sexta-feira, 30 de abril de 2021

Ramalho Ortigão, Banhos de Caldas e Águas Minerais

 

Quetzal Editores, 2019


Este livro parece ser um roteiro destinado a quem nunca frequentou estes sítios ou a quem já os frequenta, mas quer saber mais pormenores. E Ramalho mostra que não se poupou a esforços: viajou muito, recorreu com abundância a relatórios de análises clínicas e a livros de defensores das qualidades terapêuticas das águas.

Um primeiro aspeto curioso deste livro reside nalgumas considerações de saúde muito pertinentes e que fazem todo o sentido ainda hoje. Por exemplo:

(23)

Portanto, a primeira coisa que importa fazer ao ir para as Caldas é consultar um bom médico.

 

(23)

(…) Combater, ainda que o mais cientificamente possível, todos os pequenos sintomas irregulares do organismo é tirar à natureza os seus meios de prover à nossa conservação. Em muitos casos, em que a febre é um meio de cura empregado pela natureza, combater a febre é matar o doente. (…)

Esta ideia já é compreendida na medicina física, embora não aceite pelas pessoas: talvez por isso, ainda é brutal a quantidade de medicamentos que o doente exige do médico e que este muitas vezes prescreve às dúzias. Veja-se o livro Less Medicine, More Health, escrito por um médico, professor de medicina e investigador, H. Gilbert Welch.

 

(23)

Igual perigo em atacar os sintomas ostensivos em vez da verdadeira causa do mal em muitas outras enfermidades e principalmente nas doenças do coração.

Só uma interrogação: porque é que ainda hoje não se segue isto na doença mental? Porque é que na doença mental tratamos os sintomas? Por exemplo, se a pessoa se sente deprimida, dá-se-lhe um antidepressivo. Eis um excelente exemplo de como as ideias científicas fazem muito lentamente o seu caminho na sociedade.

 

(24)

(…) a [intervenção - está no original e “caiu” nesta edição] terapêutica compromete o sucesso da cura, sendo o método expectante da escola de Viena o que mais convém à vida do enfermo.

Deu-me vontade de rir a expressão usada: “método expectante”. Vontade de rir pela formulação, pois a ideia que ela expressa parece-me corretíssima (ver livro de H. Gilbert Welch acima referido).

 

Ramalho Ortigão até diz como o médico deve fazer em relação à doença física:

(24)

A obrigação de um médico moderno é socorrer-se de todos os meios de investigação que hoje lhe prestam as ciências positivas, conhecer inteiramente, até onde elas estão descobertas pela fisiologia, as funções de cada órgão, penetrar pela percussão, pela auscultação, pelo exame das secreções, pelo movimento das artérias, pela temperatura exata do corpo, nas profundidades do organismo humano, até descobrir através dos variados e complexos sintomas da doença a causa latente que a determina.

 

(38)

(…); assim o fingirmos que temos saúde é meio auxílio dado à saúde para que ela se estabeleça.

Pensamento positivo em 1875? Sem dúvida. Teremos evoluído muito, entretanto? Se calhar, não.

 

(80/1)

(…), o talento tenderá a abastardar-se sempre que não se inspirar no espírito nacional que o gerou.

É em tal sentido que nos parece duplamente saudável que os que viajam no verão em Portugal, os que percorrem as suas terras de caldas no interior das nossas províncias, se banhem na genuína tradição popular, o específico reconstituinte da adoentada alma portuguesa.

Como se vê, neste livro, Ramalho Ortigão também vai defendendo a ideia, comum após a industrialização, de que o campo é o território por excelência da regeneração do corpo e da alma portuguesa. Uma ideia muito defendida na altura ou à volta dessa época (lembremo-nos de A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós). Esta ideia que vai continuando sempre a aflorar, aqui e ali, em diferentes épocas.

E, apesar de não haver praticamente nenhuma referência à religião, todo o livro assenta sobre uma ideia profundamente religiosa e cristã: a água como purificadora do corpo e da alma, tanto por fora como por dentro, até no próprio título – Banhos de Caldas e Águas Minerais. Eu suspeito que, se não tivéssemos este mito por detrás, este livro perderia muito da sua sedução emocional.

