quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Dulce Maria Cardoso, Eliete - Parte 1 - A Vida Normal

 

Tinta da China, 2020

(94)

(…), era apenas uma incapacidade minha, não sabia questionar a origem das coisas nem alterar o que me desagradava, aceitava quase tudo à minha volta como inevitável e imutável.

Este é o ponto de partida de Eliete neste livro. Trata-se do ponto-chave deste romance. Porque é aqui que Eliete toma consciência da pessoa que foi até este momento. E essa tomada de consciência é o primeiríssimo passo para ela se começar a afastar dessa Eliete anterior. A partir daqui, vamos assistir ao seu crescimento (na p. 143, as interrogações começam a explodir dentro de Eliete), ao modo como vai superando a distância que vai dos sonhos da infância e da juventude até ao real da idade adulta, à sua caminhada para a independência. O livro acaba numa espécie de encruzilhada em que nos falta saber se Eliete tomará uma decisão exultante de corte com o passado ou se afinal não vai arriscar dar o salto decisivo. Dulce Maria Cardoso irá continuar com esta saga pessoal?

 

De todo o modo, a autora mostra-nos nesta obra que é pensando e escrevendo (sim, escrevendo, porque não? Nada nos diz que não estamos a ler um relato escrito) que expandimos a nossa humanidade. Mostra-nos Eliete a começar pequenina, e a acabar claramente num caminho bem mais amplo do que quando começou, por via destes dois processos, o do pensamento e o da escrita.

Devo confessar que a arte de Dulce Maria Cardoso quase conseguiu fazer-me acreditar na verosimilhança deste percurso. Este “quase” advém, não de qualquer falha da autora, mas simplesmente da minha convicção de que não é possível este crescimento pessoal numa sociedade que faz pressões imensas e insidiosas para o conformismo, se a pessoa não recorrer à leitura de livros (que não aparece nesta obra).

 

(274 e 275)

Veja-se aqui a excelente descrição de como os contextos sociais em que estamos mergulhados, e a pressão que eles exercem sobre nós, nos “obrigam” a desempenhar determinados papéis de que é muito difícil desprendermo-nos, mesmo quando eles já estão mortos para nós. Se não tivermos a ajuda e o apoio dos livros, é muito difícil resistir-lhes.

 

Nesta obra, Dulce Maria Cardoso prefere realçar o papel que as redes sociais desempenham neste processo. No que toca à Eliete, são elas que lhe dão o impulso para iniciar a sua caminhada de libertação. Mas também constituem um mundo que estimula a solidão acompanhada, fruto de um afastamento entre as pessoas onde cada uma fala de e para si mesma. E, finalmente, um mundo de aparente abundância, de irrealidade, que acaba por anestesiar Eliete e entorpecê-la, acabando por lhe roubar valor a tudo o que antes o tinha. Ou seja, este mundo foi um instrumento de libertação mas, ao mesmo tempo ou na sua sequência, de alguma forma foi um motor de um certo esvaziamento espiritual.

 

(204)

(…), o país não era para velhos, os tempos não eram para velhos, (…).

A forma como a avó de Eliete é vista e tratada ilustra igualmente o contexto onde este mundo das redes sociais floresce. Trata-se de uma componente deste livro que não ocupa o centro do palco, mas está sempre lá, um pouco como uma música de fundo baixinha (em particular, lembra-nos que esta é uma sociedade em que tentar viver o máximo de tempo possível não é sempre uma boa ideia).

 

Em suma, esta é uma obra que constitui uma inspiração, mas também uma provocação muito interessante que nos interroga e questiona a sociedade em que vivemos, uma obra que mostra mais do que demonstra, tudo feito sempre com muita arte por Dulce Maria Cardoso.

 

P.S. 1:

Curiosamente, a maior parte deste livro evocou emoções que me transportaram para a leitura que fiz d’A Náusea, de Sartre, há décadas atrás. Sinto-me imensamente longe disto tudo que Dulce Maria Cardoso descreve. Só faltaria a Eliete ir a um programa popular de TV para completar o quadro de uma banalidade completa. Não é que não sinta compaixão, é apenas que encontro em mim uma violenta aversão a este tipo de vida que é corrompida pela mediocridade sem qualquer brilho (a não ser o que vem dos ecrãs dos telemóveis).

