sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 35.


 

35. Contudo rapidamente esquecemos as lições da história, «mestra da vida». Passada a crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e em novas formas de autoproteção egoísta. No fim, oxalá já não existam «os outros», mas apenas um «nós». Oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos capazes de aprender. Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de respiradores, em parte como resultado de sistemas de saúde que foram sendo desmantelados ano após ano. Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a Humanidade renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos.»

Não me parece. O ser humano em grupo não muda, por exemplo, com a facilidade com que esquece (para sua grande desgraça, por vezes). E, assim, vamos vendo como não têm surgido grandes mudanças políticas no nosso dia-a-dia, no sentido de uma vida melhor.

Pelo menos, não no que se refere ao nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS) que, a cada mês que passa, vai piorando e piorando – a nossa própria experiência e as histórias que vamos ouvindo, de familiares e amigos, de doentes e de profissionais do SNS, abrem-nos janelas de horror que gostaríamos de pensar que não acontecessem na nossa civilização (ela, tão arrogante das suas conquistas e, no entanto, tão cada vez mais assustadora e vazia de valores humanos!)

É tristemente óbvio que, para todos aqueles que ganham fortunas com a saúde, o desmantelamento do SNS constitui uma prioridade, a fim de terem clientes e de satisfazerem a sua ganância. Ora, a Covid-19 representou, para essas forças sinistras, uma oportunidade de ouro para afundar ainda mais o SNS. Com a colaboração hipócrita e desavergonhada dos governantes e demais políticos, claro, porque sem a ajuda destes eles não o conseguiriam.

Portanto, diz o Papa: “oxalá”? Duvido que o próprio Papa acredite nisto. Mesmo considerando o que ele escreveu no original italiano desta encíclica: “Voglia il Cielo che (…)” Porque se o “Cielo” quisesse, já há muito teria parado com estes horrores e outros muito piores do que estes. E não quis. Por isso, eles continuam aí. Sempre com as fronteiras fechadas aos mais desamparados.

domingo, 17 de outubro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 34.

 


34. Se tudo está interligado, é difícil pensar que este desastre mundial não tenha a ver com a nossa maneira de encarar a realidade, pretendendo ser senhores absolutos da própria vida e de tudo o que existe. Não quero dizer que se trate de uma espécie de castigo divino. Nem seria suficiente afirmar que o dano causado à natureza acaba por se cobrar dos nossos atropelos. É a própria realidade que geme e se rebela… Vem à mente o conhecido verso do poeta Virgílio evocando as lágrimas das coisas, das vicissitudes da história.

(Cf. Eneida I, 462: «Sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt» – São lágrimas das coisas, as peripécias dos mortais confrangem a alma.)

Mas se muitos dos nossos políticos até para o sofrimento dos animais, visível e audível, são cegos e surdos, quanto mais para a natureza em geral!

Veja-se o que se passa com as touradas e a defesa que eles fazem do direito ao divertimento com o sofrimento sangrento dos touros. Ou da defesa do direito de caçar seres vivos com o mesmo fim, isto é, sem ser para o sustento e sobrevivência.

Tratam-se de manifestações claras de como achamos que somos donos de tudo, sem qualquer respeito pela vida, como se tudo fossem objetos mecânicos postos sob o nosso domínio para dispormos deles à nossa vontade e segundo os nossos apetites mais bárbaros.

Eu defendo o respeito pela vida de todos os seres vivos. Mas, argumentam muitos, não temos de matar para sobreviver? Por enquanto, temos. O que não temos é o direito de fazer dessa matança (e muito menos da tortura de um animal) um modo de divertimento.

Esta mentalidade de que tudo existe para satisfazer os nossos apetites é algo de cujas consequências trágicas larguíssimas faixas da população mundial já estão a sofrer (por exemplo, com as secas, com a exaustão dos solos, com o extermínio da diversidade da flora e da fauna, etc., resultando tudo num sofrimento extremo que não se consegue debelar).

O que as pessoas se esquecem (e o Papa nos recorda aqui) é que, mais tarde ou mais cedo, a natureza vai exigir de nós uma inapelável prestação de contas dos nossos abusos. E todos estes políticos e demais pessoas famosas de hoje irão ser inevitavelmente objeto do opróbrio das gerações vindouras.

