A afirmação final do starets dá para os dois lados: tanto pode servir para termos uma atitude de compreensão e tolerância para com os outros, como para ter a tal atitude de desprezo.

Lise remata de forma deliciosa:

- Alexei Fiodorovich, é tão bondoso! Mas às vezes parece pedante. Contudo, vê-se que o não é. (...)


(188)

[Ivan Karamazov] (...) Sabes o que eu dizia há pouco comigo mesmo? Se perdesse a fé na vida, se duvidasse da mulher amada, da ordem universal, se me persuadisse de que tudo é um caos infernal e maldito, se me dominassem os horrores da desilusão, mesmo assim quereria viver. depois de experimentar a taça encantada , só a deixarei quando estiver vazia. (...) Deseja-se viver e vive-se, mesmo a despeito da lógica. Não acreditarei na ordem universal, mas gosto dos rebentos das plantas na Primavera, do céu azul, simpatizo com certas pessoas, sem saber porquê. (...) A inteligência e a lógica não tomam parte nisto, é o coração que ama, são as entranhas... (...)

Isto liga-me irresistivelmente a algumas passagens de Camus (O Mito de Sísifo, por exemplo?) ou de Vergílio Ferreira. Compreendo, porque o vivi, este encanto pela vida que fica depois de sermos despojados de muitas ideias e crenças; para sermos seduzidos pelas coisas simples que nos são dadas gratuitamente pelo mundo natural.


(193)

- Devo confessar-te uma coisa - principiou Ivan. - Nunca cheguei a compreender como se pode amar o próximo. Na minha opinião, é precisamente o próximo que não podemos amar; pelo menos, só poderemos amá-lo à distância. (...) É preciso que um homem se mantenha oculto para que possam amá-lo; desde que mostra a cara, o amor desaparece.

(...)

Suponhamos, por exemplo, que sofro profundamente; outra pessoa não conhecerá até que ponto sofro, porque é outra pessoa, e não eu. Para mais, é raro que um indivíduo consinta em reconhecer o sofrimento alheio, como se fosse uma indignidade! E porquê? Talvez porque cheiro mal, porque tenho cara de parvo ou porque pisei um calo desse senhor. Por outro lado, existem diversos sofrimentos: o que é humilhante, a fome, por exemplo, esse o meu benfeitor reconhecerá, mas, desde que o meu sofrimento seja mais elevado, se tiver origem numa ideia [ou numa doença mental], suponhamos, então ele não acreditará, porque, observando-me, não vê em mim o semblante que a sua imaginação empresta a um homem que sofre por uma ideia. Logo cessará os seus benefícios, e isso sem maldade. (...)

Que posso dizer? Isto é tão verdade. Porquê? Não sei o caso dos outros, mas, por mim, é por causa do medo que me inspiram as pessoas quando estão ao pé de mim. Penso que este medo estará também por detrás destas atitudes de falta de amor ao próximo. Medo de quem é diferente, ou de quem é feio e está sujo, ou de quem mostra a sua revolta, etc. O meu medo tem só de diferente o estender-se a toda a gente, sem distinção.

É também verdade que é muito mais difícil empatizar com o sofrimento mental do que com o físico. Só assim se explica que a sociedade tenha proibido a dor física nos locais de trabalho, nas escolas e nas famílias, embora se mostre indiferente à dor mental.


(194)

(...) Queria mostrar-te o meu ponto de vista, falar dos sofrimentos da humanidade em geral, mas é preferível limitar-me aos sofrimentos das crianças. A minha argumentação ficará reduzida à décima parte; contudo, será melhor assim. Perco com isso, bem entendido. Em primeiro lugar, pode-se amar as crianças de perto, até as sujas e feias (para mim, aliás, não há crianças feias). Em segundo lugar, se não falo dos adultos, é porque além de serem repelentes e não merecerem amor, comeram o fruto proibido, distinguiram o bem do mal e tornaram-se "semelhantes a deuses". Continuam a comê-lo. As crianças não o comeram e ainda são inocentes. (...)

Aqui se inicia, na longa fala de Ivan Karamazov ao seu irmão Aliocha, uma série de reflexões sobre o mal. Até à página 200, refere em particular aquele que provoca um terrível sofrimento nas crianças. Neste passo da obra, Dostoievsky faz lembrar irresistivelmente Padre Américo com o seu grito "Não há crianças más!"

(...) Compara-se por vezes a crueldade dos homens à das feras; é uma injúria que se faz aos animais. As feras nunca chegam aos requintes dos homens. O tigre dilacera a sua vítima e devora-a, nada mais.  Nunca lhe ocorreria (...)

Tão verdade! O que torna ainda mais desumano e incompreensível o sofrimento que infligimos desnecessariamente aos animais.

— Penso que se o Diabo não existe, se foi criado pelo homem, este o fez à sua imagem.

Normalmente, dizemos isto da criação dos deuses pelos homens. Dostoievsky surpreende-nos para agitar as nossas consciências.


(196)

(...) No nosso país, torturar com pancada constitui uma tradição histórica, um prazer fácil e imediato. (...)

Dostoievsky fala primeiro em espancar animais e, depois, em maltratar crianças com castigos violentos e desumanos, apresentando casos como exemplos. Eu reconheço no meu pai alguns dos traços dos pais aqui descritos. E ontem, tal como hoje, a opinião pública defende os maus-tratos feitos a crianças no ambiente familiar.