Uma explicação óbvia para esta minha reação, claro está, é eu ver-me demasiado próximo de Eliete e não gostar de me ver retratado. É verdade, por exemplo, que fiquei com a minha curiosidade aguçada em relação ao Tinder. E não, não tenho nem vou ter conta lá, nem sequer visitarei o site, pois sinto perigo, sinto que aquilo, ao contrário do que foi para Eliete, representaria destruição para mim.

Uma outra explicação é eu não gostar do uso de palavrões, exceto em alguns (poucos) contextos de comicidade. Porque os palavrões têm conotações feias e são muito agressivos. Como acredito que as palavras inspiram ideias e as ideias inspiram ações, acho perigoso o uso libertário dos palavrões. Para mim, representam o começo da normalização da violência.

Aqui surge apenas o palavrão f*, logo desde a primeira frase. No fim, na p.247 a personagem explica que é para expressar a ausência de amor. Certo. Mas seria necessário? Penso que não. O leitor não é burro e apercebe-se dessa ausência logo a partir das primeiras páginas.

Outra função do uso dele poderia ser mostrar-nos que Eliete pertence a uma classe média baixa ou mesmo popular, um pouco à maneira dos livros de António Lobo Antunes (que este livro, pelo menos a sua primeira metade, parece evocar).

O certo é que, de cada vez que aquele palavrão surgia, ele era uma bomba que estilhaçava a construção estético-literária que eu ia fazendo até ao momento, deixando atrás de si cinzas frias e uma enorme ausência de interesse pela continuação da leitura. A explicação do seu uso por Eliete não me resolveu este problema.

Apesar disto, acabei o livro sentindo que, de facto, e no fim de tudo, tenho algo de Eliete em mim, que eu também já fui e ainda sou um pouco a Eliete.

 

P.S. 2:

(227)

(nota extra feita do ponto de vista da Psicologia)

Excelente descrição, e muito clara, de como as críticas e as “sugestões bem-intencionadas” só servem para afastar e isolar as pessoas a quem as dirigimos.

 


domingo, 8 de novembro de 2020

Alberto Ferreira, Diário de Édipo

 


Portugália Editora, 1965

 

(5)

Por isso havia pelas ruas só despojos: pedaços de madeira, pedras, vidros partidos e restos de esperança para quem quer que pudesse ler no invisível.

 

(12)

Gorki, porém, é um mestre que não oprime, pois o próprio do génio é conceder a liberdade.

E do sábio. O génio está demasiado fora do meu alcance, mas da sabedoria vou-me infinitamente aproximando. E sei que quanto mais sábio, mais respeito a liberdade dos outros.

 

(12)

Quando penso, experimento irreprimivelmente a necessidade de me explicar o que penso. Explicando-me, explico os outros e a sua condição enigmática. Bem, isto assim dito, parece estar certo. Não está. Porque não atinge o mais profundo pensar o diálogo com a própria consciência. Non cogito sed cogitamus. Em rigor, não há diálogo sem a activa presença de um outro, pois se connosco conversamos, anulamos a comunicação na insólita tentativa de nos objectivarmos como sujeitos singulares. De facto, não dialogo comigo – rigorosamente só me enfrento. Para descobrirmos um pouco da nossa essência temos de a manifestar aos outros. Talvez então, nos outros, possamos assumir a verdadeira consciência. Eu sei que ser não é apenas consciência – mas, sem a poderosa dimensão reflexiva, seríamos acaso homens e mulheres? Não basta afirmarmo-nos como seres. Temos de nos afirmar como seres humanos.

 

(14)

Cada um inventa a forma de se explicar. Eu, Édipo, ser do tempo, encontrei esta forma.

Para mim, este blog é também uma das formas que encontrei para me explicar.

 

(19)

(…) e ficámos os dois a gozar as poucas coisas que não custam dinheiro. Era – e é – um céu tranquilo, leve como asa de pássaro, composto na largueza caprichosa duma mancha de ouro velho refulgente.

