Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s/d
Eu nunca leio um prefácio antes de
ler a obra, seja ele escrito pelo autor, seja por outra pessoa qualquer. Porque
a maioria dos prefácios não abrem para a obra, pelo contrário delimitam-na,
roubando liberdade de interpretação ao leitor que vai iniciar a sua viagem. Por exemplo, Vergílio
Ferreira, para todas as suas obras, escreveu apenas um Prefácio, uma Nota
Introdutória, várias Aberturas (para os livros de ensaios), e, o resto Posfácios;
e eu acho que revelou muita sabedoria ao fazê-lo.
Mas, desta vez, nem sei porquê, li.
Ora, no Prefácio datado de 1949 (presente
na edição de Livros do Brasil), Pearl S. Buck faz elogios superlativos ao povo
chinês:
6 – Esse povo é fundamental, não
apenas para a China, mas para todo o mundo.
7 – (…) conhecendo essa gente
boa da terra (…) força espiritual do povo chinês (…) A vida educou-o e o
tempo civilizou-o. Nem a pobreza e a desgraça, nem a corrupção dos governos e
as tiranias da guerra podem degradá-lo. (…) O momento presente, este século
cheio de inquietação, não poderá destruir os alicerces do passado.
8 – Pela primeira vez, após
muitos anos, peguei novamente no livro para ver se estava desatualizado. (…)
Mas não há dúvida de que o povo chinês é o que sempre foi. (…) Isso basta para esses
homens sábios do campo. (…) O povo chinês é hoje o que foi ontem e será sempre
o que tem sido até agora. (…) A democracia chinesa (…) [repousará] sobre
os indivíduos paternalmente democratas, e o chefe será um homem paternal, (…)
10 – De um modo geral, os
chineses constituem uma nação racionalmente adulta.
12 – Talvez eles cheguem até a
salvar-nos, se permitirmos que nos salvem. (…) Wang Lung e O-lan e os seus
filhos ainda vivem, e outros como eles estão a nascer todos os dias na terra
chinesa.
Espero que não!
Pergunto: é desta maneira que um povo superior
trata as mulheres?
Não, este povo não é sábio de todo.
Não me admira, portanto, que já vá nos quase 100 anos de ditadura comunista.
Porque as sociedades onde todas as
mulheres sem exceção são mais respeitadas e têm mais direitos iguais aos dos
homens são as sociedades mais democráticas. Além disso, nem sequer há ditaduras de
mulheres: Hitler, Estaline, Mao-Tsé-Tung, Pol Pot, Videla, etc., etc., são tudo
homens. Será por acaso? Não me parece.
Assim, este Prefácio matou muito do
prazer que eu podia tirar da leitura deste livro. Se eu não o tivesse lido, teria
achado que esta era uma obra de denúncia. Denúncia de como a falta de educação
para todos e de como o peso da tradição podem dar origem às sociedades mais bárbaras.
A obra deve libertar-se do seu
autor e viver por si. Pearl S. Buck não deixou isso acontecer e fez mal!
Aliás, eu li este livro com os meus 15 anos e não me lembro nada de ter ficado chocado, pelo contrário, a ideia que me
ficou é que a Pearl S. Buck era uma escritora “fofinha”. Só posso interpretar
isto de uma forma: a cultura da época e da minha família tornava natural para
mim o que esta autora descrevia nos seus livros.
Volto repetidamente a uma reflexão
que me angustia: como a cultura em que vivemos nos pode cegar e nos pode levar
a aceitar barbaridades como sendo coisas naturais e aceitáveis. Que
barbaridades estaremos agora a fazer na nossa cultura e de que não nos damos
conta?
Um outro problema que se me foi
tornando incontornável com a leitura deste livro foi a frieza e a distância com
que Pearl S. Buck narra a miséria e o sofrimento reais das personagens (embora
seja generosa a descrever os sofrimentos psicológicos de Wang Lung!).
A raiz desta minha dificuldade de
leitura parece-me estar no facto de que, para mim, há um antes e um depois de
José Saramago e de Mia Couto. Não me é possível ler narrativas sobre pessoas
pobres e humildes com os mesmos olhos com que as lia antes de José Saramago ou
de Mia Couto. Porque a grande diferença entre Pearl S. Buck e estes dois
escritores é que eles dão dignidade e sabedoria aos socialmente destituídos.
Pearl S. Buck raramente o faz.
Recordo o que Mia Couto diz no seu
livro Vozes Anoitecidas (p. 19): «O que mais dói na miséria é a ignorância
que ela tem de si mesma.»
Esta exata ignorância, não só das
personagens da história que nos é contada, mas também a da própria Pearl S. Buck
sobre o sofrimento das mulheres, custa-me acompanhar em Terra Bendita. A isto
acrescenta-se, claro, o relato da própria miséria em si mesma que também me dói
imenso. Miséria que Pearl S. Buck nos faz surgir, aliás e para mérito seu, como
muito real e atual.
(34)
E depois envergonhava-se da sua
curiosidade e do interesse que tinha por ela [O-lan]. Afinal de contas era
apenas uma mulher.