 

(93)

(…) A felicidade consiste em acharmos na vida um destino e em o cumprirmos sempre com dedicação, e quando for preciso – com sacrifício. Desde que a nossa existência se consagra a um fim útil – não digo a um fim brilhante – a soma de felicidade que o mundo pode repartir a cada homem basta para nossa satisfação. Byron, o altivo chefe da escola dos desdenhosos e dos enfastiados, compreendeu afinal que era o sacrifício por uma ideia elevada o que faltava à sua existência e acabou por curar o seu spleen indo bater-se pela liberdade dos gregos. Procura também tu. Ermelinda; e não deixarás de readquirir o gosto da vida, encontrando um ente vivo, uma ideia, um princípio, uma obra a que consagres essa existência, que deixará de te pesar logo que deixe de te ser inútil.

Uma receita para a felicidade que as modernas teorias de psicoterapia e da Psicologia Positiva subscreveriam sem qualquer problema: viver de acordo com um valor mais elevado a que o espírito possa aspirar.

 

Águas que ainda hoje se bebem: Pedras Salgadas (111), Vidago (119), Vimeiro (165), (com 9,5 de pH) Monchique (191)

 

(141 e seguintes)

Sobre as Caldas da Rainha, talvez o capítulo mais interessante até ao momento, Ramalho descreve com ironia, ou até mesmo escárnio, tipos e episódios típicos presentes habitualmente nestas paragens.

 

(197)

Referência breve ao caíque (não uma «lancha») com que marinheiros de Olhão foram ao Brasil dar notícia da derrota dos franceses.

 

(201 até final)

«A Volta»

Um retrato (porque não é uma história, é mais uma sucessão de imagens) muito interessante e divertido, sob a forma de enumeração de quadros muito visuais, que acompanham o movimento da memória.

Destoa positivamente do resto do livro (que mais parece um relatório que lhe poderia ter sido encomendado).

 

(205)

(…) Há talvez um marido de mau génio que ralha com a sua mulher, o que é o espetáculo mais desolador e mais antipático em que se pode cevar a melancolia e o tédio. (…)

 Isto não mudou...


(205)

A teoria do prazer é esta: que é falso e nulo todo aquele que nós não pagamos com uma quantidade proporcional de nobre e bem entendido sacrifício.

A teoria de que o verdadeiro prazer é o que se obtém à custa de sacrifício. O problema aqui é esta palavra “sacrifício”. É que ela está muito associada ao sofrimento e à infelicidade. Eu preferiria a palavra “esforço”. Mas pode ser que, na altura, fosse este um dos significados dela.

Complementarmente a esta ideia, Vergílio Ferreira dizia a 19 de Junho de 1979, no Conta-Corrente 2, p. 274:

Hoje, reunião preparatória de exames. Chacinaram-me com provas de Português Complementar e Latim. Fiquei fulo e, todavia, agradecido: não sou ainda um traste sem préstimo. Mas é sabido: tudo quanto envolve valorização, envolve necessariamente pancada. Não se é homem onde se goza, é-se só onde se apanha. Já o disse não sei onde. Resultado – uma semana ou duas de castigo à banca, para ser da Humanidade. Mas é a lei de Deus desde Adão. Cá estou para aguentar a Bíblia e as chatices que vêm nela.

 

(208)

À leitora (…), que diante da sua fotografia tirada na volta das caldas, tenhamos de exclamar todos profundamente comovidos:

- Era uma linha. É agora um novelo.

Na altura, gordura era formosura?

 

Quais as minhas impressões sobre este livro (deixarei para o fim o que nele mais me desgostou)? Ambíguas, sem dúvida. Ao longo de toda a sua leitura.

Às vezes pensava que Ramalho Ortigão estava a encorajar-me a ir às termas. Depois, vinha com aquelas descrições e números chatos de relatório de contas, e começava eu a suspeitar que ele estava no fundo a gozar comigo.

Depois, falava com entusiasmo, fosse da viagem para as termas, fosse sobre as próprias termas, e lá concluía eu de novo que me estava a encorajar. Depois, punha-se a zombar das pessoas que por lá andavam, ou seja, punha-se a gozar comigo mais uma vez (porque ele sabia que eu iria assumir que aquilo é com os outros, que não pode ser comigo… mas, muito provavelmente, é comigo mesmo!).

Depois, a parte mais literária é a que descreve A Volta, e lá senti que me estava a criar a nostalgia de lá ir, descrevendo poeticamente essa volta. Assim, acabei o livro momentaneamente pacificado com este último capítulo. Só que, quando voltei a pensar no seu todo, fiquei de novo perplexo.