 

(20)

Depois pressinto a intimidade desta pequena-burguesia que vai despertar daqui a minutos e dói-me a sua pequenez. Para me curar deste sentimento vou espantar-me novamente com a grandeza do Sol…

E dói-me a dúvida: serei eu pequeno também? E leva esta pergunta já uma resposta incluída? Aqui, em caso de dúvida, eu diria que fica excluída a absolvição. De uma coisa eu sei: esta interrogação só será útil se ela for o início e motor de uma mudança para melhor, de um crescimento. Caso contrário, a pequenez, a existir, ser-me-á irremediável.

 

(24)

«Escrevendo à luz débil me pergunto se é a morte ou a manhã que espero». Leio isto num dos meus poetas predilectos – Carlos de Oliveira. E eu mansamente te respondo o que tu sabes, meu triste, desesperado, grande poeta: espera-te a morte e a manhã.

 

(25)

Não passo de um enregelado em busca do calor da esperança, tão abatido como tu pela vida sem grandeza. Tão atingido no cerne do meu sentir como todos. Todos. Sei, porém, sei que há em nós uma fonte secreta de água viva.

 

(28)

Simplesmente: quando analiso o meu deserto, só pelo acto de o analisar, compreendo que franqueio as portas da liberdade.

Por isso, não abdico de pensar, de perguntar e de me interrogar. Também eu, assim, me vejo a abrir a porta à liberdade. Saindo eu, abraço-a.

 

(36)

Mas tenho comigo a liberdade de pensar aquilo a que aspiro. Essa é a minha força – ou uma das minhas forças.

 

(55)

Não crês, velho homem, que o nosso ódio se transforme em amor? E que só o teu ódio é infecundo? Que o teu ódio, companheiro de infames sortilégios, é incapaz de se reproduzir, extenuado de maldade, estéril como um diabo sem mulher? (…) Não sentes, pequeno monstro despedaçado, que ainda vives porque nós não crescemos? Enregelas como um ser sem trono. Regressa das sombras, Aquiles, e diz-nos: que vale reinar sobre um povo extinto?

 

(67)

Com tudo isto à nossa beira, cercados, ansiosos, deprimidos e esquivos. Que sei eu? O isolamento angustia, mas o que mais dói e deprime é o balir do rebanho. Por isso aprovo aquela literatura burguesa que dissolva a vulgaridade e o conformismo.

 

(78)

Ignoro se acerto. Sei, todavia, que muitos de nós desacertam. E esta verificação é a minha forma pessoal de acertar. A minha evidência.

 

(87)

(…) Hegel (…) Assim surgiu a filosofia como reconciliação (como reconciliação…) da destruição desse mundo real que o pensamento havia começado…

Penso a fim de ligar as peças do puzzle, e para dar sentido ao que me escapa… porque escapam, faltam sempre peças do puzzle.

 

(105)

Negar o que é e está não basta. Difícil, mas necessário é substituir o que é e está por um outro que o contém e supera.

 

(111)

Eu, que sou, por vezes, um esquecido da origem, sem saber meu nome, exprimindo românticamente a vida como o revolucionário que morre na barricada pelo ideal que só se realizará duzentos anos depois…

Valores pelos quais propugno e que sei que nem daqui a duzentos anos: compaixão e bondade como componentes essenciais nas relações entre as pessoas, consideração e respeito no cuidar das crianças, decência, cuidado com o ambiente, … No entanto, diz-nos mais à frente Alberto Ferreira, e nisso me consolo:

 

(126)

Sofro, com um pouco de metafísica e com alguma realidade vivida, em uníssono com os que pereceram sem ver florir as sementes de luz que generosamente espalharam. Ah! Mas não esqueço que tiveram a glória de as lançar à terra ingrata!

 

(127)

(…) (nesta quadra adormecida em que as ideias do futuro existem como sufocadas – António Pedro Lopes de Mendonça…).