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Para quem estiver interessado em aprofundar os seus conhecimentos científicos, repito, conhecimentos científicos sobre o sofrimento animal, recomendo o informativo e acessível livro "Touro como Nós - A Ciência da Vida e o Espetáculo da Dor", do neurobiólogo português, Luís M. Vicente (2021, Editora Pergaminho).

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 33.

 


33. O mundo avançava implacavelmente para uma economia que, utilizando os progressos tecnológicos, procurava reduzir os «custos humanos»; e alguns pretendiam fazer-nos crer que era suficiente a liberdade de mercado para garantir tudo. Mas, o golpe duro e inesperado desta pandemia fora de controle obrigou, por força, a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que nos benefícios de alguns. Hoje podemos reconhecer que «alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade. Buscamos o resultado rápido e seguro, e encontramo-nos oprimidos pela impaciência e a ansiedade. Prisioneiros da virtualidade, perdemos o gosto e o sabor da realidade». A tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência.

Sim, temos de repensar tudo, já que as respostas convencionais a que estávamos habituados mostraram uma eficácia muito aquém daquilo que prometiam.

Além disso, como diz aqui o Papa, a pandemia confrontou-nos com a realidade desagradável da nossa fragilidade, ao nível individual e coletivo. Aliás, essa fragilidade é de tal modo evidente que as manifestações de arrogância de muitos políticos (locais e mundiais) nos surgem como patéticas e risíveis (ao mesmo tempo que um pouco assustadoras, visto que a loucura associada ao poder provoca sempre medo). Infelizmente, essa arrogância teve consequências trágicas para milhares de famílias (vejam-se os exemplos do Brasil, Estados Unidos e Reino Unido).

Diz o Papa que «alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza». Na verdade, é bom que o façamos, pois precisamos de sonhos estimulantes para termos uma presença útil e boa no mundo.

Mas não confundamos com sonhos de fama e de aparência grandiosa; é que estes são habitualmente destrutivos para nós e para os mais próximos que nos rodeiam.


Escolhi a foto que acompanha esta publicação porque, no contexto deste parágrafo, ela nos interpela de alguma forma. É tirada de Verywell Mind, sendo uma recomendação muito positiva de como lidar com a solidão durante a pandemia da Covid-19 (How to Cope With Loneliness During the Coronavirus Pandemic, de Arlin Cuncic).  Veja-se como uma recomendação útil no contexto da pandemia se pode tornar numa prática algo tóxica (pelo isolamento em relação aos outros que incentiva), se ela passou a ser um hábito de vida, agora que já não estamos sujeitos ao confinamento. Isto é, se nos transforma em «Prisioneiros da virtualidade».

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 32.

 


As pandemias e outros flagelos da história

32. É verdade que uma tragédia global como a pandemia do Covid-19 despertou, por algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos. Recordamo-nos de que ninguém se salva sozinho, que só é possível salvarmo-nos juntos. Por isso, «a tempestade – dizia eu – desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. (…) Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso “eu” sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, esta (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos».

Apenas acrescento que os desafios que teremos de enfrentar e resolver num espaço talvez já não de décadas, mas de alguns (poucos!) anos, obrigam-nos a mudar o paradigma em que temos vivido, o da competição desenfreada e destrutiva pelos recursos (sejam os da natureza, sejam os dos salários, os dos lucros, etc.) sobre o qual o capitalismo se tem sustentado em detrimento do nosso planeta.

Então, qual a alternativa? Ela é muito clara. A colaboração, a cooperação, ou algo equivalente. Esta cooperação tem de ser instaurada entre pessoas em geral, entre políticos em particular e, principalmente, com a Natureza ao nível planetário (e não só ao nível local).

Em particular, a ideia mítica de que o ser humano pode domar a Natureza e pô-la ao seu serviço tem-se revelado cada vez mais catastrófica. É inevitável rever urgentemente a nossa relação política e económica com a Natureza. Senão, o que acabará por ser inevitável é a nossa autoaniquilação (após imenso sofrimento para todos, é importante não esquecer).

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Lev Tolstói, Anna Karénina

 


Editorial Presença, 2014


À medida que fui lendo este livro, vêm-me à mente estas palavras de Walt Whitman em Canto de Mim Mesmo, secção LI, p. 143 (trad. de José Agostinho Baptista, Lisboa, Assírio & Alvim, 1992):


Contradigo-me?

