domingo, 1 de novembro de 2020

Platão, Górgias

 

Traduzido por Manuel de Oliveira Pulquério, edições 70, 1992.


«(…) fiz a pergunta para não te admirares se, daqui a pouco, te interrogar sobre coisas que parecem evidentes e que, no entanto, me obrigam a interrogar-te de novo. Se assim procedo, é, repito, para conduzir de forma coerente a discussão, não por qualquer espécie de má vontade pessoal. Penso que não nos devemos habituar a adivinhar-nos mutuamente o pensamento, antecipando as palavras que ainda estão por proferir; importa que tu desenvolvas livremente os teus raciocínios segundo os princípios que tu próprio estabeleceste.» (454 c)

Sócrates não está tão preocupado com o que vai dizer, mas mais com entender o que a outra pessoa lhe quer comunicar. Este é um extraordinário princípio a seguir nas nossas conversas e discussões: primeiro, querer perceber o outro.

Ele também não está preocupado em falar de si próprio ou das suas ideias. Eis uma excelente decisão para tomarmos no início de uma conversa: não falar primeiro de nós ou das nossas ideias.

Sócrates mostra ainda que quer aprender algo com o seu interlocutor. Eis também um ótimo preceito a seguir nas nossas conversas: tentar descobrir algo de novo sobre o nosso interlocutor, ou também com ele.

 

«Estou a pensar, Górgias, que deves ter assistido como eu a muitas discussões e observado que , quando dois homens se propõem conversar, é sempre com dificuldade que limitam o âmbito da discussão e raramente se separam depois de se ter instruído e esclarecido reciprocamente. Pelo contrário, se divergem em relação a algum ponto e um deles pensa que o outro fala com pouca exatidão ou clareza, perdem a cabeça, convencem-se de que o interlocutor age por maldade, levados mais pelo espírito de disputa do que pelo desejo de esclarecer o tema proposto. Alguns acabam por se injuriar grosseiramente e despedem-se depois de ter dito e ouvido tais coisas que os presentes chegam a deplorar a ideia de ter sido auditório de gente de tal categoria.

Porque digo eu estas coisas? É que me parece que tu, neste momento, estás a fazer afirmações que não são inteiramente consistentes e harmónicas com as que fizeste a princípio sobre a retórica. Temo, no entanto, refutar-te, não vás tu supor que, nesta discussão, me movem quaisquer razões pessoais contra ti, em vez do simples propósito de dilucidar a questão. Se vês as coisas como eu, terei muito gosto em continuar a interrogar-te; de outro mofo, fico por aqui.

Que espécie de homem sou eu? Sou daqueles que gostam de ser refutados quando estão em erro e que gostam de refutar os outros quando são os outros que erram, não sentindo nunca mais gosto em refutar do que em ser refutado. É que esta última situação é para mim muito mais vantajosa, porque reputo maior bem ser libertado do maior dos males do que libertar outrem. Nada, efetivamente, me parece mais prejudicial a um homem do que ter ideias falsas sobre a matéria que tratamos.» (457 c, d, e, 458 a, b)

Ideias interessantes sobre a discussão como um empreendimento em busca da verdade. O problema é que a maior parte das discussões não têm este objetivo, mas são antes questões de poder ou de conflitos passados não resolvidos. O que as inquina logo à partida.

 

«Admito, aliás, que tenhas falado com justeza e que simplesmente eu não te tenha entendido bem.» (458 e)

Humildade na comunicação.

 

«Polo – então tu preferirias ser vítima duma injustiça a cometê-la?

Sócrates – Eu propriamente não quereria nem uma coisa nem outra. Mas se tivesse de escolher entre praticar e sofrer uma injustiça, preferiria sofrê-la.» (469 c)

Uma das declarações mais importantes e contrárias ao senso comum, porque vai contra o dar-se primazia à sobrevivência pessoal, da história da Ética.

 

«Sócrates - (…) tu entendes que é possível ser feliz, sendo injusto e praticando o mal (…)?

Polo – É exatamente o que eu penso.

Sócrates – Pois eu digo que isso é impossível e este é o primeiro ponto sobre o qual estamos em desacordo. (…)» (472 d)

Felicidade sem se ser justo é impossível. Ser-se justo sem se ser bondoso é impossível (a menos que se aceite uma justiça desumana). Ser-se bondoso sem se ser compassivo é possível, mas é como andar por um caminho bom sem ver, sem ouvir, sem cheirar e sem sentir.

 

O programa deste livro é discutir e perceber o que nos traz mais felicidade. Como? É o que aqui Sócrates resume:

«(…) Das nossas longas discussões saíram refutadas todas as teorias, menos uma, que permanece firme: a de que convém evitar com mais empenho cometer a injustiça do que sofrê-la; que cada homem se deve esforçar mais por ser do que parecer bom, em público como em privado; que, se alguém procedeu mal em alguma coisa, deve ser castigado, porque o maior bem, depois do de ser justo, é passar a sê-lo, sofrendo o castigo que se mereceu; que é preciso fugir de toda a forma de lisonja, tanto em relação a si próprio como em relação aos outros, quer sejam poucos, quer sejam muitos; finalmente, que se deve pôr a retórica, como qualquer outra coisa, sempre ao serviço do bem.» (527 c)

E qual será este bem? Segundo Gandhi, o bem é muito simplesmente tudo o que vier a beneficiar os mais pobres dos pobres.

 

Uma nota final de chamada de atenção para uma contradição de Sócrates:

Em 516e, Sócrates diz: «(…) Ora, se estes homens [Péricles, Címon, Milcíades e Temístocles] tivessem sido bons cidadãos, como tu dizes, não teriam sofrido o que sofreram» [Péricles condenado por roubo e quase condenado à morte (516a). Címon condenado ao ostracismo (516d). Milcíades condenado a ser lançado ao báratro (516e). Temístocles condenado ao ostracismo e exilado para sempre (516d).]

Mas em 521c, Sócrates já apresenta outro critério quando se refere à possibilidade lhe acontecer o mesmo que àqueles homens:

«Não me venhas dizer uma vez mais que serei morto por quem o desejar, se não queres que eu te repita que isso apenas significa que um perverso matará um homem de bem; (…)»

e

521d: «(…) se alguém me levar a tribunal, expondo-me aos perigos que referes, esse alguém terá de ser mau, porque nenhum homem de bem arrasta ao tribunal um inocente.»

 

Afinal, uma escrita acessível, divertida e refletida por um dos maiores filósofos da humanidade, portanto, do máximo interesse para qualquer pessoa.




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