(«António Pedro Lopes de Mendonça (Lisboa, 14 de Novembro de 1826 — Lisboa, 8 de Outubro de 1865), mais conhecido por Lopes de Mendonça, foi um jornalista, romancista, dramaturgo e folhetinista português, que também se destacou como activista social, defendendo um socialismo utópico e romântico como forma de melhorar as condições de vida do proletariado. Escritor eclético e de causas, foi sobretudo como crítico literário que ficou na história da literatura portuguesa.»

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Pedro_Lopes_de_Mendon%C3%A7a)

 

(130)

Interrogo a minha época. Interrogo-a e sinto que dela me distancio como se nela não vivesse. E não sou eu apenas. Somos nós – uma geração, (…).

 

(133)

Esta juvenil imprudência, a paixão generosa que nos anima, coloca-nos na situação ambígua de desadaptados.

 

(137)

Enquanto assim medito e escuto lamentações e gritos, dói-me não transferir esta ânsia do peito para os braços.

 

(157)

Quero o mundo sem vencedores para que não haja vencidos.

Por isso, detesto quase todos os desportos, incluindo o futebol.

 

(158)

Homem autêntico é, se não me engano, o que possui a mínima consciência da sua particular situação. E aquele que a possui repara que o mundo se divide: num lado constrói-se a humanidade, no outro aos poucos se destrói: nós ainda estamos no lado da destruição. Ainda que muitos não se deem conta desta angustiosa situação não deixaremos por isso de possuir uma consciência trágica. (…) eu sou do meu tempo… e vivo-o na consciência de que isto que me cerca e exila é e não é o mundo de amanhã.

 

(159)

Em cada dia, em cada hora, em cada instante teremos de permanecer no que somos e, ao mesmo tempo, de prevalecer sobre o que somos. Sem esta constante perspetiva cada homem pode morrer no íntimo da sua própria consciência e aí ficar solidificado como o fóssil da crisálida. Sem esta permanente acuidade cada homem tenderá a esquecer que a vida é algo que ele merece apenas obtenha a vitória sobre si e os outros. Vitória sobre si: renunciando ao que o aliena. Sobre os outros: domando o que nos outros conduz à alienação coletiva. Nada disto se obtém sem coragem.

 

(204)

Cada vez me furto mais à opressão do convívio gratuito, sem saber o caminho, recuando às cegas. Como poderei aferir o valor de uma presença humana? Uma coisa me parece irrefutável: é necessário reduzir os laços até converter a ligação ao silêncio. Quando se fala e condescende deixamo-nos invadir por aquilo que nos outros é pobreza.

Sinto isto de forma aguda em relação ao Facebook. Tantas vezes não se trata de condescendência, mas de cansaço e do reconhecimento que o adversário tem mais armas e mais violentas à sua disposição do que nós. A tarefa de não nos deixarmos invadir mantendo-nos no campo de batalha (que os outros escolheram como tal, não eu) parece de tal forma gigantesca e inútil que dele eu opto por me retirar e me manter afastado.

A investigação demonstra que quanto mais uma pessoa está disposta a exprimir certezas acerca de um determinado assunto, maior é a probabilidade de a sua ignorância sobre esse assunto ser maior. Ou seja, por outro lado, quem mais e melhor sabe, menos certezas tem e mais dúvidas verbaliza. Mesmo quando esta última posição de interrogação é a que permite melhor chegar à verdade (ou pelo menos de nos aproximarmos mais dela), ela é tão facilmente desbaratada pelos que têm certezas (ou fingem tê-las); e raros são os que resistem à tentação de o fazer. Também isto cansa infinitamente os que procuram honestamente a verdade.

A próxima citação de Alberto Ferreira lança mais alguma luz, infelizmente sem diminuir muito as sombras.

 

(231)

(…) Não se persuade um desconhecido com a retórica da justiça, do bem e da verdade. Nem a justiça, o bem e a verdade se inculcam em dois minutos de conversa. Tudo isto leva uma vida a ensinar. Uma vida e a própria vida. Respondo, cuidadosamente, como Édipo: estou aqui porque quero ser «um exemplo vivo de dignidade». Fitamo-nos nos olhos e compreendemo-nos quanto é possível.

