segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 30.


 30. No mundo atual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia de outros tempos. Vemos como reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha duma profunda desilusão que se esconde por detrás desta ilusão enganadora: considerar que podemos ser omnipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco. Esta desilusão, que deixa para trás os grandes valores fraternos, conduz «a uma espécie de cinismo. Esta é a tentação que temos diante de nós, se formos por este caminho do desengano ou da desilusão. (…) O isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios interesses nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas é a proximidade, a cultura do encontro. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim».

A indústria da autoajuda contribui muito para alimentar esta ilusão de que, se quisermos e nos esforçarmos, podemos ser praticamente omnipotentes face aos outros. Por um lado, não há dúvida de que, de vez em quando, há um espaço individual em que precisamos de nos fechar temporariamente para refletir sobre a nossa própria vida (por exemplo, lendo, escrevendo e meditando), para cuidarmos de nós, para “recarregarmos baterias”, por assim dizer. Mas nós, a maior parte do tempo, temos de passar pelo encontro porque ele é absolutamente fundamental para acordar e implementar soluções coletivas a problemas que são, também eles, coletivos (o tal “mesmo barco” de que o Papa aqui nos fala).

Assim, repito aqui e subscrevo inteiramente: (…) O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim. Seremos capazes de aceitar esta ideia?

A verdade é que a aceitamos pouco na nossa relação com as crianças. Apesar de a investigação sugerir que, depois da punição, o confronto é das piores estratégias que podemos usar para conseguir mudar os comportamentos dos outros, em particular das crianças.

Mas o que mais me inquieta e assusta é ver que não parecemos valorizar esta ideia no mundo da política. Nem nós, nem os media, nem ninguém. Porquê? Será porque a política se reduziu quase exclusivamente a um circo-espetáculo de gladiadores de palavras? Haverá outra razões mais profundas e menos lúdicas que estarão a trabalhar na sombra das nossas psiques individuais e sociais?

Sendo o homem o bicho mais mortífero que este planeta já gerou, esta atitude descuidada de nós em relação a nós mesmos aflige-me.

Há um paradigma de competição a todos os níveis da sociedade que é preciso mudar, pois é ele uma das raízes principais do confronto. Ora, face aos desafios que se estão a pôr de forma cada vez mais premente no que respeita à própria sobrevivência da nossa espécie, não faz sentido alimentar uma luta competitiva da qual, seja qual for o resultado e no fim de tudo, só restarão perdedores.

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