Se tivesse de apostar, eu apostaria na ironia. Isto é, penso que em todo o livro Ramalho Ortigão está a usar de uma profunda e muito subtil ironia com o leitor, uma espécie de “private joke”. Aliás, logo no início com aquela gravura (e a respetiva legenda - «Coitadinhas das que ficaram na cidade… Coitadinhas!»), ele pode ter dado de facto a entender que não é disparatado pensar que o verdadeiro rio subterrâneo do livro é esta ironia.


Nota: Lamentavelmente, esta e todas as outras gravuras que faziam parte da edição original foram apagadas desta edição da Quetzal. Como se vê pelo meu raciocínio acima, elas fazem tão parte da obra como as palavras. Eliminá-las, sem um aviso nem nada, parece-me ser algo próximo de um crime à memória de Ramalho Ortigão. Para quem quiser consultar a edição original, pode recorrer à digitalização feita pelo Google que a disponibiliza gratuitamente aqui.

-

Do que gostei menos neste livro foi algo que o próprio Francisco José Viegas refere no seu prefácio, a saber, a falta de «apontamento social» (8). Por outras palavras, a crítica socioeconómica está praticamente ausente deste livro. Tirando uma breve referência às crianças:

(77)

(…) Crianças barrigudas, em camisa, cobertas de uma imundície sistemática, saem ao caminho e trotam ao vosso lado ao longo da ladeira, pedindo esmola, salmodiando padres-nossos e encomendando-se às almas do purgatório.

 

Pior ainda, é a forma insensível como fala da lavadeira (206 e 207). Pior porque ele olhou, viu e reparou (epígrafe ao Ensaio sobre a Cegueira: «Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.»). Mas não o fez com o coração.

O relato deste episódio faz-me lembrar a falta de compaixão, e até mesmo de empatia, que leva tanta gente a contar histórias de grandes lições aprendidas com o sofrimento de outros, sem se aperceberem que nada fizeram para o minorar, vendo apenas o próprio benefício que daí tiraram.

 

Há quem diga que não devemos julgar as obras literárias com os valores do presente.

Sim, concordo, desde que nessa época não haja quem pense de forma alternativa. Mas isso há sempre, quando tratamos de seres humanos, veja-se a citação a seguir do historiador Manuel Loff (o sublinhado é meu):

[Marcelo Rebelo de Sousa] persiste num dos mais velhos erros metodológicos da leitura reacionária do passado: o de inventar um tempo em que os valores dominantes seriam tão consensuais que nenhuns outros teriam sido enunciados. Em todas as épocas os valores dominantes tiveram alternativas; todas as ordens tiveram resistência; todas as verdades do tempo tiveram quem as denunciasse. (Manuel Loff, Uma história “sem álibis nem omissões”, Público, 27 de Abril de 2021, p. 8)

E quanto ao pensamento alternativo publicado de forma organizada? Aqui é que eu penso que poderá haver épocas em que não existiam essas alternativas organizadas e publicitadas.

Porém, nenhuma destas situações se aplica a Ramalho Ortigão, escritor e jornalista. Este livro foi publicado pela primeira vez em 1875. Nesta data, já tinha sete livros publicados e imensas páginas de crítica que vieram a ser conhecidas sob o nome da sua compilação, As Farpas. Não estamos a falar de um ignorante, nem de um inculto, nem de um conformista.

Ora, o pensamento socialista começa a ser formulado e desenvolvido no séc. XVIII. Em 1875 Karl Marx está a apenas oito anos da sua morte, tendo já publicado o primeiro volume de O Capital em 1867. O Manifesto Comunista tinha sido publicado em 1848. Além disso, o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) foi fundado precisamente em 1875.

Por outro lado, o pensamento filosófico anarquista começa com Pierre-Joseph Proudhon, em 1840, na sua obra O Que É a Propriedade?.

Portanto, Ramalho Ortigão tinha conhecimento de muitas alternativas de pensamento à sua disposição. Escolheu esta e não o fez a partir da ignorância. No que se refere à sensibilidade social para com os mais pobres, posso, portanto, julgá-lo com os olhos da minha época.

 

Há também quem diga que Ramalho Ortigão era um apoiante do regime e, por isso, não o criticava.

Ora, a Wikipedia diz o seguinte:

(...) Subintitulando-se "O País e a Sociedade Portuguesa", os folhetins mensais d'As Farpas constituem um painel jornalístico da sociedade portuguesa nos anos posteriores a 1870, erguido com bonomia, sentido agudo das mazelas sociais, um alto propósito consciencializador, e uma linguagem límpida e variada. (…) (Moisés, Massaud. A Língua Portuguesa através dos textos ,São Paulo, Editora Cultrix, 1ª Edição- 1968, pág.339.)