O último período tem o tom inconfundível do “wishful thinking”, mas pouco provável de se concretizar.

 

(232)

Gostaria de ter ódio e não tenho. Preferia revoltar-me até às raízes mais profundas da minha dignidade ofendida, mas não me revolto. Preferia cuspir o meu desprezo, a minha raiva, e não o faço. Desejaria insultá-los até ao sentido mais justiceiro do insulto e não insulto. Estou aqui a discutir, a persuadir, a desfazer, ponto por ponto, as acusações que me atiram como pedradas. Estou assim porque o ódio, a revolta, o desprezo, a raiva, o insulto não constituem o profundo sentido da minha força, da minha dignidade e do meu humanismo. Estou assim porque resisto e resistir não é ofender. Estou assim porque luto na defesa – ao lado das vítimas… Estou assim porque luto à minha maneira. Porque viso demonstrar que o meu ideal é autêntico e o autêntico não pode deixar de impressionar um homem, mesmo que ele seja – ou pretenda ser – o meu carrasco.

 

(252)

Decerto pensava o que escrevia, mas tinha de sentir fortemente o que pensava para escrever.

E isso vê-se, sente-se em cada palavra, em cada frase ou parágrafo deste livro…

 

(254)

Por que não hei-de aceitar alegremente o provisório da vida se a morte é irremediável? Por que opor à alegria a trágica inquietação da morte? Por que não hei-de reconhecer o provisório da infância se dela algo me fica na recordação? Só a morte não recorda a vida…

 

(254)

Prudentes sábios insinuam-nos que o adolescente não sabe a vida. Que vozes são essas? Vozes roucas, secas, impuras. Aqui onde eu já cheguei, passados os anos itinerantes, bem vejo, bem reparo que me não completei, e, enquanto assim sou, algo da adolescência me sustenta. Orgulha-me esta condição.

Às vezes interrogo-me que parte de mim rejeita determinadas ideias áridas que me beneficiariam materialmente no curto e médio prazo (a longo prazo já não saberei dizer). E que parte de mim, a dominante, pelo contrário, adere a uma opção de vida pela justiça, pela bondade, pela decência. A fonte de onde nasceu esta parte sei eu onde está: na adolescência e na juventude, altura em que descobri que havia uma iniquidade mais geral no mundo, não apenas à minha volta; e que era possível a dignidade se me mantivesse fiel a uma ideia que me elevasse para além da minha condição natural (ou da condição que muitos outros me queriam impor).

 

(258)

Desistir dos caminhos da interrogação é ignorar definitivamente – e com essa definitiva desistência nos desarmarmos.

 

(259)

Quem julgue que tudo se alcança e apreende de uma só vez, sacrifica a esperança – e todo o lirismo da esperança – no altar de impossíveis mitos. Quem se proponha a perfeição sem respeitar o imperfeito, jamais tempera as armas com que se vence a espera desesperada. O absoluto é, sem dúvida, uma bela ideia mas a sua verdade dorme no relativo. A impassibilidade da ideia perfeita seduz mas não resolve as nossas contradições fundamentais.

Esperar o imediato ou a perfeição é garantir a certeza de um fracasso estéril, ou seja, com o qual quase nada se aprende de construtivo. Contentarmo-nos com o imperfeito também não é a solução. Ela está nesta proposta de Alberto Ferreira: propor-me a perfeição respeitando sempre o imperfeito.

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Texto que publiquei no Facebook, a 6 de novembro de 2020:

 

«Não basta afirmarmo-nos como seres. Temos de nos afirmar como seres humanos.» (Alberto Ferreira, 1965, “Diário de Édipo”, 2ª ed., p. 13)

Hoje, recordo o melhor professor que eu tive em toda a minha vida. Foi também professor de António Rosa Mendes que lhe dirigiu as seguintes palavras numa carta de 13 de novembro de 1984 e que faço também absolutamente minhas:

«Acontece porém que (…) você deixou na minha formação humana uma marca indelével. (…) Por isso, porque cada um tem o seu momento em que julga perceber um fulgor, uma vocação – eu tive esse e, queira ou não queira, foi você que o determinou (…).»