(197)

(...) Repito, há muita gente que gosta de torturar as crianças, apenas as crianças. Para com os outros indivíduos mostram-se afáveis, humanos, mas sentem prazer em provocar o sofrimento dos menores: é a sua maneira de os estimar. A confiança angélica destas criaturas indefesas seduz os entes cruéis. Não sabem para onde se voltar nem a quem se dirigir, e isto acirra os maus instintos. Toda a gente contém em si um demónio, que se manifesta por acessos de cólera, sadismo, libertação de paixões ignóbeis, doenças contraídas na luxúria, etc. Assim, estes pais instruídos exercem sevícias sobre a pobre pequena. Chicoteiam-na sem razão. O corpo dela está cheio de nódoas negras. (...) a derramar inocentes lágrimas e a invocar Deus em seu socorro? Percebes tamanho absurdo? Diz-se que todas estas coisas são indispensáveis para estabelecer a distinção entre o bem e o mal no espírito humano. Para quê tal distinção diabólica, paga por semelhante preço? A ciência do homem toda  inteira não vale as lágrimas das crianças. Não falo do sofrimento dos adultos, que comeram o fruto proibido. Leve-os o Diabo! Mas as crianças? (...)

Esta a interrogação para mim fundamental que decide completamente da minha (não) adesão a uma religião: existindo deus ou deuses, porquê o sofrimento das crianças? Nunca ouvi uma explicação que revelasse a compaixão desse(s) deus(es). Um deus não compassivo não me serve para nada. Prefiro a inexistência de deus porque, como nos homens é possível encontrar compaixão e também possivelmente não em deus, menos mal me acontecerá.

E não me venham falar do livre-arbítrio concedido por deus. Só consigo pensar num sádico que, tendo criado o homem e, portanto, sabendo do que ele é capaz, lhe dá a liberdade de fazer todo o mal aos inocentes. Eu, que não criei o gato nem o passarinho, não dou essa liberdade ao gato: fazê-lo seria pôr-me do lado do mais forte e mais feroz, pelo que me recuso a fazê-lo e intervenho sempre que vejo o passarinho em risco de ser destruído pelo gato. Mas eu não sou deus, felizmente... E, assim, ao contrário de deus, posso contribuir para que o mal não tenha razão e não se espalhe.


(200)

[Ivan] (...) recuso-me a aceitar essa harmonia superior. Acho que não vale uma lágrima de criança, uma lágrima daquela vitimazinha que invocava Deus no seu canto infecto; não vale, não, porque essas lágrimas não foram resgatadas. Os carrascos sofrerão no Inferno, poderás tu objetar. Mas de que serve esse castigo se as crianças tiveram também o seu Inferno? Aliás, que valor tem essa harmonia que comporta um Inferno? Quero o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. E, se o sofrimento das crianças é para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo que essa verdade não merece tal preço. Não quero que a mãe perdoe ao verdugo; não tem esse direito. Perdoe-lhe o seu sofrimento de mãe, mas não o que sofreu o filho dilacerado pelos cães. Ainda que o filho perdoasse, ela não teria esse direito. Se  não existe o direito de perdoar, onde está a harmonia? (...) Aliás, exageraram o preço dessa harmonia; custa-nos muito cara a entrada. Acho melhor devolver o bilhete... E é o que eu faço. Não me nego a admitir Deus, mas devolvo-lhe respeitosamente o meu bilhete.

(...)

(...) [Ivan] Responde-me com toda a franqueza. Imagina que tens nas tuas mãos o destino da humanidade e que, para tornares definitivamente as pessoas felizes, para lhes proporcionar, enfim, a paz e o repouso, é indispensável martirizar nem que seja um só ente, uma criança, e fundar sobre as suas lágrimas a felicidade futura. Consentirias, em tais condições, em edificar tal felicidade? Responde sem mentir. 

— Não, não consentiria.

— Nesse caso, podes admitir que os homens consintam em aceitar semelhante felicidade a troco do sangue de um pequenino mártir? 

— Não, não posso admitir (...).

Fantástica argumentação! A razão ética para recusar não só a existência de um deus, como a possibilidade de um prémio futuro de felicidade além-túmulo.


Em seguida, na página 201, Dostoievsky dá-nos o famoso (e perturbador!) poema "O Inquisidor-Mor".


(206)

(...) Compreenderão enfim que a liberdade é inconciliável com o pão da terra em abundância, pois nunca saberão reparti-lo entre si! (...)

Porque a liberdade para todos é a liberdade para o banqueiro, para o corrupto e para o ganancioso, ficando completamente posta em causa a distribuição do pão, já nem digo equitativa, mas simplesmente razoável.

Porém, sem liberdade, estamos a falar de uma submissão a um pretenso bem coletivo que, na realidade, se concretiza numa submissão dolorosa a um ou mais ditadores (mesmo que sejam justos na distribuição do pão, o que é altamente duvidoso, dadas as experiências passadas que a História nos mostra e o presente continua a revelar).

Aliás, por causa disso, percebo o argumento das ideologias de direita: se, em qualquer dos casos, há miséria, isto é, nunca há a distribuição razoável do pão, ao menos que se salve a liberdade.