Em face disto, o argumento de conformismo face ao regime parece que também não se aplica aqui. Mas mesmo que se aplicasse, então ele deveria omitir essas situações de miséria que poderiam representar uma crítica a esse regime. Ora, ele não o fez. Ele escolheu falar delas sem qualquer olhar crítico à sociedade do seu tempo. Quando ele já tinha conhecimento de muito pensamento crítico social.

Em suma, caiu-me muito mal esta insensibilidade social à miséria, no que respeita às crianças e às mulheres.



terça-feira, 13 de abril de 2021

Somerset Maugham, O Véu Pintado


 Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s/d
 

Eis mais uma obra que, relida agora numa idade mais sénior, se me revelou uma experiência muito inteligente e muito agradável, o que é raro de encontrar, seja em que época que o livro tenha sido escrito – ele foi publicado em 1925, ou seja, tem praticamente 100 anos! Nota-se? Na verdade, muito pouco. Em termos de factos reais, um pouco, claro; em termos de humanidade, não.

 

Este livro tem tudo o que é preciso para ser um clássico. Nomeadamente, claro, por ser uma história muitíssimo bem contada. Depois, por permitir várias releituras que, uma a uma, não deixam de nos surpreender (eu vou na 4ª leitura e parece-me sempre que tenho entre mãos um livro novo).

 

Mas também por permitir múltiplas interpretações e modos de olhar. Por exemplo, é uma obra que mostra bem o papel importantíssimo que as circunstâncias têm sobre as pessoas, desde a sua infância até à idade adulta.

Que mostra como a inteligência e a sensibilidade não passam por estudos ou saberes aprofundados; ou seja, de como uma inteligência intuitiva pode estar perfeitamente à altura de uma inteligência mais cognitiva ou académica.

Que mostra como a paixão é algo não só de mental como também de corpo; e que o nosso comportamento resulta de uma íntima interação dos dois. Aliás, o neurocientista António Damásio poderia usar este livro para ilustrar as suas conclusões. veja-se, nomeadamente, o que ele diz numa recente conferência online que ele deu, O Mundo de Amanhã — Sentir, Saber e Resistir: A Neurobiologia em Tempos de Peste:

Corpo e sistema nervoso estão interligados e têm ações recíprocas. Aquilo que se passa na mente, através do nosso sistema nervoso, responde àquilo que se está a passar no corpo. E o que está no corpo está a projetar-se naquilo que é a mente. O problema da mente e do corpo está a dissolver-se, daqui a uns anos não vai ter sentido.

O Véu Pintado é também uma obra que mostra como em todos os seres humanos, independentemente da sua nacionalidade, existe sempre um fundo de humanidade, com todas as suas falhas e glórias, em que as qualidades e os defeitos convivem nem sempre pacificamente.

Que mostra que, quando se centra o amor nas emoções mais apaixonadas, o resultado final é a maior parte das vezes desastroso. Mais especificamente, acabamos por nos ligar a alguém que nos faz mal e desprezamos aquele que nos poderia fazer realmente felizes.

Que mostra como as experiências mais marcantes para o ser humano são o amor e a morte; e que são muitas as formas como podemos integrar essas experiências nas nossas vidas.

Etc., etc.

 

Na época em que foi escrito O Véu Pintado (1925), ainda se associava uma mulher inteligente e bondosa (Somerset Maugham refere várias vezes ao longo do livro que Dorothy tem ambas estas características, bem como um «rosto simples e bondoso» ou um «rosto bondoso, trabalhado pelo tempo») a uma certa ausência de beleza.

Que digo eu? Na verdade, desde sempre se fez isso. Como todos sabemos, os contos de fadas apresentam as mulheres boas como bonitas e as más como feias. A única exceção é a rainha má da Branca de Neve; mas, mesmo aí, ninguém diz que ela é bonita, mas apenas que é bela (repare-se que há grandes diferenças entre uma mulher que é bonita, que é bela ou que é formosa).

Lembro-me de quando, adolescente, conheci pela primeira vez uma rapariga muito feia mesmo. Passado algum tempo de convívio, tive a enorme surpresa de achar que ela era realmente bonita. Porquê? Porque era uma das pessoas mais excelentes que eu tinha tido a oportunidade de conhecer até essa altura. Mas toda a cultura da época me levava a acreditar que quem era feio não podia ser nada de especial (“o rosto é o espelho da alma”, diziam-nos muito, quer as pessoas à nossa volta, quer a generalidade dos livros).