Alberto Ferreira foi professor de História da Cultura Portuguesa na extensão da Faculdade de Letras, em Faro, de 1979 até 1981.

Faz hoje 100 anos, 1 mês e 1 dia que Alberto Ferreira nasceu. Podemos encontrar a sua biografia (uma vida interessantíssima) e testemunhos (como o que transcrevi anteriormente) no livro “Alberto Ferreira, 1920-2000 – Escrita e Intervenção”, 2010, numa excelente edição da Biblioteca Nacional de Portugal, da responsabilidade de Maria José Marinho e de Manuela Vasconcelos.


E em

https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/photos/alberto-ferreira-1920-2000foi-um-resistente-antifascista-l%C3%BAcido-e-%C3%ADntegro-a-sua-/716664255109623/

e

https://aviagemdosargonautas.net/2011/09/19/alberto-ferreira-um-filosofo-esquecido-por-antonio-sales/

A propósito do seu valor como escritor-filósofo, e numa recensão aos livros “Ensaios: da Filosofia para a História” e “Diário de Édipo”, Óscar Lopes escreveu em 1965, n’O Comércio do Porto:

«Alberto Ferreira é o mais penetrante espírito filosófico que entre nós se me tem revelado desde que, há cerca de catorze anos, me responsabilizo por esta secção de crítica. (…)»

Termino por onde comecei. O melhor professor, a ensinar filosofia mas, principalmente, humanidade e fraternidade. Agora, ao reler Diário de Édipo, recordei-o e pude continuar a reconhecer-me como discípulo ainda e sempre de Alberto Ferreira. 


domingo, 1 de novembro de 2020

Platão, Górgias

 

Traduzido por Manuel de Oliveira Pulquério, edições 70, 1992.


«(…) fiz a pergunta para não te admirares se, daqui a pouco, te interrogar sobre coisas que parecem evidentes e que, no entanto, me obrigam a interrogar-te de novo. Se assim procedo, é, repito, para conduzir de forma coerente a discussão, não por qualquer espécie de má vontade pessoal. Penso que não nos devemos habituar a adivinhar-nos mutuamente o pensamento, antecipando as palavras que ainda estão por proferir; importa que tu desenvolvas livremente os teus raciocínios segundo os princípios que tu próprio estabeleceste.» (454 c)

Sócrates não está tão preocupado com o que vai dizer, mas mais com entender o que a outra pessoa lhe quer comunicar. Este é um extraordinário princípio a seguir nas nossas conversas e discussões: primeiro, querer perceber o outro.

Ele também não está preocupado em falar de si próprio ou das suas ideias. Eis uma excelente decisão para tomarmos no início de uma conversa: não falar primeiro de nós ou das nossas ideias.

Sócrates mostra ainda que quer aprender algo com o seu interlocutor. Eis também um ótimo preceito a seguir nas nossas conversas: tentar descobrir algo de novo sobre o nosso interlocutor, ou também com ele.

 

«Estou a pensar, Górgias, que deves ter assistido como eu a muitas discussões e observado que , quando dois homens se propõem conversar, é sempre com dificuldade que limitam o âmbito da discussão e raramente se separam depois de se ter instruído e esclarecido reciprocamente. Pelo contrário, se divergem em relação a algum ponto e um deles pensa que o outro fala com pouca exatidão ou clareza, perdem a cabeça, convencem-se de que o interlocutor age por maldade, levados mais pelo espírito de disputa do que pelo desejo de esclarecer o tema proposto. Alguns acabam por se injuriar grosseiramente e despedem-se depois de ter dito e ouvido tais coisas que os presentes chegam a deplorar a ideia de ter sido auditório de gente de tal categoria.

Porque digo eu estas coisas? É que me parece que tu, neste momento, estás a fazer afirmações que não são inteiramente consistentes e harmónicas com as que fizeste a princípio sobre a retórica. Temo, no entanto, refutar-te, não vás tu supor que, nesta discussão, me movem quaisquer razões pessoais contra ti, em vez do simples propósito de dilucidar a questão. Se vês as coisas como eu, terei muito gosto em continuar a interrogar-te; de outro mofo, fico por aqui.