Portanto, como conciliar liberdade e pão, mas para todos? Deve haver uma solução...


(207)

(...) Porque não há, para o homem, tornado livre, cuidado mais constante, mais ardente que procurar um ser perante quem se inclinar. (...)

Um? Normalmente, vários. Porque se trata de uma fraqueza que nasce da dependência que temos do grupo (e, portanto, de quem o chefia). Esta fraqueza acentua-se quando deixamos de poder confiar no grupo em si. Aumenta, então, desmesuradamente o fascínio por pessoas autoritárias que, simultaneamente, parecem distantes e, portanto, superiores daquilo que achamos que é o povo. Veja-se, em Portugal, o fascínio por figuras como Salazar, Cavaco Silva e José Sócrates.


(207)

(...) Esqueceste que o homem prefere a paz e mesmo a morte à liberdade de distinguir entre o bem e o mal? Não há nada para ele mais sedutor do que o livre arbítrio, mas igualmente nada de mais doloroso. E em lugar dos princípios sólidos que teriam tranquilizado para sempre a consciência humana, tu escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, (...)

É muito interessante, porque todos sentimos um prazer perverso em sermos juízes dos outros, principalmente se estiver em perspetiva uma condenação. Mas o que Dostoievsky aqui diz é diferente: liberdade para distinguir o bem do mal. E esta distinção só é clara nas histórias para crianças. Já é muito menos clara na literatura para adultos, onde a ficção, para ser aceitável pelo leitor, tem de fazer algum sentido. A vida, pelo contrário, raramente se nos apresenta clara à nossa interpretação. Aliás, quando isso acontece, devemos suspeitar que alguém nos está a tentar enganar (e que nós estamos a gostar de sermos enganados).

A liberdade absoluta deixa a culpa toda do nosso lado, quando as coisas correm mal. Por outro lado, se não formos livres, mesmo que só parcialmente, aí podemos aliviar o nosso mal-estar atirando as culpas para alguém que não nós.

Ora, o livre arbítrio é doloroso precisamente porque ele nunca existe completamente, por mais que acreditemos nele. Nós somos irremediavelmente condicionados pela genética e pela nossa propensão biológica para a sociabilidade: ambas limitam as nossas escolhas de vida, a maior parte das vezes inconscientemente (é isso que leva alguns a acreditarem no livre-arbítrio), mas algumas vezes conscientemente. Como nos diz Sophia de Mello Breyner Andresen: Pudesse eu não ter laços nem limites / Ó vida de mil faces transbordantes / Pra poder responder aos teus convites / Suspensos na surpresa dos instantes.

Dostoievsky alude também à questão de que problemas complicados, ao contrário do que todos desejamos, não podem ter formulações simples e, muito menos, soluções simples. Mas estas atraem irresistivelmente o ser humano. E quem as fornece estará, infelizmente, sempre em vantagem em relação aos mais honestos e sérios.


(210)

(...) A independência, o livre pensamento, a ciência tê-los-ão desviado num tal labirinto, posto em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes furiosos, destruir-se-ão a si mesmos, e os outros, rebeldes, porém fracos, multidão covarde e miserável, se arrastarão a nossos pés, gritando: 'Sim, tínheis razão, somente vós possuíeis seu segredo e nós voltamos a vós; salvai-nos de nós mesmos!' Sem dúvida, recebendo de nós os pães, verão bem que tomamos os deles, ganhos com seu próprio trabalho, para distribuí-los, sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão; mas o que lhes causará mais prazer que o próprio pão será recebê-lo de nossas mãos! (...)

Os que veem a complexidade, mergulharão nela, incapazes de ver a floresta e de fazer pontes com as pessoas que têm outros pontos de vista. Fazer pontes, não é abdicar dos seus princípios, pelo menos não daqueles que são essenciais à sua identidade. Os que não conseguem suportar a complexidade abraçarão quem quer que seja que lhes diga que tem a solução e os ilude dizendo que ela é simples.

Finalmente, este é o perigo da extrema-direita: acenar com a liberdade individual para submeter o coletivo com uma ditadura pior do que aquela que foram levados a crer que viviam, mas que os irá aliviar de todo o peso de serem livres (a extrema-esquerda acena com a justiça para todos, mas com a mesma finalidade em vista, mas não é dela que Dostoievsky aqui trata).


(233)

(...) Direi ainda que cada um de nós é culpado perante todos e por tudo, e eu mais do que os outros.» Nesse momento a mãe sorria entre lágrimas: «Como podes ser mais culpado do que os outros?», perguntava. «Há assassinos, ladrões; que pecados cometeste para te acusares desse modo?» «Querida mãe, saiba que, em boa verdade, cada um é culpado perante os demais e por tudo. Não sei como explicar-lhe, mas sinto que é assim mesmo, e isso atormenta-me. (...)

Estranha afirmação! Será um disparate? Não o sinto como tal, pelo contrário, mas também me vejo em dificuldades para explicar porque sinto isto assim.

Será porque, não fazendo nada para parar os crimes dos outros, acabo por ser um cúmplice longínquo.

