domingo, 28 de março de 2021

Mia Couto, O Último Voo do Flamingo

 


Editorial Caminho, 2000


(17)

Avisado estou: atrás é onde melhor se vê e menos se é visto. Certo é o ditado: se a agulha cai no poço muitos espreitam, mas poucos descem a buscá-la.

À maneira de Saramago, Mia Couto cria e reinventa ditos populares e provérbios. Mais exemplos que me agradaram:

(18)

Homem mucoso, subserviente - um engraxa-botas. Como todo o agradista: submisso com os grandes, arrogante com os pequenos. O fulano me fingia desconhecer, ocupado em suas superiores aparências. Ainda tentei um aperto de mão, mas logo ele foi atalhando o tempo. O burro, na companhia do leão, já não cumprimenta o cavalo.

(19)

Ouvimos, calamos e fazemos de conta que, calados, obedecemos.

(A mim rapidamente me transportou para a Cantata De Paz, de Sophia de Mello Breyner Andresen: Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar)

 

(43)

Sem que desse conta eu me abria e confessava antigas lembranças ao estrangeiro. Vantagem de um estranho é que confiamos essa mentira de termos uma só alma.

Sim, quando contamos a nossa história a outros, fazemo-lo como se fosse uma só história e como se fossemos uma só pessoa. Na verdade, várias histórias fluem simultaneamente: o que eu faço, o que eu digo, o que eu olho, o que dou atenção, o que penso, o que sinto, e talvez mais, mais.

Ao mesmo tempo, este “eu” não é um, mas vários (e não, não são apenas os três – porquê sempre três? – de que a psicologia normalmente fala: consciente, pré-consciente e inconsciente; superego, Ego e Id; eu conceptualizado, eu como processo de contínua autoconsciencialização e eu observador(1); Exilados, Gerentes e Bombeiros (classes de partes protetoras da teoria dos Sistemas Familiares Internos / Internal Family Systems)(2); etc., etc.)

(1)Hayes, Steven C. (2005). Get Out of Your Mind and Into Your Life: The New Acceptance and Commitment Therapy / Steven Hayes & Spencer Smith. Oakland: New Harbinger Publications, Inc., p. 107

(2)Richard C. Schwartz (2001). Introduction to the Internal Family Systems Model. Oak Park: Trailheads Publications, p. 89.

 

(47)

A vida é assim: peixe vivo, mas que só vive no correr da água. Quem quer prender esse peixe tem que o matar. Só assim o possui em mão. Falo do tempo, falo da água.

Tudo o que é verdadeiramente vivo, quando o tentamos prender, até mesmo por algo tão volátil como as palavras, principia a morrer. Por exemplo, quando escrevo, tudo parece iluminado; depois, torna-se baço, obscuro e, algumas vezes, incompreensível.

Ou quando leio da segunda, da terceira vez, tudo tende a perder vida – aqui só sobrevive a grande obra que, lida infinitas vezes, é sempre uma nova obra que lemos de cada vez que a lemos. Exemplos? Para mim, Aparição, Manhã Submersa, Cântico Final, Para Sempre, no fundo, todos os livros de Vergílio Ferreira (que ando há mais de 40 anos a (re)ler). Como esta é a segunda vez, e talvez não seja a última, que leio este livro de Mia Couto, agora com um encantamento muito mais acrescido, possivelmente também este autor será um exemplo a juntar a Vergílio Ferreira.

 

(48)

- A ideia lhe poise como a garça: só com uma perna. Que é para não pesar no coração.

A maior parte das ideias que nos cruzam o espírito não são propriamente criativas e libertadoras; logo, não são leves e, pior, tendem a grudar-se-nos. O seu peso vai ficando cada vez mais mortal. Se elas voassem…

 

(49)

Naquele tempo, não havia antigamentes. Tudo para mim era recente, em via de nascer.

Sim, o narrador está a falar da sua infância e juventude. Mas se nós pudéssemos ter esta atitude face à vida? Será possível consegui-lo? Talvez parcialmente. Não em todos os momentos. Não com aquela absoluta inocência da infância. Mas parcialmente. Talvez esta seja uma das fontes ou uma das vias que a vida nos disponibiliza para a felicidade.