Mas, mais uma vez, que digo eu? Ainda hoje em dia, na maior parte dos filmes e séries que são feitos nos E.U.A. (os europeus, aqui, tendem a ser um bocadinho mais sábios), esta associação entre beleza e excelência de qualidades ainda é mantida.

Ora, Somerset Maugham começa a divergir destes preconceitos (e de outros, para algum escândalo na época, nomeadamente quando decide fazer uma crítica social feroz, como vemos acontecer neste livro). Por exemplo, já descreve um homem bonito e bem sucedido [Charles] como moralmente corrupto. Dorothy revela excelentes qualidades. Waddington é feio e, com as suas fraquezas, é muito perspicaz e bastante generoso.

Quanto a Kitty, Maugham descreve-a, claramente manipulada pela educação que recebeu, como inicialmente fútil e pouco inteligente (mas não propriamente uma pessoa maldosa). E apenas inicialmente. Porque assistimos nela, pela mão magistral de Maugham, a um processo interessantíssimo, doloroso e verosímil de recuperação de humanidade e de inteligência (no sentido mais nobre deste termo).

E o final do romance, não acabando mal para a heroína, na verdade, não é tão bom para ela como desejaríamos. Aliás, eu dispensaria as últimas palavras de Kitty porque são de uma banalidade demasiado teatral para o meu gosto (Maugham foi também um dramaturgo de sucesso e, aqui, neste final, assistimos a uma certa “contaminação” infeliz).

 

(141)

(…) chegava a reconhecer-lhe [a Walter] uma grandeza estranha e sem atrativos. Era curioso que não pudesse amá-lo e que ainda amasse um homem [Charles] cuja falta de valor via agora tão claramente. (…) Apenas ela não vira os seus méritos [de Walter]. Porquê? Porque a amava e ela não o amava. Havia no coração humano algo que fazia uma mulher desprezar um homem porque ele a amava? (…) ele era diferente com as mulheres: apesar da sua timidez, sentia-se nele uma delicada bondade.

(147)

(…) Era estranho que, sendo ele [Walter] tão simpático quanto honesto, digno de confiança e talentoso, ela nunca tivesse podido amá-lo. (…)

Também me tenho interrogado sobre isto tanta e tanta vez. Mais genericamente, porque é que as pessoas boas não só são menos amadas, mas chegam a ser mais desprezadas que as outras?

Bom, uma primeira resposta é que não sabemos se de facto isto é assim. Seria preciso uma investigação com caráter científico para tirar o assunto realmente a limpo.

No entanto, é uma ideia que está há muito tempo estabelecida: para uma mulher, um homem bom é um homem chato. Uma amiga minha, há muitos anos atrás, queixava-se de só ter relações amorosas complicadas e abusivas; e acrescentava, no entanto, que só a atraíam os homens que lhe davam “pica”.

E vice-versa: uma mulher boa é uma chata. Daí o fascínio das “mulheres fatais” (repare-se que não é por acaso que aparece aqui este termo “fatal”)!

Porquê? Eu também não sei responder com a segurança da verdade, mas posso dar uma explicação pessoal que será, admito-o, muito difícil de provar.

Penso que a bondade está associada na mente das pessoas, embora erradamente, a uma certa fraqueza de caráter. Portanto, nos primeiros tempos de um encontro entre duas pessoas, momentos que estabelecem o padrão do que vai ser a relação no futuro (quer consolidando-a, quer destruindo-a por se revelar como uma desilusão), se um dos parceiros se mostrar bom, ou seja, associado a fraco, (e quando alguém gosta mesmo de outro procura ser bom para ele) suscitará no outro aborrecimento; ou, na melhor das hipóteses, apenas alguma surpresa.

Ora, evolutivamente, as probabilidades de sobrevivência pessoal aumentam consideravelmente se nos associarmos a pessoas fortes, ou vistas como fortes pelos outros. Daí nos desinteressarmos quase sempre por aqueles que surgem aos nossos olhos como potencialmente fracos.

Por isso, Kitty não se apaixona por um socialmente insignificante Walter, nem quando este se revela em toda a sua bondade. Mas sente-se irresistivelmente atraída por Charles que é alguém que já é poderoso, que promete sê-lo ainda mais no futuro, e que desde o princípio revela que é o mais forte e independente na relação.

Sim, eu sei que há aqui nesta explicação um determinismo que nos revolta. Eu também sinto esse mal-estar. Mas a verdade é que temos uma genética e um corpo que nos condicionam imenso, muito para além do que desejamos ou aspiramos.