Ou que, por não fazer nada para prevenir esses crimes, me torno num seu causador, mesmo que longínquo? O que fazer? Por exemplo, se não reclamo contra as iniquidades dos governos, não estarei a colaborar com eles. Porque sabemos que, onde há agressão, a neutralidade é pormo-nos do lado do mais forte, logo somos culpados.


(244)

- (...) Para renovar o mundo, é necessário que os próprios indivíduos mudem de atitude. Enquanto cada qual não for a valer o irmão do próximo, não existirá fraternidade. Jamais poderão, em nome da ciência ou do interesse, repartir em paz, entre si, a propriedade e os direitos. Ninguém se confessará satisfeito, todos murmurarão, invejando-se e exterminando-se mutuamente. Pergunta quando será o advento do Reino dos Céus? Há de vir, todavia apenas quando terminar o período de isolamento humano.

- Que isolamento? - inquiri.

- Reina por toda parte hoje em dia, mas não está acabado, o seu termo ainda não chegou. Presentemente, cada qual aspira a separar dos outros a sua personalidade, cada um pretende gozar a plenitude da vida. Entretanto, longe de atingir esse fim, todos os esforços dos homens se dirigem unicamente para um suicídio total; em vez de afirmarem toda a sua personalidade, caem em completa solidão. De facto, neste século, todos se sentem fracionados em unidades, todos se isolam no seu buraco, afastando-se uns dos outros, escondendo-se, a si e aos seus bens. Acumulam para eles sósfelicitam-se do seu poderio, da sua opulência; ignoram, insensatos, que quanto mais acumulam mais se enterram na sua impotência fatal. O homem está habituado a contar consigo apenas, afastando-se assim da coletividade. Acostumou-se a não crer no socorro mútuo, no próximo, na humanidade, e treme só à ideia de perder a riqueza e os direitos que ela confere. Por toda parte, atualmente, o espírito humano começa de modo ridículo a perder de vista que a verdadeira garantia do indivíduo consiste não no esforço pessoal isolado, mas na solidariedade. Este isolamento terrível acabará decerto um dia, todos compreenderão ao mesmo tempo quanto a sua separação recíproca era contrária à Natureza, (...)


(252)

(...) Porque o mundo diz: "Tu tens necessidades, satisfá-las, porque possuis os mesmos direitos que os grandes e os ricos. Não temas satisfazê- las, aumenta-as mesmo". Eis o que se ensina atualmente. Tal é a concepção deles de liberdade. E que resulta desse direito de aumentar as necessidades? Entre os ricos, a solidão e o suicídio espiritual; entre os pobres, a inveja e o crime, porque se conferiram direitos, mas ainda não se indicaram os meios de satisfazer as necessidades. Assegura-se que o mundo, abreviando as distâncias, transmitindo o pensamento pelos ares, unir-se-á sempre cada vez mais, que a fraternidade reinará. Ai! não acrediteis nessa união dos homens. Concebendo a liberdade como o aumento das necessidades e sua pronta satisfação, alteram-lhes a natureza, porque fazem nascer neles uma multidão de desejos insensatos, de hábitos e imaginações absurdos. Não vivem senão para invejar-se mutuamente, para a sensualidade e a ostentação. Dar jantares, viajar, possuir carruagens, cargos, lacaios, passa tudo como uma necessidade à qual sesacrifica até sua vida, sua honra e o amor à humanidade, matar-seão mesmo, na  impossibilidade de satisfazê-la. O mesmo ocorre entre aqueles que são ricos; quanto aos pobres, a insatisfação das necessidades e a inveja são no momento afogadas na embriaguez. Mas em breve, em lugar de vinho, embriagar-se-ão de sangue, é o fim para que os conduzem. Dizei-me se tal homem é livre. (...) Nada de admirar que os homens tenham encontrado sua servitude em lugar da liberdade, e que em lugar de servir à fraternidade e à união, tenham caído na desunião e na solidão, como mo dizia outrora meu visitante misterioso e mestre. De modo que a idéia do devotamento à humanidade, da fraternidade e da solidariedade desaparece gradualmente do mundo; na realidade, acolhem-na mesmo com derrisão, porque como desfazer-se de seus hábitos, aonde irá aquele prisioneiro das necessidades inumeráveis que ele próprio inventou? Na solidão, preocupa-se muito pouco com a coletividade. Afinal de contas, os bens materiais aumentaram e a alegria diminuiu. (...)

O capitalismo criou o consumismo. Este é uma atividade profundamente solitária. Daí que seja mais difícil de perceber que o consumismo é mantido vivo pela criação imparável de necessidades que a própria pessoa nem sabia que tinha. É a promessa da sua pronta satisfação que constitui o cerne da liberdade que o capitalismo nos oferece. Um presente envenenado, pois jamais alguém atinge a liberdade por via do consumismo. Muito menos os pobres. Além disso, não esqueçamos que nunca, nunca há almoços grátis, pelo que, para consumir, muitos têm de aceitar a canga de um trabalho embrutecedor e, muitas vezes, indigno: a palavra-chave é “têm”, o que significa ausência de liberdade.


(254)

(...) é isto que convém às crianças? Precisam de sol, dos jogos da sua idade, de bons exemplos e de um mínimo de simpatia. Religiosos, meus irmãos, é necessário pôr cobro aos sofrimentos das crianças. Pregai nesse sentido.


