quinta-feira, 1 de abril de 2021

Pearl S. Buck, Terra Bendita

 

Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s/d


Eu nunca leio um prefácio antes de ler a obra, seja ele escrito pelo autor, seja por outra pessoa qualquer. Porque a maioria dos prefácios não abrem para a obra, pelo contrário delimitam-na, roubando liberdade de interpretação ao leitor que vai iniciar a sua viagem. Por exemplo, Vergílio Ferreira, para todas as suas obras, escreveu apenas um Prefácio, uma Nota Introdutória, várias Aberturas (para os livros de ensaios), e, o resto Posfácios; e eu acho que revelou muita sabedoria ao fazê-lo.

Mas, desta vez, nem sei porquê, li.

Ora, no Prefácio datado de 1949 (presente na edição de Livros do Brasil), Pearl S. Buck faz elogios superlativos ao povo chinês:

6 – Esse povo é fundamental, não apenas para a China, mas para todo o mundo.

7 – (…) conhecendo essa gente boa da terra (…) força espiritual do povo chinês (…) A vida educou-o e o tempo civilizou-o. Nem a pobreza e a desgraça, nem a corrupção dos governos e as tiranias da guerra podem degradá-lo. (…) O momento presente, este século cheio de inquietação, não poderá destruir os alicerces do passado.

8 – Pela primeira vez, após muitos anos, peguei novamente no livro para ver se estava desatualizado. (…) Mas não há dúvida de que o povo chinês é o que sempre foi. (…) Isso basta para esses homens sábios do campo. (…) O povo chinês é hoje o que foi ontem e será sempre o que tem sido até agora. (…) A democracia chinesa (…) [repousará] sobre os indivíduos paternalmente democratas, e o chefe será um homem paternal, (…)

10 – De um modo geral, os chineses constituem uma nação racionalmente adulta.

12 – Talvez eles cheguem até a salvar-nos, se permitirmos que nos salvem. (…) Wang Lung e O-lan e os seus filhos ainda vivem, e outros como eles estão a nascer todos os dias na terra chinesa.

Espero que não!

Pergunto: é desta maneira que um povo superior trata as mulheres?

Não, este povo não é sábio de todo. Não me admira, portanto, que já vá nos quase 100 anos de ditadura comunista.

Porque as sociedades onde todas as mulheres sem exceção são mais respeitadas e têm mais direitos iguais aos dos homens são as sociedades mais democráticas. Além disso, nem sequer há ditaduras de mulheres: Hitler, Estaline, Mao-Tsé-Tung, Pol Pot, Videla, etc., etc., são tudo homens. Será por acaso? Não me parece.

 

Assim, este Prefácio matou muito do prazer que eu podia tirar da leitura deste livro. Se eu não o tivesse lido, teria achado que esta era uma obra de denúncia. Denúncia de como a falta de educação para todos e de como o peso da tradição podem dar origem às sociedades mais bárbaras.

A obra deve libertar-se do seu autor e viver por si. Pearl S. Buck não deixou isso acontecer e fez mal!

Aliás, eu li este livro com os meus 15 anos e não me lembro nada de ter ficado chocado, pelo contrário, a ideia que me ficou é que a Pearl S. Buck era uma escritora “fofinha”. Só posso interpretar isto de uma forma: a cultura da época e da minha família tornava natural para mim o que esta autora descrevia nos seus livros.

Volto repetidamente a uma reflexão que me angustia: como a cultura em que vivemos nos pode cegar e nos pode levar a aceitar barbaridades como sendo coisas naturais e aceitáveis. Que barbaridades estaremos agora a fazer na nossa cultura e de que não nos damos conta?

 

Um outro problema que se me foi tornando incontornável com a leitura deste livro foi a frieza e a distância com que Pearl S. Buck narra a miséria e o sofrimento reais das personagens (embora seja generosa a descrever os sofrimentos psicológicos de Wang Lung!).

A raiz desta minha dificuldade de leitura parece-me estar no facto de que, para mim, há um antes e um depois de José Saramago e de Mia Couto. Não me é possível ler narrativas sobre pessoas pobres e humildes com os mesmos olhos com que as lia antes de José Saramago ou de Mia Couto. Porque a grande diferença entre Pearl S. Buck e estes dois escritores é que eles dão dignidade e sabedoria aos socialmente destituídos. Pearl S. Buck raramente o faz.

Recordo o que Mia Couto diz no seu livro Vozes Anoitecidas (p. 19): «O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma.»

Esta exata ignorância, não só das personagens da história que nos é contada, mas também a da própria Pearl S. Buck sobre o sofrimento das mulheres, custa-me acompanhar em Terra Bendita. A isto acrescenta-se, claro, o relato da própria miséria em si mesma que também me dói imenso. Miséria que Pearl S. Buck nos faz surgir, aliás e para mérito seu, como muito real e atual.

 

(34)

E depois envergonhava-se da sua curiosidade e do interesse que tinha por ela [O-lan]. Afinal de contas era apenas uma mulher.