Felizmente, temos um cérebro que tem a propriedade extraordinária de estar consciente de si próprio e que, por isso, fica com alguma margem de manobra para exercer algum grau de liberdade nas escolhas que faz durante a sua vida. Se soubermos como estes processos inconscientes se desenrolam em nós, ficamos mais preparados para não nos deixarmos arrastar por eles indefesos.

 

(166)

[Madre Superiora:] (…) A beleza também é um dom de Deus, um dos mais raros e preciosos, e devemos ser gratos se temos a sorte de possuí-lo, e, se não o temos, gratos porque outros o possuam para nosso prazer.

Não sei se é um dom assim tão precioso possuir beleza. Conheci mulheres muito bonitas que me disseram que, por vezes, a sua beleza era uma maldição. Porque era como ter muito dinheiro, ficava sempre a dúvida se o amor que eles sentiam por elas era genuíno ou se era apenas uma forma de adquirir algo que podiam exibir aos outros.

Agora, quanto à parte final da afirmação, aprovo-a absolutamente e procuro viver de acordo com ela no meu dia-a-dia.

 

(192)

[Waddington:] (…) Alguns procuram o Caminho no ópio e outros em Deus, alguns no whisky e outros no amor. Tudo é o mesmo Caminho e não leva a parte alguma.

Não, possivelmente todos estes caminhos não levam a parte alguma. Porém, oferecem diferenças muito significativas enquanto são percorridos e aí está todo um mundo a separá-los entre si.

 

(218)

[Kitty:] – E se não há vida eterna? Pense no que isso representa, se a morte for realmente o fim de todas as coisas. [As freiras] Terão abandonado tudo por nada. Terão sido ludibriadas. Nada mais que tolas.

Waddington refletiu um instante.

- Não sei. Não sei se importa que seja ou não uma ilusão aquilo a que elas aspiram. As suas vidas são belas em si. Às vezes, penso que a única coisa que torna possível viver sem repugnância neste mundo é a beleza que, de quando em quando, os homens criam do caos. Os quadros que pintam, as músicas que compõem, os livros que escrevem, as vidas que levam. E em tudo isto o que encerra maior beleza é uma vida bela. Essa é que é a perfeita obra de arte.

(…)

[Waddington:] – Cada membro da orquestra toca o seu instrumento, e que sabe ele das complicadas harmonias que se desenrolam no ar indiferente? Só lhe interessa a sua pequenina parte. No entanto, sabe que a sinfonia é bela, e continua a ser bela mesmo que não haja ninguém para ouvi-la, e ele sente-se contente por tocar a sua parte.

Umas das partes mais belas e com mais significado para mim neste romance.

 

(228)

[Madre Superiora:] – Lembre-se que cumprir o seu dever não é nada, pois isso é-lhe exigido e não é mais meritório que lavar as mãos quando sujas. A única coisa que importa é o amor ao dever. Quando o amor e o dever se confundem, a graça é-lhe concedida e gozará uma felicidade que ultrapassa toda a compreensão.

Esta é a segunda parte deste romance mais bela e com mais significado para mim.

 

No todo, sem dúvida nenhuma, um excelente romance!


quinta-feira, 1 de abril de 2021

Pearl S. Buck, Terra Bendita

 

Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s/d


Eu nunca leio um prefácio antes de ler a obra, seja ele escrito pelo autor, seja por outra pessoa qualquer. Porque a maioria dos prefácios não abrem para a obra, pelo contrário delimitam-na, roubando liberdade de interpretação ao leitor que vai iniciar a sua viagem. Por exemplo, Vergílio Ferreira, para todas as suas obras, escreveu apenas um Prefácio, uma Nota Introdutória, várias Aberturas (para os livros de ensaios), e, o resto Posfácios; e eu acho que revelou muita sabedoria ao fazê-lo.

Mas, desta vez, nem sei porquê, li.

Ora, no Prefácio datado de 1949 (presente na edição de Livros do Brasil), Pearl S. Buck faz elogios superlativos ao povo chinês:

6 – Esse povo é fundamental, não apenas para a China, mas para todo o mundo.

7 – (…) conhecendo essa gente boa da terra (…) força espiritual do povo chinês (…) A vida educou-o e o tempo civilizou-o. Nem a pobreza e a desgraça, nem a corrupção dos governos e as tiranias da guerra podem degradá-lo. (…) O momento presente, este século cheio de inquietação, não poderá destruir os alicerces do passado.