(256)

(...) Amai toda a criação no seu conjunto e nos seus elementos, cada folha, cada raio de luz, os animais, as plantas. E, amando cada coisa, compreendereis o mistério divino nas coisas e acabareis por amar o mundo inteiro. Amai os animais, porque Deus lhes deu o embrião do pensamento e uma alegria pacífica. Não os atormenteis tirando-lhes essa alegria, não vos oponhais ao plano de Deus. Homem, não te eleves acima dos animais; estão isentos de pecado, ao passo que tu, com toda a tua grandeza, manchas a terradeixas atrás de ti um rastro de podridão. É a sorte de quase todos nós, infelizmente! Amai em especial as crianças, pois também não têm pecado; existem para nos tocar o coração e purificá-lo, são para nós como uma indicação. Maldito o que ofende um desses pequeninos! (...)

Relativamente aos animais, como Dostoievsky se deu conta de que há um pensamento simples neles. e os argumentos dele sobre o plano de Deus e com a comparação em termos de pecado são excelentes! Não satisfeito, ele ainda acrescenta:


(256/257)

(...) Meu irmão pedia perdão às aves; parece tolice, mas está certo, porque tudo se parece com o oceano, onde tudo desagua e comunica; toca-se num lugar e o gesto repercute-se no outro extremo do mundo. Direis que é loucura pedir perdão às aves, mas as aves, e as crianças, e todos os animais que nos rodeiam sentir-se iam mais à vontade, se fosseis mais dignos do que sois atualmente. (...)


(257)

Meus amigos, pedi a Deus alegria. Sede alegres como as crianças, como as aves do céu. Não vos deixeis perturbar pelos pecados, no apostolado que iniciardes, não receeis que eles manchem a vossa obra e vos impeçam de a cumprirdes. Não digais: "O pecado, a impiedade, o mau exemplo são poderosos, ao passo que nós somos fracos e estamos isolados; o mal triunfará e expulsará o bem". Não desanimeis dessa maneira, meus filhos! Só existe um meio de salvação: tomar para si os pecados dos outros. Com efeito, meu amigo, desde que respondas sinceramente por todos e por tudo, logo verás que realmente é assim, que és culpado por todos e por tudo. Mas, lançando sobre os outros a tua preguiça e a tua fraqueza, tomar-te-ás por fim de um orgulho satânico e murmurarás contra Deus. (...)

Duas ideias. a primeira que é não nos deixarmos abater pelo mal no mundo, quando nos propusermos a mudá-lo, seja de que forma for. A segunda é como conseguir isto: assumindo a culpa por todos os culpados e por tudo o que existe de mal. Penso que Gandhi seguia este princípio. Quando ele fazia um jejum não era para exercer uma chantagem sobre os homens injustos, mas era para se castigar e purificar por ele se sentir responsável por essa injustiça ainda existir. De qualquer maneira, é uma ideia difícil de entender, esta de sermos culpados por tudo e por todos.


domingo, 4 de julho de 2021

Michael Cunningham, As Horas

 


Gradiva


Vários paralelismos se podem observar entre esta obra e Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf:

  • Há uma doença que é posta em foco. Em Mrs. Dalloway é aquilo que, mais tarde, se veio a chamar PTSD – Perturbação de Stress Pós-Traumático. Em As Horas, é a SIDA. Em ambas as obras se refere a ineficácia dos tratamentos para estas doenças (mas pior em Mrs. Dalloway, onde nem sequer se reconhece a doença).
  • No título, que retoma uma primeira ideia de Virginia Woolf.
  • Nas personagens:
    • Clarissa: nome, festa, comprar flores, ouve um estrondo na florista e suspeita de aparecimento de uma pessoa famosa, beijo a Vanessa (Sally em Mrs. Dalloway) e uma certa singeleza ou ligeireza, comparada com outras personagens.
    • A filha Julia ligada a Mary Krull, como Elisabeth a Miss Kilman em Mrs. Dalloway. mas em que a filha não está presa a elas como elas estão. E a aversão de ambas a ambas as Clarissas e que é retribuída por estas.
    • Sally cônjuge de Clarissa e Sally que foi apaixonada de Mrs. Dalloway.
  • Estação do ano é a mesma: Junho
  • Etc., etc.

Conclusão: Não será um pouco demais? Acaba por ser divertido, mas eu talvez preferisse uma maior subtileza, um maior apelo à inteligência e à sensibilidade do leitor.

Veja-se um exemplo de como este apelo é bem satisfeito quando Michel Cunningham retrata subtilmente o interdito e a reprovação social a formas não tradicionais de sexualidade.

 

Quais as qualidades do livro minhas preferidas?

 

É uma história bem contada, sem recurso a técnicas óbvias de escrita criativa.

 

O autor usa de uma poeticidade discreta, mas intensa, em grande parte do texto, sem recorrer a floreados de linguagem; ou seja, fá-lo com muita arte.

Um momento alto é a cena de suicídio de Richard: uma cena poética e pungente, sobre algo de sombrio em oposição a um ambiente cheio de transparência e de claridade que não é só de luz física, mas também da luz que emana do diálogo.