Muito bem, então contradigo-me,

(Sou imenso, contenho multidões).


É exatamente isto o que este livro é: 170 e tal personagens (das quais muitas são por vezes algo e o seu contrário), abarcando uma multiplicidade de temas. 

Tudo escrito de uma forma acessível e interessante para todos (mérito da tradução que também é maravilhosa). Além disso, , as técnicas de narração usadas por Tolstói não são muito evidentes, e os nossos olhos e espírito deslizam por estas páginas com verdadeira delícia.


As minhas personagens preferidas: Anna e Alexei, porque não são tontinhos, têm muita grandeza. Todos os outros são um pouco tolos – é, aliás, na caracterização das personagens, muito mais do que nas situações, que Tolstói revela um sentido de humor apuradíssimo que perpassa subtilmente por todo o livro.


O livro é sobre a paixão de Anna por Vronski… ou sobre a aversão de Anna pelo seu marido, Alexei Aleksândrovitch? Que, aliás, tem o mesmo 1º nome que Vronski, o que não deve ser por acaso: como se Tolstói propusesse que a paixão e a aversão sejam duas faces da mesma moeda (mas que moeda? Da nossa afetividade? Uma questão interessante…)

Ora, qual é a que está mais presente em todo o livro, a paixão ou a aversão? Sinto que a segunda e, pelo menos, de forma muito mais dramática e intensa.

Aliás, Alexei Aleksândrovitch representa bem o quanto os homens em geral se sentem mais perdidos face aos imprevistos dramáticos da vida do que as mulheres. E, neste livro, Tolstói retrata melhor (quer dizer, mais intimamente e mais verosimilmente) os homens do que as mulheres.


Alguns dos temas tratados (incluo aqui apenas 12 grupos):

- 2 grandes questões:

Anna está errada moralmente, tanto no adultério como no suicídio? 

E o marido, estará errado com o seu conformismo aos ditames da sociedade (desse conformismo vem a angústia dele quando não sabe bem quais serão esses ditames em determinadas situações particulares)?

- Casamento, amor, paixão e vida familiar.

- Adultério, ciúmes e sociedade.

- Como a razão prisioneira de emoções negativas e apetites fortes pode levar à desgraça (Anna?). E como a razão pode ser usada para justificar o injustificável (marido de Anna para justificar não duelar).

- Mistério dessa entidade chamada “povo”.

- Incomunicabilidade essencial do ser humano: inclusivamente, mostrada até à última página, onde Lióvin decide nada dizer à sua mulher Kitty sobre a revolução que se deu no seu espírito. 

Aliás, para ilustrar esta incomunicabilidade, Tolstói está sempre a mostrar como os encontros aqui são quase sempre desencontros: veja-se Anna e Vronski, com o seu contraponto positivo Lióvin e Kitty (mas sempre desencontro até ao fim); até mesmo Laska, a cadela, e Lióvin!

E como as consequências desta incomunicabilidade só podem ser positivamente orientadas por atos de compaixão e de perdão; onde isto não acontece, está tudo perdido (observe-se como Kitty salva tudo o que pode ser salvo tornando-se compassiva): Aleksei e Anna, Vronski e Anna, Stepan e Dolly, Lióvin e Kitty, Lióvin e Nikolai, etc.

- Agricultura, em particular como metáfora de várias realidades: como motivar as pessoas a envolverem-se no seu trabalho; como introduzir modernizações; e como as pessoas, suspeitando de manipulação (porque não tomaram a iniciativa nem foram envolvidas nas decisões), resistem passivamente mas com muita eficácia (até ao cansaço de quem dirige).

- Onde está o lado certo vital para o ser humano: no campo (longe da civilização e em contacto estreito com a natureza), na família e no silêncio inteligente e humanamente gerido.

- Política da época: cenas ultrapassadas ou ainda atualíssimas?

- Fé e razão.

- Avanço com uma hipótese de explicação para os ciúmes de Anna. Anna está tão ansiosa por se libertar das peias da sociedade que o adultério com Vronski está longe de ser suficiente. Ora, Anna talvez ache que o que transgrediu ainda tem alguma justificação, mas com mais outras transgressões já não teria. Assim, ela não é capaz de aceitar e de trazer à consciência este aspeto de si mesma. Daí que o projete em Vronski, acabando por condicionar o comportamento e os sentimentos deste. 

