segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 27.

 

27. Paradoxalmente, existem medos ancestrais que não foram superados pelo progresso tecnológico; mais ainda, souberam esconder-se e revigorar-se por detrás das novas tecnologias. Também hoje, atrás das muralhas da cidade antiga está o abismo, o território do desconhecido, o deserto. O que vier de lá não é fiável, porque desconhecido, não familiar, não pertence à aldeia. Trata-se do território do que é «bárbaro», do qual há que defender-se a todo o custo. Consequentemente, criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o «meu» mundo; e muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável passando a ser apenas «os outros». Reaparece «a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer os muros, muros no coração, muros na Terra, para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas. E quem levanta um muro, quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes. Porque lhe falta esta alteridade».

Quando nos sentimos inseguros, ativa-se o sistema neurológico focado na ameaça e no perigo que, como vimos no post anterior, é muito básico e tem respostas automáticas também muito básicas e primitivas. Por outras palavras, o nosso espírito estreita-se ou é simplesmente posto ao serviço do medo e da fúria. Mais claramente, poderemos talvez ganhar em rapidez (a coisa funcionava muito bem há uns milhares de anos atrás e, hoje, em algumas regiões do globo; mas, na sociedade complexa em que vivemos, que exige de nós respostas complexas, já não é bem assim). Mas perdemos em inteligência. O nosso cérebro racional é “capturado” pelas regiões mais primitivas do nosso sistema nervoso central e até chegamos a ser capazes dos maiores horrores.

Apesar de saber isto tudo, devo admitir que poderia subscrever a parte deste parágrafo que vai até “o «meu» mundo;”. É que ando a sentir algo muito parecido com isto, não exatamente com origem no exterior, mas proveniente do interior da própria sociedade onde vivo, daqueles que, aparentemente, são os meus iguais: uma ameaça a pender sobre mim, sobre os meus e sobre aquilo que eu acho ser a minha civilização (consciente, também, de que posso estar enganado e esta “civilização” ser uma fantasia da minha mente, um “wishful thinking”).

Já não pertence à minha experiência pessoal o corolário que se segue: “e muitos deixam de ser considerados seres humanos (…)”. Ele pode ser real para muitas pessoas, mas a mim só me causa repulsa, embora ache que sou capaz de as compreender: é que, quando o inimigo se torna invisível e difuso, é muito difícil não começar a ficar paranoico.

Como evitá-lo? Aguçando as nossas capacidades de perceção, de pensamento e de abertura não só à informação credível que não nos agrada como também ao debate sério e elevado de ideias e de políticas. Só assim conseguiremos que seja mais difícil sermos enganados e manipulados (e destruídos!) pelos nossos inimigos que se disfarçam de amigos.

Mais uma vez, admito que tenho a tendência para cultivar o “o «meu» mundo;”, como reação à violência que sinto impregnar-se cada vez mais em muita da cultura que me rodeia. Assusta-me deveras essa violência que vejo, por exemplo, em obras de arte contemporânea, sejam pinturas, sejam filmes, séries ou livros de ficção.

No entanto, a verdade é que, a mim, atrai-me o diferente, a alternativa, a pluralidade, nenhuma destas coisas me incomoda, pelo contrário, quanto mais diferente, mais me atrai (desde que a variável da violência esteja totalmente fora da equação).

Aliás, sempre adorei ser professor de turmas com alunos portugueses, estrangeiros, sobredotados, com dificuldades, etc., pois descobri que todos contribuíam para nos tornarmos melhores pessoas (e a mim também melhor professor).

Finalmente, muito interessante a ideia expressa pelo Papa no final do parágrafo. Na verdade, quem constrói muros à sua volta está, de facto, a contruir uma prisão para si, a empobrecer a sua existência e a rejeitar vários horizontes de possíveis enriquecedores da sua vida.

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