 

O autor mostra como nós, seres humanos, não somos uma linha reta, mas vamos vivendo oscilando sempre em tudo, tanto no dia-a-dia, como ao longo de décadas: na segurança pessoal, no amor, na visão ou postura perante a vida.

Em particular, oscilamos no que toca à saúde mental. O livro mostra-nos como é imprecisa a fronteira da perturbação mental. Porque todos temos momentos de irrealidade, de desejos ou impulsos incontroláveis e um pouco selvagens. Na verdade, vemos com este livro que existe apenas um verniz de civilização e de regras sociais que estamos muitas vezes à beira de quebrar. E que, portanto, quebramos várias vezes.

 

Este livro fala também (principalmente as partes Mrs. Woolf e Mrs. Brown) do sufoco que pode ser a vida comum. Embora, na parte Mrs. Dalloway se proponha que ali também estará a sua redenção.

No livro apresentam-se três respostas para este sufoco: quem aguenta, procura sobreviver pela escrita (há muitas reflexões sobre o processo da escrita), tenta uma fuga e, ao não conseguir, recorre ao suicídio (Virginia Woolf); quem aguenta, mas tem a coragem de mudar radicalmente de vida (Mrs. Brown); e quem não só aguentou, mas até se adaptou bem, agarrando-se a algumas transgressões a fim de manter o respeito próprio (Clarissa e Sally).

 

Curiosa uma possível linha narrativa desta obra: Virginia Woolf cria Mrs. Dalloway, que influencia Laura Brown, que afeta profundamente Richard, que tem um impacto significativo em Clarissa, a quem chama de Mrs. Dalloway, fechando assim o círculo. Com a homossexualidade e a SIDA sempre presentes em segundo plano.

Um pouco como nos diz a epígrafe escolhida por Michael Cunningham:

Não tenho tempo para descrever os meus planos. Tinha muitas coisas a dizer a respeito de As Horas e da minha descoberta, de como escavei belas cavernas atrás das minhas personagens; penso que isso dá exatamente o que quero - humanidade, humor, profundidade. A ideia é que as cavernas se ligarão entre si e cada uma vem à luz do dia no momento presente. VIRGINIA WOOLF, no seu diário, 30 de Agosto de 1923

 

Uma interrogação final. A única que teve coragem de se libertar, Laura Brown, procurando minimizar na medida do possível para a época a autodestruição, acaba por ser a personagem mais castigada com a morte trágica dos próximos: marido morto de cancro, a filha de atropelamento e o filho de suicídio. Bem como com uma certa falta de simpatia dos outros. Haverá alguma moral aqui que eu não esteja a discernir bem? Talvez a mensagem de que há sempre um preço a pagar, normalmente muito elevado, por se querer conquistar a liberdade.

 

Sra. Dalloway

(…) Clarissa acredita que, hoje em dia, se avaliam as pessoas, primeiro que tudo, pela sua bondade e capacidade de dedicação. Cansamo-nos, às vezes, do espírito e do intelecto, da pequena exibição de talento de toda a gente. (…)

Já vi vários artigos, endossando esta opinião de que «KindnessIs the New Cool». É prometedor, desde que isso não nos afaste daquilo por que é preciso lutar.

 

Sra. Woolf

Não comer é um vício, uma espécie de droga: com o estômago vazio sente-se ativa e limpa, com a cabeça desanuviada, pronta para uma luta. (…)

Este é um dos atrativos perigosos das perturbações alimentares de privação de comida.

 

(…) Esta manhã talvez consiga penetrar no obscurecimento, nos canos entupidos, chegar ao ouro. Sente isso dentro dela, um quase indescritível segundo eu, ou melhor, um eu paralelo e mais puro. Se fosse religiosa, chamar-lhe-ia alma. É mais do que a soma do seu intelecto e das suas emoções, mais do que a soma das suas experiências, embora corra como veias de metal brilhante por todas essas três coisas. É uma faculdade interior que reconhece os mistérios estimuladores do mundo porque é feita da mesma substância, e, quando a sorte a bafeja muito, ela consegue escrever diretamente através dessa faculdade. Escrever em semelhante estado é a mais profunda satisfação que conhece, mas o seu acesso a ele vem e vai sem avisar. Pode pegar na caneta e segui-la com a mão enquanto ela se move pelo papel; pode pegar na caneta e descobrir que é meramente ela própria, uma mulher de roupão segurando uma caneta, receosa e hesitante, apenas moderadamente apta, sem nenhuma ideia acerca de por onde começar ou do que escrever. Pega na caneta. (…)

Vergílio Ferreira também fala disto várias vezes, destes dois eus, o comum da vida do dia-a-dia, e o que escreve a obra de arte. Veja-se, por exemplo:

1985 (Conta-Corrente 5)

«26-Agosto (segunda). A facilidade com que me distraio de ser eu. (…) Não se é autor das próprias obras mas um outro que por acaso tem o nosso nome. É esse um outro que vive apenas por momentos e se desvanece logo depois ao menor motivo de distracção. Distraio-me tanto. (…) Enquanto escrevo romance, sobretudo romance, todo o meu ser se concentra intensamente nesse acto de o escrever. E tão intenso é isso, que não aguento senão excepcionalmente três ou quatro horas. Depois tudo em mim se deslaça em frouxidão e esquecimento. E logo volto a ser o quotidiano que sou, o vulgar e inferior e ridículo que sou. (…) É-se então um outro de nós quando a arte nos visita, algo estranho toma posse de nós como os antigos supunham. Há um demónio que vive em liberdade e encontra em nós de vez em quando uma porta por onde entra. Entra e sai e ficamos de novo libertos, na posse estrita do estrito de nós. Que é que em nós é nós num caso e noutro? Por estranha megalomania penso ser eu quando afinal o não sou. «Isto é maior do que eu», diz mais ou menos Pessoa a propósito de versos seus. E com efeito. Fora dos versos, ele era apenas o alcoólico curtido a aguardente, o desleixado, coalhado de nódoas na gabardina.»