(por exemplo: mulher - tu não queres saber de mim, estás sempre fora. Marido – não quero estar em casa para ouvir queixas, vou sair. Mulher – aí está, estás sempre fora!, etc., etc.)


A sociedade tem regras, mas também tem maneiras de suavizar o seu cumprimento e tem até algumas portas de saída: o divórcio é uma delas. O ponto fraco deste livro parece-me que está em não se perceber muito bem porque é que Anna se recusa divorciar do seu marido. A razão apresentada é assim ter de ficar sem o filho Serioja; mas ela ficou sem ele na mesma! Aliás, Anna é a personagem que mais dificilmente pode ser compreendida, porque aparece cheia de contradições (Alexei também tem contradições, mas percebemo-las). Na verdade, Tolstoi perde-se um bocado nas mulheres.


Porque Anna sente ciúmes de Vronski? 1º, porque as mulheres estão muito mais desamparadas em caso de adultério, logo sentem-se muito mais inseguras com razão; 2º, porque ela foi infiel e sabe que a infidelidade pode acontecer (mas Vronski também foi e não sente muito ciúmes); 3º, uma razão que normalmente se dá, mas que é falsa na maior parte dos casos, é ela amar profundamente Vronski; ora, sabemos hoje que os ciúmes não são a consequência nem o resultado de um amor profundo.


Repare-se que o retrato que Tolstói faz das personagens não é muito lisonjeiro, mas choca mais por ser injusto relativamente às mulheres, já que a elas não era permitida uma educação superior (até 1868, elas não tinham acesso às universidades). Até a discussão sobre a educação feminina (390), feita exclusivamente por homens, não é muito brilhante, Tolstói tinha infinitas capacidades para fazer muito melhor.


(38), 2º e 3º parágrafos

Tolstói revela aqui duas realidades que se prolongaram ainda muito no tempo..

A primeira é como era atroz o desconhecimento dos homens sobre as mulheres. E, marginalmente, dos adultos sobre as crianças – o cap. 26 da Quinta Parte mostra, sem precisar de explicar, como as crianças têm de ser consideradas “inteiras” em si mesmas, e não como adultos com “deficiências” (reconheço que é algo que talvez não seja fácil conseguir fazer).

Eu ainda vivi intensamente este desconhecimento: o meu primeiro livro de educação sexual ainda dizia que a vagina era um pénis ao contrário; líamos Freud dizer que “A mulher é o continente negro da psicanálise”; ou Lacan que “A mulher não existe”; ou ainda Pierre Vachet escrever o livro “Mulher, esse enigma psicossexual”; etc.

Este desconhecimento tomava a forma concreta de uma total fantasia sobre a mulher ou como um ser ideal, ou como uma “perdida” (mulher de má vida), ou ainda como um ser funcional e estereotipado (dona de casa, mãe dos filhos, e pouco mais).

A segunda realidade revelada por Tolstói é a confusão que se faz habitualmente entre amar e apaixonar-se (repare-se, aliás, como o segundo conceito é formulado sob a forma reflexa), confusão que serve para alimentar muitos romances (talvez incluindo este). Parecem conceitos iguais, mas são distintos. E a principal distinção está nos picos de sofrimento e de felicidade que a paixão habitualmente traz, fazendo as pessoas oscilarem entre o céu e o inferno. 

Mas ninguém consegue viver nem num nem noutro constantemente. E, por isso, a paixão, mais tarde ou mais cedo, acaba. Às vezes, a sua vivência prolonga-se diluindo-se nas águas mais tranquilas do amor; outras vezes, não, ficando apenas o deserto e/ou a devastação.

A paixão talvez seja suscitada pelo desejo do que se não tem, a um nível psíquico profundo. Enquanto o amor celebra o que se tem, em si e no outro, e sente-se feliz com isso (se não se sente feliz, então surge o enfado que é talvez o oposto do amor). Este traduz-se, então, em respeito, empatia e valorização do outro.