 

(50)

A escola foi para mim como um barco: me dava acesso a outros mundos. Contudo, aquele ensinamento não me totalizava. Ao contrário: mais eu aprendia, mais eu sufocava. Ainda me demorei por anos, ganhando saberes precisos e preciosos.

Um excelente retrato do que a escola representa ou devia representar para a maioria das pessoas. Por muito que ela dê (e dá imenso), há sempre algo mais que temos de acrescentar com a nossa curiosidade, a nossa iniciativa e o nosso esforço.

 

(51)

A morte é uma brevíssima varanda. Dali se espreita o tempo como a águia se debruça no penhasco - em volta todo o espaço se pode converter em esplêndida voação.

Eu espero que a minha morte seja assim. A dos outros já sei que não me é.

 

(61)

Porque o ser negro - ter aquela raça - nos tinha sido passado como nossa única e última riqueza. E alguns de nós fabricavam sua identidade nesse ilusório espelho.

Exatamente! Se eu fundo a minha identidade no ser negro, como muitos cada vez mais querem fazer (até o tradutor de um escritor negro tem de ser negro!), então estou a dar razão aos racistas que defendem que cores da pele diferentes dão origem a identidades diferentes, logo a grupos humanos diferentes. E já sabemos onde é que isto nos leva: o ser humano, com a sua atração por hierarquias e competições, vai logo querer diferenciar entre os superiores e os inferiores. Ora os superiores têm uma tendência destrutiva para serem sempre os que têm mais força e mais poder… Vale a pena?

 

(81)

- Tenho saudades de minha casa, lá na Itália.

- Também eu gostava de ter um lugarzinho meu, onde pudesse chegar e me aconchegar.

- Não tem, Ana?

- Não tenho? Não temos, todas nós, as mulheres.

- Como não?

- Vocês, homens, vêm para casa.

Nós somos a casa.

(Extrato de um diálogo entre o italiano e Deusqueira)


(110)

- Outra coisa: o senhor pergunta demais. A verdade foge de muita pergunta.

Mia Couto usa também muito o paradoxo.

(111)

Os factos só são verdadeiros / depois de serem inventados. (Crença de Tizangara)

(145)

A vida é um beijo doce em boca amarga.

(Depoimento do feiticeiro)

 

(114)

(…) Os novos chefes pareciam pouco importados com a sorte dos outros. Eu falava do que assistia, ali em Tizangara. Do resto não tinha pronunciamento. Mas, na minha vila, havia agora tanta injustiça quanto no tempo colonial. Parecia de outro modo que esse tempo não terminara. Estava era sendo gerido por pessoas de outra raça.

(…) Aqueles que nos comandavam, em Tizangara, engordavam a espelhos vistos, roubavam terras aos camponeses, se embebedavam sem respeito. A inveja era seu maior mandamento. Mas a terra é um ser: carece de família, desse tear de entrexistências a que chamamos ternura. Os novos-ricos se passeavam em território de rapina, não tinham pátria. Sem amor pelos vivos, sem respeito pelos mortos. Eu sentia saudade dos outros que eles já tinham sido. Porque, afinal, eram ricos sem riqueza nenhuma. Se iludiam tendo uns carros, uns brilhos de gasto fácil. Falavam mal dos estrangeiros, durante o dia. De noite, se ajoelhavam a seus pés, trocando favores por migalhas. Queriam mandar, sem governar. Queriam enriquecer, sem trabalhar.

Uma constante neste livro, repetido de maneiras diferentes e a diferentes vozes, esta desilusão e este desencanto dolorosamente cínico com a governação e com as chefias.

 

(141)

Quando chegaram os da Revolução eles disseram que íamos ficar donos e mandantes. Todos se contentaram. Minha mãe, muito ela se contentou. Sulplício, porém, se encheu de medo. Matar o patrão? Mais difícil é matar o escravo que vive dentro de nós. Agora, nem patrão nem escravo.

- Só mudamos de patrão.

Este é um livro claramente político, sem deixar de ter muitas outras componentes. Mas aqui a voz mais presente ao longo de todo o livro parece ser a da revolta (política).

Esta ideia de que existe sempre um escravo à espreita dentro de nós talvez tenha uma base evolucionista: nós somos uma espécie muito social, facto fundamental para a nossa sobrevivência como espécie. Já que, individualmente, somos excessivamente frágeis em relação a um número demasiado grande de predadores. Ou seja, sem exceção, todos precisarmos muito uns dos outros para sobreviver.