 

Sra. Brown

(…) Ela, Laura, gosta de imaginar (esse é um dos seus segredos mais bem guardados) que também tem um laivo, um lampejo de brilho, apenas um lampejo, embora saiba que a maioria das pessoas provavelmente anda por aí com semelhantes e esperançadas suspeitas fechadas como pequenos punhos dentro delas e nunca reveladas. (…)

Sabê-lo é, de alguma forma, cultivá-lo e, deste modo, manter a esperança.

 

Sra. Dalloway

(…) alguém [Richard] que, embora não estando realmente insano, perdeu a tal ponto o controlo das coisas, se aproximou tanto do abandono por exaustão dos comuns cuidados pessoais uma higiene simples, alimentação regular – que a diferença entre insanidade e a perda da esperança é difícil de precisar. (…)

Mais uma referência à linha fina e muitas vezes impercetível que existe entre loucura e normalidade.

 

Sra. Woolf

(…) Gostaria de escrever todo o dia, de encher trinta páginas em lugar de três, mas passadas as primeiras horas alguma coisa vacila dentro dela, e receia, se insistir para além dos seus limites, prejudicar todo o projeto. O deixe transviar-se para um reino de incoerência do qual talvez nunca possa regressar. Ao mesmo tempo, detesta passar qualquer das suas horas límpidas a fazer outra coisa que não seja escrever. (…)

Decide, apreensiva, que por hoje chega. Há sempre estas dúvidas. Deve tentar prosseguir durante mais uma hora? Está a ser sensata ou preguiçosa? Sensata, afirma a si mesma, e quase acredita. Escreveu as suas duzentas e cinquenta palavras, mais ou menos. Contenta-te com isso. Confia que amanhã estarás aqui de novo, reconhecível por ti própria.

Veja-se a citação acima de Vergílio Ferreira.

 

Leonard pode ser autocrático, pode ser injusto, mas é o seu companheiro e zelador, e ela não o atraiçoará, muito menos por causa do atraente e imaturo Ralph ou de Marjorie, com a sua voz de periquito.

A lealdade sem condições, uma das marcas de um grande amor, acho eu.

 

(…) Mas, em vez disso, fechara-se logo no seu escritório, temendo que a escrita do dia (esse impulso frágil, esse ovo equilibrado numa colher) pudesse evaporar-se perante um dos maus humores de Nelly. (…)

Veja-se a citação de Vergílio Ferreira, mais uma vez.

 

Sra. Dalloway

(…) Não tem inveja de Sally, não se trata de nada tão mesquinho, mas, ao ser ignorada por Oliver Sr. Ives, não pode deixar de sentir o declínio do interesse do mundo por ela e, mais intensamente ainda, o fato embaraçoso de que isso tem importância para ela, mesmo agora, enquanto prepara uma festa para um homem que pode ser um grande artista e talvez não sobreviva ao ano que corre. Sou insignificante, pensa, infinitamente insignificante. E no entanto... Não ser convidada parece de algum modo uma pequena demonstração da capacidade do mundo de passar bem sem ela. Ser ignorada por Oliver St. Ives (que se calhar não a excluiu conscientemente, não pensou apenas nela) assemelha-se à morte, do mesmo modo que um improvisado diorama infantil de um acontecimento histórico se assemelha ao próprio acontecimento. É uma coisa pequena, brilhante, sem valor, feita de feltro e cola. Mas mesmo assim. Não é fracasso, diz a si mesma. Não é fracasso estares nesta casa, na tua pele, a cortar as hastes de flores. Não é fracasso, mas exige mais de ti, todo o esforço exige; estar simplesmente presente e grata, ser feliz (terrível palavra). As pessoas já não te olham na rua, ou, se olham, não é com idéias sexuais de natureza nenhuma. Não és convidada para almoçar por Oliver Sr. Ives. (…)

Curioso como este género de pensamentos é capaz de "atacar" toda a gente: alguém banal como eu; alguém verdadeiramente famoso (conheço alguns casos que se queixam amargamente, mas que não vou expor aqui); uma personagem de Vergílio Ferreira como Alberto Soares em Aparição, cap. 9, p. 101:

(…) Sinto que, pouco a pouco, a minha pessoa perde interesse para esta gente - para Ana. A minha presença não é «exemplar» senão de vez em quando. Depois é uma presença neutra, desvendada, nivelada. (…)

 

Sra. Brown

(…) Queria ter feito um bolo que banisse a mágoa, mesmo que apenas por momentos. Queria ter criado uma coisa maravilhosa, uma coisa que fosse maravilhosa mesmo para aqueles que não a amam. Não conseguiu. Desejaria não se importar com isso. Algo, pensa, está errado nela.