Uma outra distinção é que o amor, por inerência e definição feliz (por isso, todas as religiões insistem na tecla do amor ao outro), pode chegar a toda a gente, pois ele pode surgir e ser mantido de muitas maneiras diferentes. Simplificando, toda a gente pode conseguir ser “amável”, sendo esta amabilidade uma das portas mais atrativas para acolher o nascimento do amor entre duas pessoas (estou a falar por experiência própria).

Dito isto, no entanto, no fundo, o amor e a paixão nunca deixam de ser um mistério. Por isso, talvez nunca cheguemos a saber responder à questão: o que leva duas pessoas a apaixonarem-se ou a amarem-se uma à outra?


(214) e outras

A personagem de Alexei Aleksândrovitch, marido de Anna, é tratada por Tolstói de forma particularmente interessante e digna e, por isso, pouco convencional.

Tolstói retira-lhe todo o ridículo, dá-lhe traços humanos comuns a todos nós: não saber o que fazer, refugiar-se no trabalho, não saber expressar os sentimentos que o atravessam, planear um comportamento e depois ter outro, sofrer em silêncio sem conseguir falar com ninguém, apresentar um diferencial entre o que mostra aos outros e aquilo que é por dentro (e Anna é particularmente cega para com ele neste aspeto).

Na minha opinião, nesta personagem, Tolstói mostra claramente o resultado a que uma educação emocionalmente deficiente pode dar origem. Curiosamente, esta afirmação também se aplica com propriedade a Vronski.


(215)

(...) O monstruoso desporto do combate com os punhos ou o das touradas espanholas são indício de barbárie. (...)

Nada tenho a acrescentar. Apenas chamar a atenção para a data de publicação deste livro: 1877, portanto há 144 anos.


(245-247)

Os dois irmãos, Serguei e Lióvin.

O primeiro tem uma teoria que, nas discussões e nas ações, lhe confere consistência e solidez, o que lhe permite ganhá-las.

O segundo não tem uma teoria consolidada porque está bem mais aberto a informação nova que lhe surja (o primeiro procura informação apenas para confirmar o que já pensa). Ora, esta postura traz-lhe vários problemas.

Um é não ter certezas, o que dá origem a ações mais erráticas e menos consistentes. 

Outro é que esta atitude mental leva-o a alterar a sua opinião. O problema está em que ela vai ficando cada vez mais complexa, o que dificulta formulá-la de forma suficientemente simples para poder ser "arremessada" contra o outro para ganhar uma discussão (e, por esse motivo, ele perde-as).

Gosto muito mais de Lióvin, mas na realidade somos habitualmente muito mais Serguei. O que nem sempre é mau. Para além de sermos mais eficazes na ação, dá muitas vezes bom resultado tomarmos previamente uma decisão racionalmente fundamentada (por exemplo de ser bom – 247), em vez de deixar isso para os impulsos do momento (infelizmente, Tolstói não aprofunda suficientemente esta questão).


(306)

Vronski não é má pessoa, como também não o é o marido de Anna. Não há pessoas más neste livro, como também não há pessoas boas: veja-se o modo como Lióvin vê os mujiques. O que há é pessoas educadas pela cultura e pressionadas pela sociedade onde se movem, que as pressionam muitas vezes para atos menos bons, ainda que aceitáveis socialmente.


(339 e 340), 4º parágrafo

Retrato de qualquer sociedade talvez moderna:

  • O povo não educado (mujiques) ou simplesmente muito mal educado – repare-se que não é por ter poucos conteúdos que se aprende mal, mas é a maneira de os aprender que os torna mal educados.
  • O diletante de ideias progressistas (e que em casa é retrógado)
  • O povo culto que tira conclusões superficiais da sua experiência de vida (por exemplo, na época atual, o povo é capaz de manifestações públicas contra ciganos, mas não contra banqueiros que nos sugam biliões; ou os intelectuais/escritores que acreditam no que veem escrito ou que lhes é dito - casos típicos de José Saramago nos Cadernos de Lanzarote e de Vergílio Ferreira no Conta.Corrente).
  • O idealista que busca uma solução realista (o que é bom, embora talvez não ótimo) e, ao mesmo tempo, simples (que nunca existe para problemas complexos).