8 – Pela primeira vez, após muitos anos, peguei novamente no livro para ver se estava desatualizado. (…) Mas não há dúvida de que o povo chinês é o que sempre foi. (…) Isso basta para esses homens sábios do campo. (…) O povo chinês é hoje o que foi ontem e será sempre o que tem sido até agora. (…) A democracia chinesa (…) [repousará] sobre os indivíduos paternalmente democratas, e o chefe será um homem paternal, (…)

10 – De um modo geral, os chineses constituem uma nação racionalmente adulta.

12 – Talvez eles cheguem até a salvar-nos, se permitirmos que nos salvem. (…) Wang Lung e O-lan e os seus filhos ainda vivem, e outros como eles estão a nascer todos os dias na terra chinesa.

Espero que não!

Pergunto: é desta maneira que um povo superior trata as mulheres?

Não, este povo não é sábio de todo. Não me admira, portanto, que já vá nos quase 100 anos de ditadura comunista.

Porque as sociedades onde todas as mulheres sem exceção são mais respeitadas e têm mais direitos iguais aos dos homens são as sociedades mais democráticas. Além disso, nem sequer há ditaduras de mulheres: Hitler, Estaline, Mao-Tsé-Tung, Pol Pot, Videla, etc., etc., são tudo homens. Será por acaso? Não me parece.

 

Assim, este Prefácio matou muito do prazer que eu podia tirar da leitura deste livro. Se eu não o tivesse lido, teria achado que esta era uma obra de denúncia. Denúncia de como a falta de educação para todos e de como o peso da tradição podem dar origem às sociedades mais bárbaras.

A obra deve libertar-se do seu autor e viver por si. Pearl S. Buck não deixou isso acontecer e fez mal!

Aliás, eu li este livro com os meus 15 anos e não me lembro nada de ter ficado chocado, pelo contrário, a ideia que me ficou é que a Pearl S. Buck era uma escritora “fofinha”. Só posso interpretar isto de uma forma: a cultura da época e da minha família tornava natural para mim o que esta autora descrevia nos seus livros.

Volto repetidamente a uma reflexão que me angustia: como a cultura em que vivemos nos pode cegar e nos pode levar a aceitar barbaridades como sendo coisas naturais e aceitáveis. Que barbaridades estaremos agora a fazer na nossa cultura e de que não nos damos conta?

 

Um outro problema que se me foi tornando incontornável com a leitura deste livro foi a frieza e a distância com que Pearl S. Buck narra a miséria e o sofrimento reais das personagens (embora seja generosa a descrever os sofrimentos psicológicos de Wang Lung!).

A raiz desta minha dificuldade de leitura parece-me estar no facto de que, para mim, há um antes e um depois de José Saramago e de Mia Couto. Não me é possível ler narrativas sobre pessoas pobres e humildes com os mesmos olhos com que as lia antes de José Saramago ou de Mia Couto. Porque a grande diferença entre Pearl S. Buck e estes dois escritores é que eles dão dignidade e sabedoria aos socialmente destituídos. Pearl S. Buck raramente o faz.

Recordo o que Mia Couto diz no seu livro Vozes Anoitecidas (p. 19): «O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma.»

Esta exata ignorância, não só das personagens da história que nos é contada, mas também a da própria Pearl S. Buck sobre o sofrimento das mulheres, custa-me acompanhar em Terra Bendita. A isto acrescenta-se, claro, o relato da própria miséria em si mesma que também me dói imenso. Miséria que Pearl S. Buck nos faz surgir, aliás e para mérito seu, como muito real e atual.

 

(34)

E depois envergonhava-se da sua curiosidade e do interesse que tinha por ela [O-lan]. Afinal de contas era apenas uma mulher.

Para mim, a personagem mais interessante, mais poderosa e impressionante, foi O-lan. O-lan é a personagem mais digna de todo o livro, a mais irrepreensível. Pearl S. Buck pouco nos dá a conhecer sobre ela, exceto (e raramente) quando ela serve como adereço à história de Wang Lung (como nas páginas 118 e 119, onde ele fica com pena não de O-lan, mas da filha que está a pensar vender).

Mas Pearl S. Buck não vê isso. Assim, O-lan é tratada em todo o livro pouco mais do que como um animal doméstico (lembro, por exemplo, as duas pérolas, a única “riqueza” pessoal que ela teve toda a vida e que Wang Lung lhe tirou para dar à prostituta). Com exceção de quando está a morrer, altura em que a autora põe Wang Lung a mostrar um pouco de consideração e gratidão, embora nula empatia ou afeto. Será até à morte de O-lan que me doerá muito ler este livro. Depois, as coisas melhoram e começo a tirar algum prazer da sua leitura.