 

(157)

Porque esses chefes deviam ser grandes como árvore que dá sombra. Mas têm mais raiz que folha. Tiram muito e dão pouco.

 

(158)

Falam muito de colonialismo. Mas isso foi coisa que eu duvido que houvesse. O que fizeram esses brancos foi ocuparem-nos. Não foi só a terra: ocuparam-nos a nós, acamparam no meio das nossas cabeças. Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós.

 

(184)

Porque aqui você precisa de calar a sua sabedoria para sobreviver. Conhece a diferença entre o sábio branco e o sábio preto? A sabedoria do branco mede-se pela pressa com que responde. Entre nós o mais sábio é aquele que mais demora a responder. Alguns são tão sábios que nunca respondem.

Eu demoro tempo a responder quando penso na pergunta. Quando sei alguma coisa, pouco ou mesmo nada, ou não ouvi bem a pergunta, é quando respondo mais depressa. Habitualmente, demoro mais quando sei muito.

 

(192)

- Nisso se engana. Não é a paz que lhe interessa. Eles se preocupam é com a ordem, o regime desse mundo.

- Ora, pai...

- O problema deles é manter a ordem que lhes faz serem patrões. Essa ordem é uma doença em nossa história.

Sim, a ordem que permite a omnipresença da injustiça e, principalmente, a possibilidade de os mais fortes continuarem a abocanhar impunemente o que é dos mais fracos; ou melhor, o que é de todos.

 

(193)

- Antigamente, queríamos ser civilizados. Agora queremos ser modernos.

Ou estar à moda. Ou ser adorado pelo grupo. Estamos a infantilizar-nos, cada vez mais adolescentes da vida, escolhendo não crescer, pensando talvez que enganamos a morte. Só nos enganamos a nós mesmos. E, infelizmente, também mais mal-educados e menos corteses – como adolescentes e, tal como eles, não necessariamente por mal.

 

 

Palavras proferidas por Mia Couto na entrega do Prêmio Mário António, da Fundação Calouste Gulbenkian, em 12 de junho de 2001

O último voo do flamingo fala de uma perversa fabricação de ausência - a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores.

Esse compromisso para com a minha terra e o meu tempo guiou não apenas este livro como os romances anteriores. Em todos eles me confrontei com os mesmos demônios e entendi inventar o mesmo território de afeto, onde seja possível refazer crenças e reparar o rasgão do luto em nossas vidas.

(…)

É uma resposta pouca perante os fazedores de guerra e construtores da miséria. Mas é aquele que sei e posso, aquela em que apostei a minha vida e o meu tempo de viver.

Lembro, a fechar, as palavras do feiticeiro Zeca Andorinho: “Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda há. E esse sol só pode nascer dentro de nós”.

 

Conclusões

A impressão dominante é a de um livro bonito, poético, embora carregado de tristeza, de desencanto e de desilusão.

Um livro claramente político, de denúncia e de revolta. E com razão: Moçambique é o 5º país mais pobre do mundo (mail da UNICEF Portugal recebido a 23/03/2021):

*Fonte: Banco Mundial, 2019

O recurso a uma linguagem poética, cheia de ternura, mas que ao mesmo tempo “abriga” a violência da traição dos compatriotas moçambicanos que prolongam a exploração do povo à boa maneira colonialista. Por isso, estamos sempre a oscilar entre o enternecimento e o horror. Escrita incómoda.

Mia Couto introduz nesta ficção por várias vezes a chaga do racismo: Estevão Jonas, o administrador, que se auto-apelida de “racista étnico”; Hortênsia, que se diz demasiado negra e por isso não foi levada; padre Muhanda contra o ódio aos mulatos; a rejeição do italiano por ser branco – mas não pelas mulheres, Temporina e Ana Deusqueira.

O que me leva a um outro tema deste livro: as mulheres. Sempre menos bem tratadas pelos homens, embora a esperança de Mia Couto numa mudança positiva pareça assentar principalmente sobre elas.

Aliás, há um misto de resignação e de medo neste livro, mas também de incitamento (principalmente, por via das mulheres, até a mulher do administrador) à intervenção, à mudança, acabando por se transmitir, assim, uma mensagem de esperança no futuro.



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