sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 29.

 

(foto da autoria de FLAN Colectivo)


Globalização e progresso sem um rumo comum

29. O Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb e eu não ignoramos os avanços positivos que se verificaram na ciência, na tecnologia, na medicina, na indústria e no bem-estar, sobretudo nos países desenvolvidos. Todavia «ressaltamos que, juntamente com tais progressos históricos, grandes e apreciados, se verifica uma deterioração da ética, que condiciona a atividade internacional, e um enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido de responsabilidade. Tudo isto contribui para disseminar uma sensação geral de frustração, solidão e desespero, (…) nascem focos de tensão e acumulam-se armas e munições, numa situação mundial dominada pela incerteza, pela deceção e pelo medo do futuro, e controlada por míopes interesses económicos». Assinalamos também «as graves crises políticas, a injustiça e a falta duma distribuição equitativa dos recursos naturais (…). A respeito de tais crises que fazem morrer à fome milhões de crianças, já reduzidas a esqueletos humanos por causa da pobreza e da fome, reina um inaceitável silêncio internacional». Perante tal panorama, embora nos fascinem os inúmeros avanços, não descortinamos um rumo verdadeiramente humano.

Primeiro que tudo, quero ressaltar a preocupação do Papa com a sobrevivência digna das crianças, algo que é generalizadamente menosprezado em todo o lado. Sim, também me choca o silêncio que cobre aquilo que eu considero um verdadeiro “massacre” a ocorrer nos nossos dias, tanto dentro como fora do nosso país (mas de forma mais cruel e insensível fora, claro).

Acredito que os vindouros se sentirão profundamente chocados com a forma como nós, hoje, apesar dos progressos que fizemos, ainda pensamos a condição da criança. E com o que lhes fazemos.

Consideremos agora os interesses económicos: eles sempre existiram e, de facto, deram origem a muitas barbaridades que sempre têm feito dos mais fracos as vítimas por excelência.

Eu vivi noutros tempos, bem piores que os atuais. O que penso estar por detrás deste sentimento geral, relatado pelo Papa, é o facto de as promessas que foram feitas de uma vida desafogada e segura só terem sido cumpridas para uma minoria que, aliás, as conseguiu à custa da imensa maioria.

Ora, acontece que esta maioria que ficou para trás, cada vez mais assustada com um mundo e uma sociedade da qual desconfia, com valores nos quais não se reconhece mas que é obrigada a adotar, fecha-se sobre si própria e vai ficando cada vez mais cega e surda ao sofrimento do resto da humanidade.

Além disso, o que mudou na época atual foi que o valor do consumismo tomou conta de todos os setores da nossa vida, secando tudo à sua volta. Veja-se como valores como a compaixão, a decência, a honestidade e tantos outros passaram a submeter-se ao valor do consumismo e à obrigação de ganhar dinheiro para consumir ainda mais.

Trata-se de um valor imposto de cima, de forma gradual e suave, claro está, mas nem por isso menos impositiva, nomeadamente através da publicidade. Pelo que resistir-lhe significa inevitavelmente uma certa reprovação e ostracização social.

No entanto, por outro lado, não acredito que, por exemplo, há 50 anos, houvesse menos fome do que hoje em dia. Michael Green, no vídeo Os Objetivos Globais em que Obtivemos Progresso, e Aqueles em que Não, diz-nos: «Vivemos num mundo que está muito perto de garantir que ninguém morra de fome, de malária ou de diarreia. Se concentrarmos os nossos esforços, mobilizarmos os nossos recursos, galvanizarmos a vontade política, essa mudança é possível.»

Na verdade, não gosto muito de uma argumentação do tipo “Se (…), então é possível.” Porque este “Se” muitas vezes revela que não é mesmo possível conseguir, que se trata de uma utopia. De qualquer modo, isso não invalida o propósito de não baixar os braços nas nossas exigências para fazer isto acontecer. Termino com um dos principais lemas da minha vida: “Se lutas, podes perder. Se não lutas, estás perdido.” (que ninguém tenha dúvidas: quanta verdade, sentida na minha própria pele, este lema encerra!)

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