Para mim, a personagem mais interessante, mais poderosa e impressionante, foi O-lan. O-lan é a personagem mais digna de todo o livro, a mais irrepreensível. Pearl S. Buck pouco nos dá a conhecer sobre ela, exceto (e raramente) quando ela serve como adereço à história de Wang Lung (como nas páginas 118 e 119, onde ele fica com pena não de O-lan, mas da filha que está a pensar vender).

Mas Pearl S. Buck não vê isso. Assim, O-lan é tratada em todo o livro pouco mais do que como um animal doméstico (lembro, por exemplo, as duas pérolas, a única “riqueza” pessoal que ela teve toda a vida e que Wang Lung lhe tirou para dar à prostituta). Com exceção de quando está a morrer, altura em que a autora põe Wang Lung a mostrar um pouco de consideração e gratidão, embora nula empatia ou afeto. Será até à morte de O-lan que me doerá muito ler este livro. Depois, as coisas melhoram e começo a tirar algum prazer da sua leitura.

 

(84)

E depois, é preciso desconfiar sempre daquilo que se não conhece ou que não se compreende. Não convém a um homem saber mais do que é preciso para a sua vida quotidiana.

Este livro devia ser obrigatório para aqueles que acham que só devem aprender o que lhes for útil para aquilo que pensam que vai ser a sua vida. Para perceberem os resultados que essa sua ideia pode trazer.

No entanto, é-me incomodativo neste livro encontrar sempre esta “filosofia” tradicional de submissão, de autodesprezo, de mesquinhez, de vistas curtas, etc. O único que tem o um assomo de algo diferente (cujas razões, aliás, a autora não se incomoda a explicar) é o filho mais novo de Wang Lung. Mesmo O-lan, que algumas vezes, poucas, tem iniciativas próprias, é sempre para bem do marido e, secundariamente, da família, mas quase nunca para ela própria.

Porque me incomoda isto? Porque Pearl S. Buck refugia-se sempre numa suposta neutralidade, ou melhor, numa completa ausência de olhar crítico. E sabemos que, quando há agressores e agredidos, ser “neutral” é pormo-nos do lado do agressor. Quando há uma tradição que tanto sofrimento causa, ser neutral é desprezar as vítimas e a sua condição.

 

(85)

- Então a pequena escrava já está morta?

Tratar as filhas por “escravas” – que horror! E a facilidade com que vendiam as filhas para a escravidão, sem nenhum sobressalto moral (apenas, às vezes, afetivo, com quem gosta de um objeto que lhe é querido, mas de que, apesar de tudo, se dispõe como se de um objeto se tratasse)!

As páginas 118 e 119 têm uma descrição atroz de como eram vistas e tratadas as mulheres e as crianças. E, note-se, Wang Lung é retratado como «um bom esposo, melhor que muitos»!

Ou ainda a página 205 e a tradição bárbara de apertar os pés das meninas desde pequeninas, com indiferença para o seu sofrimento, tanto no momento em que o faziam, como no seu futuro! E Pearl S. Buck mostra bem como o “bondoso” Wang Lung nem se apercebe desse sofrimento da filha.

Ou também a forma como aceita boamente a suposta “natureza” dos homens:

(277)

(…) com o temperamento sensual do filho, a esposa citadina que ele tinha não podia dominá-lo sempre e algum dia a natureza triunfaria nele.

em suma acredito que estas múltiplas e amaldiçoadas tradições só podem ser combatidas com eficácia através de uma revolução ou de uma educação generalizada. Mesmo assim demorando algum tempo e, às vezes, algumas gerações, infelizmente.

 

Porém, esta é uma narrativa ao gosto dos americanos: um homem que sobe a pulso na sociedade até ficar rico. Mas há três aspetos que tornam sinistra esta narrativa de sucesso e a que Pearl Buck procura não dar muito relevo:

- O roubo que Wang Lung faz na cidade do Sul, sendo esse o primeiro fator que lhe permite subir acima dos seus conterrâneos; de outra forma, numa sociedade extremamente rígida como aquela, jamais um Wang-Lung honesto sairia da sua condição.

- A proteção, paga por Wang Lung, que recebe do tio que pertence a um gangue de ladrões, sem a qual ficaria outra vez pobre (como outros ficaram).

- E o terceiro fator, O-lan, sem cujo trabalho e poupança (e pés grandes, já que os pés deformados, por serem apertados na infância, tornavam as mulheres incapazes de qualquer ajuda), ele jamais teria conseguido o que conseguiu. E aqui tem de se incluir aquilo que um chinês mais ambiciona: três filhos machos (o que ajuda a destruir o corpo de O-lan, mais uma vez chocantemente para grande desprezo e nojo do marido). Porém, para um americano, que interesse pode ter uma “loser” como O-lan, certamente vista como uma falhada?

Aliás, a progressiva aceitação desta autora por parte do regime chinês não surpreenderá demasiadamente, dado tratar-se de um regime cada vez mais neocapitalista.

Penso também que, provavelmente, uma boa parte do sucesso deste livro teve a ver com ele ter surgido durante a Grande Depressão. Talvez tenha dado esperança aos leitores. Uma estranha esperança, mas uma esperança apesar de tudo.

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