(341), 2ª li

O método educativo por excelência: «achou maneira de criar nos trabalhadores o interesse pelo trabalho». Não se trata ainda de um método ideal, pois aqui propõe-se a recompensa e esta não é particularmente eficaz. Mas é muito melhor do que não se preocupar em suscitar o interesse dos alunos.


(353), último parág.

Um projeto para a vida (que, apesar de sabermos que nunca será completado, não deve ser razão para desistirmos dele) pode ser o melhor antídoto contra a consciência da nossa morte e do fim de tudo.

Repare-se que nem os crentes acreditam muito num Céu pós-morte porque, se acreditassem, seguiriam o que Jesus disse: «Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me.» (Mt 19:21)

Note-se como Tolstói, em todo o livro, tem uma sabedoria que vai passando para a escrita, um pouco como quem não quer a coisa, e sem explanações complexas, como nesta questão de como enfrentar a ideia de morte.


(398-409)

Descrição da paixão luminosa de Lióvin por Kitty está perfeita. 


(438/9)

Os problemas de Lióvin com a fé que quer adquirir por uma questão de honestidade, já que se vai casar pela igreja.

Tolstói parece propor que não é possível uma posição definida face à fé, pois ela só parece trazer incómodos, quando curiosamente ela aparenta ser a solução mais fácil.


(494)

Este é o único capítulo a que Tolstói dá um título: A Morte. É um relato dos últimos momentos de Nikolai, irmão de Lióvin. Um relato terrível, realista e assustador (é irresistível para mim comparar a dignidade dos seres humanos com a dos animais nos dias e horas que antecedem o morrer). Tolstói é brilhante, como mais tarte o seria com a sua obra A Morte de Ivan Ilitch.


(519)

(…) Esta possibilidade metia-lhe tanto medo que deixou de compreender fosse o que fosse. (…)

Que grande lucidez! Efetivamente, o medo excessivo estupidifica qualquer um (não só as crianças) e é por isso que utilizá-lo como instrumento educativo revela muito pouca sabedoria.

Estas páginas (514 e seguintes) dão-nos uma visão compreensiva da vida interior de um menino, Serioja. Lidas com cuidado, aprendemos imenso sobre o que é uma criança, e sobre o que a move e a motiva.

(…) Do ponto de vista do pai, Serioja não queria aprender o que lhe ensinavam. No fundo, nem podia aprendê-lo. Não o podia porque havia na sua alma exigências mais importantes para ele do que as apresentadas pelo pai e pelo pedagogo. (…) (520) E ele andava a aprender – com (…), mas não com os professores. Aquela água que o pai e o pedagogo esperavam para o seu moinho, há muito se desviara e trabalhava noutro sítio.

Imaginemos, noutros contextos, exigências como a fome, a doença ou a dor, a violência familiar, etc., etc., e ficamos a perceber porque tantas crianças não conseguem aprender. Não é que não estejam a aprender, só que não é o currículo escolar; provavelmente, estarão a aprender a sobreviver, que é uma das aprendizagens mais difíceis de se fazer sozinho.

Mais uma vez, refira-se como Tolstói não é de teses, preferindo mostrar a sua lucidez e sabedoria no meio da história que está a contar.


(623)

«--------------»: Isto significa  que Tolstói não podia escrever “esterilização”?


(666)

(…) O papá diz, e diz bem, que quando nos educavam havia só um extremo: punham-nos a viver nas águas-furtadas, enquanto os pais viviam na sobreloja; agora é ao contrário: os pais na cave, os filhos na sobreloja. Hoje em dia os pais não devem viver a sua vida, é tudo para os filhos.

Já em 1878 existia este mito absolutamente falso, como múltiplas investigações o comprovam. Obviamente que existe alguma indulgência parental que nasce principalmente do facto de muitos pais não conseguirem estar quase tempo nenhum com os seus filhos e chegarem a casa esgotados do seu trabalho. Mas esta indulgência não significa atenção de qualidade, tempo de qualidade, apoio de qualidade em relação aos filhos, muito pelo contrário. Normalmente, significa oferta de objetos que entorpeçam os filhos (televisões, playstations, smartphones, etc.) e, na melhor das hipóteses, muitas críticas e gritos. Na realidade, em Portugal, 3 em cada 4 crianças são maltratadas pelos pais; 1 em cada 10 são vítimas de maus tratos violentos – ver relatórios do Projeto Geração XXI.


