sábado, 24 de julho de 2021

Fyodor Dostoevsky, Os Irmãos Karamazov, 1ª Parte

 


Círculo de Leitores, 1981


Esta é uma obra tão gigantesca que, quando falamos dela, ficamos sempre aquém, tanto em profundidade, como em extensão.

Os temas aqui abordados são muitos, alguns em toda a sua complexidade: questões da fé e da existência ou não de Deus, bem como as respetivas consequências; relações familiares e o papel de um pai; amor, paixão e ciúme; o uso do conhecimento psicológico para compreender o outro, chegar até ele e até para o amar, mas nunca para o condenar; etc.

Os que mais me envolveram e comoveram foram: o problema da inocência e da culpa; a crítica à crueldade com que as crianças são habitualmente tratadas; e a crítica à violência exercida sobre os animais. Infelizmente, temas ainda dilacerantemente atuais, mesmo passados 142 anos (o livro é de 1879).

Entre outras características extraordinárias, destaco a forma como Dostoievsky usa o conhecimento psicológico para chegar aos outros, para se aproximar, aceitar, compreender e, em alguns casos, até amar. Nunca para condenar ou excluir. Veja-se a minha primeira citação:


(13)

(...) Muitas vezes as pessoas, incluindo as maldosas, são ingénuas, mais simples do que supomos.


(19)

(...), e se escolheu a vida monástica foi porque só ela o atraía e porque representava a ascensão ideal para o amor radioso da sua alma liberta das trevas e dos ódios da Terra. (...)

Pergunto-me se não teremos todos esta aspiração (é certo que, por vezes, enterrada muito fundo)? Eu já tive essa aspiração de forma muito aguda e, tal como Aliosha, considerei a hipótese da vida monástica. Só que, entretanto, veio o ateísmo (descobri, por exemplo, que Deus não tem muito de "radioso" nem de "amor" - falo de Deus, claro, não de Jesus) e o ceticismo em relação a qualquer religião. E essa aspiração foi ficando para trás, já que deixou de ser alimentada. Mas ela está cá, não desapareceu nem morreu. Por isso, este excerto me tocou tanto.


(21)

(...): Aliosha era de um pudor bravio, de uma castidade exaltada. Não podia tolerar certas frases, certas conversas acerca de mulheres, que são, infelizmente, tradicionais nas escolas. (...) Vendo que Alosha Karamazov tapava logo as orelhas quando falavam «daquilo», eles logo faziam círculo em volta do rapaz, baixando-lhe as mãos à força e gritando-lhe obscenidades aos ouvidos. (...)

Tenho uma experiência pessoal semelhante à de Aliosha. Também os meus colegas me fizeram algo de parecido. Talvez por não termos muito contacto com raparigas? Eu, por exemplo, até aos 18 anos, estive sempre em escolas masculinas.

Só que em mim, a razão não era o "pudor bravio", mas a consciência de que a linguagem obscena é violenta, tem uma agressividade eu não suportava (e continuo a não suportar).


(40)

[Starets Zósimas:] (...) e, sobretudo, não tenha vergonha de si mesmo, pois todo o mal provém daí.

Brilhante intuição de Dostoievsky, confirmada pela ciência um século depois. Na realidade, a vergonha (que nos afasta dos outros, ao contrário da culpa, por exemplo) é uma característica nefasta transversal à maior parte das doenças mentais graves.


(52)

(...) «Amo», dizia ele, «a humanidade, mas, com grande surpresa minha, quanto mais amo a humanidade em geral menos o faço em relação às pessoas individualmente consideradas. (...)

Uma das frases famosas de Dostoievsky.


(76)

[Fiodor Pavlovich, pai de Aliosha] (...) Queria vingar-se nos outros da sua própria vileza. Recordou-se de que um dia, quando lhe perguntaram porque detestava determinado indivíduo, dera a seguinte resposta: « Não me fez mal nenhum, é certo, mas preguei-lhe uma partida e daí para cá passei a detestá-lo.»

1ª nota: na página 41, o starets avisa-o de que não deve mentir a si próprio para não perder o respeito por si próprio. Mas o starets estava enganado: Pavlovich não mente a si próprio, como se pode observar nesta e noutras passagens.

2ª nota: Tantos ódios, tantas maldades feita, não poderão ter esta razão por detrás? As pessoas que odeiam os ciganos ou as pessoas de diferentes sexualidades, expressando esse ódio de formas repugnantes, não sentirão um profundo desprezo por si próprias que procuram aliviar desta maneira?

3ª nota: Quando somos objeto de aversão por parte de outros, sem nada termos contribuído para isso, talvez nos ajude pensar que é o sentimento de vergonha por alguma "vileza" que cometeram que os leva a comportarem-se dessa maneira connosco. Talvez este pensamento nos ajude a perdoar-lhes e a aceitá-los como eles são, a fim de, se nos derem essa oportunidade, os podermos modificar.


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