Traduzido por Manuel de Oliveira Pulquério, edições 70, 1992.
«(…) fiz a pergunta para não te admirares se, daqui a pouco, te interrogar sobre coisas que parecem evidentes e que, no entanto, me obrigam a interrogar-te de novo. Se assim procedo, é, repito, para conduzir de forma coerente a discussão, não por qualquer espécie de má vontade pessoal. Penso que não nos devemos habituar a adivinhar-nos mutuamente o pensamento, antecipando as palavras que ainda estão por proferir; importa que tu desenvolvas livremente os teus raciocínios segundo os princípios que tu próprio estabeleceste.» (454 c)
Sócrates não está tão preocupado com o que vai dizer, mas
mais com entender o que a outra pessoa lhe quer comunicar. Este é um
extraordinário princípio a seguir nas nossas conversas e discussões: primeiro,
querer perceber o outro.
Ele também não está preocupado em falar de si próprio ou das
suas ideias. Eis uma excelente decisão para tomarmos no início de uma conversa:
não falar primeiro de nós ou das nossas ideias.
Sócrates mostra ainda que quer aprender algo com o seu
interlocutor. Eis também um ótimo preceito a seguir nas nossas conversas:
tentar descobrir algo de novo sobre o nosso interlocutor, ou também com ele.
«Estou a pensar, Górgias, que deves ter assistido como eu
a muitas discussões e observado que , quando dois homens se propõem conversar,
é sempre com dificuldade que limitam o âmbito da discussão e raramente se
separam depois de se ter instruído e esclarecido reciprocamente. Pelo contrário,
se divergem em relação a algum ponto e um deles pensa que o outro fala com
pouca exatidão ou clareza, perdem a cabeça, convencem-se de que o interlocutor
age por maldade, levados mais pelo espírito de disputa do que pelo desejo de
esclarecer o tema proposto. Alguns acabam por se injuriar grosseiramente e
despedem-se depois de ter dito e ouvido tais coisas que os presentes chegam a
deplorar a ideia de ter sido auditório de gente de tal categoria.
Porque digo eu estas coisas? É que me parece que tu,
neste momento, estás a fazer afirmações que não são inteiramente consistentes e
harmónicas com as que fizeste a princípio sobre a retórica. Temo, no entanto,
refutar-te, não vás tu supor que, nesta discussão, me movem quaisquer razões
pessoais contra ti, em vez do simples propósito de dilucidar a questão. Se vês as
coisas como eu, terei muito gosto em continuar a interrogar-te; de outro mofo,
fico por aqui.
Que espécie de homem sou eu? Sou daqueles que gostam de
ser refutados quando estão em erro e que gostam de refutar os outros quando são
os outros que erram, não sentindo nunca mais gosto em refutar do que em ser
refutado. É que esta última situação é para mim muito mais vantajosa, porque
reputo maior bem ser libertado do maior dos males do que libertar outrem. Nada,
efetivamente, me parece mais prejudicial a um homem do que ter ideias falsas
sobre a matéria que tratamos.» (457 c, d, e, 458 a, b)
Ideias interessantes sobre a discussão como um
empreendimento em busca da verdade. O problema é que a maior parte das discussões
não têm este objetivo, mas são antes questões de poder ou de conflitos passados
não resolvidos. O que as inquina logo à partida.
«Admito, aliás, que tenhas falado com justeza e que
simplesmente eu não te tenha entendido bem.» (458 e)
Humildade na comunicação.
«Polo – então tu preferirias ser vítima duma injustiça a
cometê-la?
Sócrates – Eu propriamente não quereria nem uma coisa nem
outra. Mas se tivesse de escolher entre praticar e sofrer uma injustiça,
preferiria sofrê-la.» (469 c)
Uma das declarações mais importantes e contrárias ao senso
comum, porque vai contra o dar-se primazia à sobrevivência pessoal, da história
da Ética.
«Sócrates - (…) tu entendes que é possível ser feliz,
sendo injusto e praticando o mal (…)?
Polo – É exatamente o que eu penso.
Sócrates – Pois eu digo que isso é impossível e este é o
primeiro ponto sobre o qual estamos em desacordo. (…)» (472 d)
Felicidade sem se ser justo é impossível. Ser-se justo sem
se ser bondoso é impossível (a menos que se aceite uma justiça desumana). Ser-se
bondoso sem se ser compassivo é possível, mas é como andar por um caminho bom sem
ver, sem ouvir, sem cheirar e sem sentir.
O programa deste livro é discutir e perceber o que nos
traz mais felicidade. Como? É o que aqui Sócrates resume:
«(…) Das nossas longas discussões saíram refutadas todas
as teorias, menos uma, que permanece firme: a de que convém evitar com mais
empenho cometer a injustiça do que sofrê-la; que cada homem se deve esforçar
mais por ser do que parecer bom, em público como em privado; que, se alguém
procedeu mal em alguma coisa, deve ser castigado, porque o maior bem, depois do
de ser justo, é passar a sê-lo, sofrendo o castigo que se mereceu; que é
preciso fugir de toda a forma de lisonja, tanto em relação a si próprio como em
relação aos outros, quer sejam poucos, quer sejam muitos; finalmente, que se
deve pôr a retórica, como qualquer outra coisa, sempre ao serviço do bem.»
(527 c)
E qual será este bem? Segundo Gandhi, o bem é muito simplesmente tudo o
que vier a beneficiar os mais pobres dos pobres.
Uma nota final de chamada de atenção para uma contradição de
Sócrates:
Em 516e, Sócrates diz: «(…) Ora, se estes homens [Péricles,
Címon, Milcíades e Temístocles] tivessem sido bons cidadãos, como tu dizes, não
teriam sofrido o que sofreram» [Péricles condenado por roubo e quase
condenado à morte (516a). Címon condenado ao ostracismo (516d). Milcíades
condenado a ser lançado ao báratro (516e). Temístocles condenado ao ostracismo
e exilado para sempre (516d).]
Mas em 521c, Sócrates já apresenta outro critério quando se
refere à possibilidade lhe acontecer o mesmo que àqueles homens:
«Não me venhas dizer uma vez mais que serei morto por
quem o desejar, se não queres que eu te repita que isso apenas significa que um
perverso matará um homem de bem; (…)»
e
521d: «(…) se alguém me levar a tribunal, expondo-me aos
perigos que referes, esse alguém terá de ser mau, porque nenhum homem de bem
arrasta ao tribunal um inocente.»
Afinal, uma escrita acessível, divertida e refletida por um dos
maiores filósofos da humanidade, portanto, do máximo interesse para qualquer
pessoa.
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