(758)

Mais uma vez, o estilo de Tolstói de mostrar mais do que explicar. Agora, trata-se de mostrar porque é que o suicídio é reprovável (1º parágrafo). Depois (3º parágrafo), como um projeto que envolva o espírito e o corpo é o melhor antídoto contra o desespero (embora uma guerra não seja em absoluto o melhor exemplo de projeto…)


(764)

(…) O organismo, a sua destruição, a conservação da matéria, a lei da conservação da força, a evolução – eram tudo palavras que substituíram nele a antiga fé. Estas palavras e os conceitos que lhes estavam ligados eram muito bons para fins intelectuais; mas não davam de modo algum para a vida, (…)

A conclusão de que as ideias científicas não dão para a vida é-me surpreendente.

As ideias científicas, por darem uma segurança baseada na observação objetiva da realidade, são um conforto e um apoio que as ideias religiosas não dão. Eu acho que são estas que, pela sua fantasia sempre tão distante da realidade, não dão para a vida.

O único problema da ciência é, para falar verdade, aquilo que a aproxima das ideias religiosas: é quando chega a ideias erradas e as defende como se fossem verdades últimas a serem aplicadas sem qualquer critério ético aos seres humanos – veja-se o exemplo do conceito de raça; ou de eugenia (tanto a positiva como a negativa).

Porque a razão está muitas vezes errada. Lióvin mostra-nos nesta passagem (775) como a razão nos leva a conclusões completamente erradas: (…) A razão revelou-me a luta pela existência e a lei que exige que estrangule todos os que impeçam a satisfação das minhas necessidades. É essa a conclusão da razão. Quanto ao amor ao próximo, a razão não podia revelar porque é insensato.


(793)

Subscrevo inteiramente as últimas palavras do romance:

(…) mas a minha vida, toda a minha vida, independentemente do que me possa acontecer, cada minuto dela, não só não está privada de sentido, como antes, mas tem um indubitável sentido do bem e tenho o poder de a preencher com ele!

Eu acrescento apenas o sentido da beleza, para mim igualmente imprescindível.


segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 31.

 

31. Neste mundo que corre sem um rumo comum, respira-se uma atmosfera em que «a distância entre a obsessão pelo próprio bem-estar e a felicidade da humanidade partilhada parece aumentar: até fazer pensar que entre o indivíduo e a comunidade humana já esteja em curso um cisma. (...) Porque uma coisa é sentir-se obrigado a viver juntos, outra é apreciar a riqueza e a beleza das sementes de vida em comum que devem ser procuradas e cultivadas em conjunto». A tecnologia regista progressos contínuos, mas «como seria bom se, ao aumento das inovações científicas e tecnológicas, correspondesse também uma equidade e uma inclusão social cada vez maior! Como seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor!»

Preocuparmo-nos com o nosso bem-estar e o dos nossos familiares não tem mal em si mesmo (desde que não seja uma obsessão que nos leve a prejudicar os outros e a infringir leis). Até porque as condições de vida atuais não são particularmente boas para a nossa saúde física e mental, em especial na maioria das empresas e organizações. Além de que, como toda a gente sabe por experiência própria, nós somos melhores para os outros (nomeadamente, estamos mais disponíveis e compreensivos para as suas necessidades) se estivermos mais descansados e menos tensos, isto é, no fundo, se tivermos algum cuidado com o nosso bem-estar.

O ambiente toxicamente competitivo e consumista das sociedades atuais vai fazendo desaparecer o prazer e o repouso que deveria resultar normalmente da vivência em comunidade.

Talvez por isso, também em mim esse “cisma” existe em algum grau. Isto é, tenho consciência de viver em comunidade, sei o muito que devo a esta comunidade (educação, saúde, proteção, etc.), mas reconheço que me sinto cada vez mais distante dela. Distante em relação aos seus valores, à sua sensibilidade e à sua postura em relação a todos os seres vivos mais fracos e desamparados, nomeadamente crianças, idosos, pobres, refugiados e animais.

Eu reconheço o quanto isto é mau e tento combater esta tendência. Mas é difícil, principalmente porque as pessoas inspiram-me cada vez mais medo, e o medo em mim alimenta o fechamento, a defesa, a fuga e o desalento (e nem sequer televisão tenho, caso contrário ainda estaria muito pior).