Para mim, a personagem mais
interessante, mais poderosa e impressionante, foi O-lan. O-lan é a personagem
mais digna de todo o livro, a mais irrepreensível. Pearl S. Buck pouco nos dá a
conhecer sobre ela, exceto (e raramente) quando ela serve como adereço à história
de Wang Lung (como nas páginas 118 e 119, onde ele fica com pena não de O-lan, mas
da filha que está a pensar vender).
Mas Pearl S. Buck não vê isso. Assim, O-lan é tratada em todo o livro pouco mais do que como um animal doméstico (lembro, por exemplo, as duas pérolas, a única “riqueza” pessoal que ela teve toda a vida e que Wang Lung lhe tirou para dar à prostituta). Com exceção de quando está a morrer, altura em que a autora põe Wang Lung a mostrar um pouco de consideração e gratidão, embora nula empatia ou afeto. Será até à morte de O-lan que me doerá muito ler este livro. Depois, as coisas melhoram e começo a tirar algum prazer da sua leitura.
(84)
E depois, é preciso desconfiar
sempre daquilo que se não conhece ou que não se compreende. Não convém a um
homem saber mais do que é preciso para a sua vida quotidiana.
Este livro devia ser obrigatório para
aqueles que acham que só devem aprender o que lhes for útil para aquilo que
pensam que vai ser a sua vida. Para perceberem os resultados que essa sua ideia
pode trazer.
No entanto, é-me incomodativo neste
livro encontrar sempre esta “filosofia” tradicional de submissão, de
autodesprezo, de mesquinhez, de vistas curtas, etc. O único que tem o um assomo
de algo diferente (cujas razões, aliás, a autora não se incomoda a explicar) é o filho
mais novo de Wang Lung. Mesmo O-lan, que algumas vezes, poucas, tem iniciativas
próprias, é sempre para bem do marido e, secundariamente, da família, mas quase
nunca para ela própria.
Porque me incomoda isto? Porque
Pearl S. Buck refugia-se sempre numa suposta neutralidade, ou melhor, numa
completa ausência de olhar crítico. E sabemos que, quando há agressores e
agredidos, ser “neutral” é pormo-nos do lado do agressor. Quando há uma
tradição que tanto sofrimento causa, ser neutral é desprezar as vítimas e a sua
condição.
(85)
- Então a pequena escrava já
está morta?
Tratar as filhas por “escravas” –
que horror! E a facilidade com que vendiam as filhas para a escravidão, sem
nenhum sobressalto moral (apenas, às vezes, afetivo, com quem gosta de um
objeto que lhe é querido, mas de que, apesar de tudo, se dispõe como se de um
objeto se tratasse)!
As páginas 118 e 119 têm uma
descrição atroz de como eram vistas e tratadas as mulheres e as crianças. E,
note-se, Wang Lung é retratado como «um bom esposo, melhor que muitos»!
Ou ainda a página 205 e a tradição
bárbara de apertar os pés das meninas desde pequeninas, com indiferença para o
seu sofrimento, tanto no momento em que o faziam, como no seu futuro! E Pearl S. Buck
mostra bem como o “bondoso” Wang Lung nem se apercebe desse sofrimento da
filha.
Ou também a forma como aceita
boamente a suposta “natureza” dos homens:
(277)
(…) com o temperamento sensual
do filho, a esposa citadina que ele tinha não podia dominá-lo sempre e algum
dia a natureza triunfaria nele.
em suma acredito que estas múltiplas e amaldiçoadas
tradições só podem ser combatidas com eficácia através de uma revolução ou de uma
educação generalizada. Mesmo assim demorando algum tempo e, às vezes, algumas gerações,
infelizmente.
Porém, esta é uma narrativa ao
gosto dos americanos: um homem que sobe a pulso na sociedade até ficar rico. Mas
há três aspetos que tornam sinistra esta narrativa de sucesso e a que Pearl
Buck procura não dar muito relevo:
- O roubo que Wang Lung faz na
cidade do Sul, sendo esse o primeiro fator que lhe permite subir acima dos seus
conterrâneos; de outra forma, numa sociedade extremamente rígida como aquela,
jamais um Wang-Lung honesto sairia da sua condição.
- A proteção, paga por Wang Lung,
que recebe do tio que pertence a um gangue de ladrões, sem a qual ficaria outra
vez pobre (como outros ficaram).
- E o terceiro fator, O-lan, sem
cujo trabalho e poupança (e pés grandes, já que os pés deformados, por serem apertados
na infância, tornavam as mulheres incapazes de qualquer ajuda), ele jamais
teria conseguido o que conseguiu. E aqui tem de se incluir aquilo que um chinês mais
ambiciona: três filhos machos (o que ajuda a destruir o corpo de O-lan, mais
uma vez chocantemente para grande desprezo e nojo do marido). Porém, para um
americano, que interesse pode ter uma “loser” como O-lan, certamente vista como
uma falhada?
Aliás, a progressiva aceitação desta autora por parte do regime chinês não surpreenderá demasiadamente, dado tratar-se de um
regime cada vez mais neocapitalista.
Penso também que, provavelmente, uma boa parte do sucesso deste livro teve a ver com ele ter surgido durante a Grande Depressão. Talvez tenha dado esperança aos leitores. Uma estranha esperança, mas uma esperança apesar de tudo.
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