Na verdade, nunca conseguimos, exceto talvez alguns privilegiados. Mas o nunca desistir de tentar faz de nós humanos maiores do que pedras.

 

Sra. Dalloway

Sally e Clarissa não são parcimoniosas com os seus sentimentos e isso, claro, é bom, mas agora Sally sente necessidade de ir para casa e dizer mais alguma coisa, alguma coisa que ultrapasse não só o terno e reconfortante, mas vá também além da própria paixão. O que ela quer dizer relaciona-se com todas as pessoas que morreram, relaciona-se com os seus próprios sentimentos de enorme ventura e iminente e devastadora perda. Se acontecer alguma coisa a Clarissa, ela, Sally, continuará a viver, mas sobreviver, exatamente, não sobreviverá. Não ficará bem. O que quer dizer relaciona-se não só com felicidade, mas também com medo, o medo pungente, constante, que é a outra metade da felicidade. Pode suportar a idéia da sua própria morte, mas não a da morte de Clarissa. Este amor delas, com a sua domesticidade tranquilizadora e os seus silêncios confortáveis, com a sua estabilidade, em suma, jungiu de imediato Sally ao mecanismo da própria mortalidade. Agora há uma perda que transcende o imaginável. Agora há um cordão que ela pode seguir a partir deste momento, ao dirigir-se para a estação do metro de Upper East Side, até ao dia de amanhã, e ao seguinte, e ao seguinte, todo o caminho até ao fim da sua vida e da vida de Clarissa.

Belíssimo! Algo que também sinto com a Adriana.

 

- Não sei se posso enfrentar isto – diz [Richard]. - A festa e a cerimónia, sabes, e depois a hora a seguir, e a outra depois dessa.

- Não tens de ir à festa. Não tens de ir à cerimónia. Não tens de fazer nada, absolutamente nada.

- Mas ainda há as horas, não é verdade? Uma e depois outra, e nós suportamo-las e depois, meu Deus, há mais outra. Estou tão doente!

- Ainda te restam dias bons. Tu sabes que sim.

Sim, mas horas – não. Como Richard bem sabe.

 

(…) Pronto, acabou a história. Agora vem para dentro.

- Pura, como se destinada a crianças numa praia - comenta Richard.

- Sim, podes dizê-lo.

- Como uma manhã quando fomos jovens juntos.

- Sim. Como isso.

- Como a manhã em que saíste daquela casa velha, quando tinhas 18 anos e eu tinha, bem, eu acabara de fazer 19, não acabara? Eu tinha 19 anos e estava apaixonado pelo Louis, e estava apaixonado por ti, e pensei que nunca tinha visto nada belo como tu a saíres por uma porta envidraçada de manhãzinha cedo, ainda ensonada e em roupa interior. Não é estranho?

É - responde Clarissa. - Sim, é estranho.

- Falhei.

- Pára de dizer isso. Não falhaste nada.

- Falhei. Não estou à procura de compaixão. Não, palavra. Sinto-me apenas muito triste, tão triste! (…)

(…)

- Tens sido muito boa para mim, sra. Dalloway.

- Richard...

- Amo-te. Isso parece-te banal?

- Não.

Richard sorri. Abana a cabeça.

- Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.

Chega-se um pouco para a frente, escorrega devagar do parapeito e cai.

- Não!... - grita Clarissa.

Ele parece tão seguro, tão sereno, que momentaneamente ela imagina que aquilo não aconteceu. (…)

Esta é, para mim, a cena mais bela e poética de todo este livro.

 

Sra. Brown

Podia, neste momento, não ser mais do que uma inteligência flutuante: nem sequer um cérebro dentro de um crânio, apenas uma presença que sente, que apreende, como um fantasma poderia apreender. Sim, pensa, esta é provavelmente a sensação que causa ser um fantasma. É um pouco como ler, não é? - A mesma sensação de conhecer pessoas, ambientes, situações, sem desempenhar nenhum papel especial além do de observador voluntário.

Uma descrição muito original do ato de leitura. Mas que ressoou profundamente em mim.

 

Sra. Dalloway

(…) Talvez, pensa, se possa começar a morrer assim: os cuidados de uma filha crescida, os confortos de uma sala. Aqui está, pois, a velhice. Aqui estão os pequenos consolos, o candeeiro e o livro. Aqui está o mundo, cada vez mais governado por pessoas que não são nós, que tanto podem sair-se bem como mal, que não nos olham quando passam por nós na rua. (…)

Sim, pensa Clarissa, já é tempo de o dia acabar. Damos festas, abandonamos as nossas famílias para vivermos sós no Canadá, batalhamos para escrever livros que não mudam o mundo apesar das nossas dádivas e dos nossos imensos esforços, das nossas absurdas esperanças. Vivemos as nossas vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns atiram-se de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginamos, embora todos, exceto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito mais negras e mais difíceis. Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais.

Michael Cunningham a mostrar-nos o avançar implacável da idade, as mudanças inevitáveis e não muito boas, porém podendo sempre estarem acompanhadas por um amor pela vida que não se transforma em ânsia, mas que é capaz de proporcionar paz.

 

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