Por outras palavras, está a ser-me muito difícil apreciar a riqueza e a beleza das sementes de vida em comum que devem ser procuradas e cultivadas em conjunto». Esta aproximação à humanidade tem sido, desde há alguns anos, tema da minha meditação diária. Mas, depois, quando chego ao contacto real com esta humanidade, surge por vezes algo que acaba por me chocar. E isto é o suficiente para o efeito da meditação desaparecer.

A propósito disto, lembro aqui as palavras do starets Zósimas, em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky:

— É nem mais nem menos – retorquiu aquele - o que me contava, já há muito tempo, certo médico meu amigo, homem de meia-idade e bastante inteligente. Exprimia-se sem rebuço, como a senhora, e com ar triste, embora gracejando. «Amo», dizia ele, «a humanidade, mas, com grande surpresa minha, quanto mais amo a humanidade em geral, menos o faço em relação às pessoas individualmente consideradas. (…)» (Círculo de Leitores, 1981, p. 52)

Razões para isto também acontecer comigo? Primeiro, já senti na pele como as pessoas individualmente e os políticos no poder são capazes de espalhar à sua volta muito mal e sofrimento (muitas vezes escudando-se por detrás de argumentos tecno económicos). Segundo, sei a minha idade e tenho uma crescente consciência do desamparo que é consequência de uma sociedade que deprecia os mais velhos. Terceiro, porque tive de aprender muito cedo que as pessoas em geral não são de confiar (nem me lembro de alguma vez na minha infância ter confiado em quem quer que seja; ainda tentei Deus, mas não deu em nada).

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 30.


 30. No mundo atual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia de outros tempos. Vemos como reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha duma profunda desilusão que se esconde por detrás desta ilusão enganadora: considerar que podemos ser omnipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco. Esta desilusão, que deixa para trás os grandes valores fraternos, conduz «a uma espécie de cinismo. Esta é a tentação que temos diante de nós, se formos por este caminho do desengano ou da desilusão. (…) O isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios interesses nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas é a proximidade, a cultura do encontro. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim».

A indústria da autoajuda contribui muito para alimentar esta ilusão de que, se quisermos e nos esforçarmos, podemos ser praticamente omnipotentes face aos outros. Por um lado, não há dúvida de que, de vez em quando, há um espaço individual em que precisamos de nos fechar temporariamente para refletir sobre a nossa própria vida (por exemplo, lendo, escrevendo e meditando), para cuidarmos de nós, para “recarregarmos baterias”, por assim dizer. Mas nós, a maior parte do tempo, temos de passar pelo encontro porque ele é absolutamente fundamental para acordar e implementar soluções coletivas a problemas que são, também eles, coletivos (o tal “mesmo barco” de que o Papa aqui nos fala).

Assim, repito aqui e subscrevo inteiramente: (…) O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim. Seremos capazes de aceitar esta ideia?

A verdade é que a aceitamos pouco na nossa relação com as crianças. Apesar de a investigação sugerir que, depois da punição, o confronto é das piores estratégias que podemos usar para conseguir mudar os comportamentos dos outros, em particular das crianças.

Mas o que mais me inquieta e assusta é ver que não parecemos valorizar esta ideia no mundo da política. Nem nós, nem os media, nem ninguém. Porquê? Será porque a política se reduziu quase exclusivamente a um circo-espetáculo de gladiadores de palavras? Haverá outra razões mais profundas e menos lúdicas que estarão a trabalhar na sombra das nossas psiques individuais e sociais?

Sendo o homem o bicho mais mortífero que este planeta já gerou, esta atitude descuidada de nós em relação a nós mesmos aflige-me.

Há um paradigma de competição a todos os níveis da sociedade que é preciso mudar, pois é ele uma das raízes principais do confronto. Ora, face aos desafios que se estão a pôr de forma cada vez mais premente no que respeita à própria sobrevivência da nossa espécie, não faz sentido alimentar uma luta competitiva da qual, seja qual for o resultado e no fim de tudo, só restarão perdedores.

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  Quetzal, 2019 Julian Barnes é o mais continental dos escritores anglo-saxónicos. Entre outras coisas, vê-se isso pelo fascínio que ele dem...