 

(84)

E depois, é preciso desconfiar sempre daquilo que se não conhece ou que não se compreende. Não convém a um homem saber mais do que é preciso para a sua vida quotidiana.

Este livro devia ser obrigatório para aqueles que acham que só devem aprender o que lhes for útil para aquilo que pensam que vai ser a sua vida. Para perceberem os resultados que essa sua ideia pode trazer.

No entanto, é-me incomodativo neste livro encontrar sempre esta “filosofia” tradicional de submissão, de autodesprezo, de mesquinhez, de vistas curtas, etc. O único que tem o um assomo de algo diferente (cujas razões, aliás, a autora não se incomoda a explicar) é o filho mais novo de Wang Lung. Mesmo O-lan, que algumas vezes, poucas, tem iniciativas próprias, é sempre para bem do marido e, secundariamente, da família, mas quase nunca para ela própria.

Porque me incomoda isto? Porque Pearl S. Buck refugia-se sempre numa suposta neutralidade, ou melhor, numa completa ausência de olhar crítico. E sabemos que, quando há agressores e agredidos, ser “neutral” é pormo-nos do lado do agressor. Quando há uma tradição que tanto sofrimento causa, ser neutral é desprezar as vítimas e a sua condição.

 

(85)

- Então a pequena escrava já está morta?

Tratar as filhas por “escravas” – que horror! E a facilidade com que vendiam as filhas para a escravidão, sem nenhum sobressalto moral (apenas, às vezes, afetivo, com quem gosta de um objeto que lhe é querido, mas de que, apesar de tudo, se dispõe como se de um objeto se tratasse)!

As páginas 118 e 119 têm uma descrição atroz de como eram vistas e tratadas as mulheres e as crianças. E, note-se, Wang Lung é retratado como «um bom esposo, melhor que muitos»!

Ou ainda a página 205 e a tradição bárbara de apertar os pés das meninas desde pequeninas, com indiferença para o seu sofrimento, tanto no momento em que o faziam, como no seu futuro! E Pearl S. Buck mostra bem como o “bondoso” Wang Lung nem se apercebe desse sofrimento da filha.

Ou também a forma como aceita boamente a suposta “natureza” dos homens:

(277)

(…) com o temperamento sensual do filho, a esposa citadina que ele tinha não podia dominá-lo sempre e algum dia a natureza triunfaria nele.

em suma acredito que estas múltiplas e amaldiçoadas tradições só podem ser combatidas com eficácia através de uma revolução ou de uma educação generalizada. Mesmo assim demorando algum tempo e, às vezes, algumas gerações, infelizmente.

 

Porém, esta é uma narrativa ao gosto dos americanos: um homem que sobe a pulso na sociedade até ficar rico. Mas há três aspetos que tornam sinistra esta narrativa de sucesso e a que Pearl Buck procura não dar muito relevo:

- O roubo que Wang Lung faz na cidade do Sul, sendo esse o primeiro fator que lhe permite subir acima dos seus conterrâneos; de outra forma, numa sociedade extremamente rígida como aquela, jamais um Wang-Lung honesto sairia da sua condição.

- A proteção, paga por Wang Lung, que recebe do tio que pertence a um gangue de ladrões, sem a qual ficaria outra vez pobre (como outros ficaram).

- E o terceiro fator, O-lan, sem cujo trabalho e poupança (e pés grandes, já que os pés deformados, por serem apertados na infância, tornavam as mulheres incapazes de qualquer ajuda), ele jamais teria conseguido o que conseguiu. E aqui tem de se incluir aquilo que um chinês mais ambiciona: três filhos machos (o que ajuda a destruir o corpo de O-lan, mais uma vez chocantemente para grande desprezo e nojo do marido). Porém, para um americano, que interesse pode ter uma “loser” como O-lan, certamente vista como uma falhada?

Aliás, a progressiva aceitação desta autora por parte do regime chinês não surpreenderá demasiadamente, dado tratar-se de um regime cada vez mais neocapitalista.

Penso também que, provavelmente, uma boa parte do sucesso deste livro teve a ver com ele ter surgido durante a Grande Depressão. Talvez tenha dado esperança aos leitores. Uma estranha esperança, mas uma esperança apesar de tudo.

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