Que espécie de homem sou eu? Sou daqueles que gostam de ser refutados quando estão em erro e que gostam de refutar os outros quando são os outros que erram, não sentindo nunca mais gosto em refutar do que em ser refutado. É que esta última situação é para mim muito mais vantajosa, porque reputo maior bem ser libertado do maior dos males do que libertar outrem. Nada, efetivamente, me parece mais prejudicial a um homem do que ter ideias falsas sobre a matéria que tratamos.» (457 c, d, e, 458 a, b)

Ideias interessantes sobre a discussão como um empreendimento em busca da verdade. O problema é que a maior parte das discussões não têm este objetivo, mas são antes questões de poder ou de conflitos passados não resolvidos. O que as inquina logo à partida.

 

«Admito, aliás, que tenhas falado com justeza e que simplesmente eu não te tenha entendido bem.» (458 e)

Humildade na comunicação.

 

«Polo – então tu preferirias ser vítima duma injustiça a cometê-la?

Sócrates – Eu propriamente não quereria nem uma coisa nem outra. Mas se tivesse de escolher entre praticar e sofrer uma injustiça, preferiria sofrê-la.» (469 c)

Uma das declarações mais importantes e contrárias ao senso comum, porque vai contra o dar-se primazia à sobrevivência pessoal, da história da Ética.

 

«Sócrates - (…) tu entendes que é possível ser feliz, sendo injusto e praticando o mal (…)?

Polo – É exatamente o que eu penso.

Sócrates – Pois eu digo que isso é impossível e este é o primeiro ponto sobre o qual estamos em desacordo. (…)» (472 d)

Felicidade sem se ser justo é impossível. Ser-se justo sem se ser bondoso é impossível (a menos que se aceite uma justiça desumana). Ser-se bondoso sem se ser compassivo é possível, mas é como andar por um caminho bom sem ver, sem ouvir, sem cheirar e sem sentir.

 

O programa deste livro é discutir e perceber o que nos traz mais felicidade. Como? É o que aqui Sócrates resume:

«(…) Das nossas longas discussões saíram refutadas todas as teorias, menos uma, que permanece firme: a de que convém evitar com mais empenho cometer a injustiça do que sofrê-la; que cada homem se deve esforçar mais por ser do que parecer bom, em público como em privado; que, se alguém procedeu mal em alguma coisa, deve ser castigado, porque o maior bem, depois do de ser justo, é passar a sê-lo, sofrendo o castigo que se mereceu; que é preciso fugir de toda a forma de lisonja, tanto em relação a si próprio como em relação aos outros, quer sejam poucos, quer sejam muitos; finalmente, que se deve pôr a retórica, como qualquer outra coisa, sempre ao serviço do bem.» (527 c)

E qual será este bem? Segundo Gandhi, o bem é muito simplesmente tudo o que vier a beneficiar os mais pobres dos pobres.

 

Uma nota final de chamada de atenção para uma contradição de Sócrates:

Em 516e, Sócrates diz: «(…) Ora, se estes homens [Péricles, Címon, Milcíades e Temístocles] tivessem sido bons cidadãos, como tu dizes, não teriam sofrido o que sofreram» [Péricles condenado por roubo e quase condenado à morte (516a). Címon condenado ao ostracismo (516d). Milcíades condenado a ser lançado ao báratro (516e). Temístocles condenado ao ostracismo e exilado para sempre (516d).]

Mas em 521c, Sócrates já apresenta outro critério quando se refere à possibilidade lhe acontecer o mesmo que àqueles homens:

«Não me venhas dizer uma vez mais que serei morto por quem o desejar, se não queres que eu te repita que isso apenas significa que um perverso matará um homem de bem; (…)»

e

521d: «(…) se alguém me levar a tribunal, expondo-me aos perigos que referes, esse alguém terá de ser mau, porque nenhum homem de bem arrasta ao tribunal um inocente.»

 

Afinal, uma escrita acessível, divertida e refletida por um dos maiores filósofos da humanidade, portanto, do máximo interesse para qualquer pessoa.




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