Portugália Editora, 1965
(5)
Por isso havia pelas ruas só despojos: pedaços de
madeira, pedras, vidros partidos e restos de esperança para quem quer que
pudesse ler no invisível.
(12)
Gorki, porém, é um mestre que não oprime, pois o próprio
do génio é conceder a liberdade.
E do sábio. O génio está demasiado fora do meu alcance, mas
da sabedoria vou-me infinitamente aproximando. E sei que quanto mais sábio,
mais respeito a liberdade dos outros.
(12)
Quando penso, experimento irreprimivelmente a necessidade
de me explicar o que penso. Explicando-me, explico os outros e a sua condição
enigmática. Bem, isto assim dito, parece estar certo. Não está. Porque não
atinge o mais profundo pensar o diálogo com a própria consciência. Non
cogito sed cogitamus. Em rigor, não há diálogo sem a activa presença de um
outro, pois se connosco conversamos, anulamos a comunicação na insólita
tentativa de nos objectivarmos como sujeitos singulares. De facto, não dialogo
comigo – rigorosamente só me enfrento. Para descobrirmos um pouco da nossa
essência temos de a manifestar aos outros. Talvez então, nos outros, possamos
assumir a verdadeira consciência. Eu sei que ser não é apenas consciência –
mas, sem a poderosa dimensão reflexiva, seríamos acaso homens e mulheres? Não
basta afirmarmo-nos como seres. Temos de nos afirmar como seres
humanos.
(14)
Cada um inventa a forma de se explicar. Eu, Édipo, ser do
tempo, encontrei esta forma.
Para mim, este blog é também uma das formas que encontrei
para me explicar.
(19)
(…) e ficámos os dois a gozar as poucas coisas que não
custam dinheiro. Era – e é – um céu tranquilo, leve como asa de pássaro,
composto na largueza caprichosa duma mancha de ouro velho refulgente.
(20)
Depois pressinto a intimidade desta pequena-burguesia que
vai despertar daqui a minutos e dói-me a sua pequenez. Para me curar deste
sentimento vou espantar-me novamente com a grandeza do Sol…
E dói-me a dúvida: serei eu pequeno também? E leva esta
pergunta já uma resposta incluída? Aqui, em caso de dúvida, eu diria que fica
excluída a absolvição. De uma coisa eu sei: esta interrogação só será útil se
ela for o início e motor de uma mudança para melhor, de um crescimento. Caso
contrário, a pequenez, a existir, ser-me-á irremediável.
(24)
«Escrevendo à luz débil me pergunto se é a morte ou a
manhã que espero». Leio isto num dos meus poetas predilectos – Carlos de
Oliveira. E eu mansamente te respondo o que tu sabes, meu triste, desesperado,
grande poeta: espera-te a morte e a manhã.
(25)
Não passo de um enregelado em busca do calor da
esperança, tão abatido como tu pela vida sem grandeza. Tão atingido no cerne do
meu sentir como todos. Todos. Sei, porém, sei que há em nós uma fonte secreta
de água viva.
(28)
Simplesmente: quando analiso o meu deserto, só pelo acto
de o analisar, compreendo que franqueio as portas da liberdade.
Por isso, não abdico de pensar, de perguntar e de me
interrogar. Também eu, assim, me vejo a abrir a porta à liberdade. Saindo eu,
abraço-a.
(36)
Mas tenho comigo a liberdade de pensar aquilo a que
aspiro. Essa é a minha força – ou uma das minhas forças.
(55)
Não crês, velho homem, que o nosso ódio se transforme em
amor? E que só o teu ódio é infecundo? Que o teu ódio, companheiro de infames
sortilégios, é incapaz de se reproduzir, extenuado de maldade, estéril como um
diabo sem mulher? (…) Não sentes, pequeno monstro despedaçado, que ainda vives
porque nós não crescemos? Enregelas como um ser sem trono. Regressa das
sombras, Aquiles, e diz-nos: que vale reinar sobre um povo extinto?
(67)
Com tudo isto à nossa beira, cercados, ansiosos,
deprimidos e esquivos. Que sei eu? O isolamento angustia, mas o que mais dói e
deprime é o balir do rebanho. Por isso aprovo aquela literatura burguesa que
dissolva a vulgaridade e o conformismo.
(78)
Ignoro se acerto. Sei, todavia, que muitos de nós
desacertam. E esta verificação é a minha forma pessoal de acertar. A minha
evidência.
(87)
(…) Hegel (…) Assim surgiu a filosofia como
reconciliação (como reconciliação…) da destruição desse mundo real que o
pensamento havia começado…
Penso a fim de ligar as peças do puzzle, e para dar sentido ao
que me escapa… porque escapam, faltam sempre peças do puzzle.
(105)
Negar o que é e está não basta. Difícil, mas necessário é
substituir o que é e está por um outro que o contém e supera.
(111)
Eu, que sou, por vezes, um esquecido da origem, sem saber
meu nome, exprimindo românticamente a vida como o revolucionário que morre na
barricada pelo ideal que só se realizará duzentos anos depois…
Valores pelos quais propugno e que sei que nem daqui a
duzentos anos: compaixão e bondade como componentes essenciais nas relações
entre as pessoas, consideração e respeito no cuidar das crianças, decência, cuidado
com o ambiente, … No entanto, diz-nos mais à frente Alberto Ferreira, e nisso me consolo:
(126)
Sofro, com um pouco de metafísica e com alguma realidade
vivida, em uníssono com os que pereceram sem ver florir as sementes de luz que
generosamente espalharam. Ah! Mas não esqueço que tiveram a glória de as lançar
à terra ingrata!
(127)
(…) (nesta quadra adormecida em que as ideias do
futuro existem como sufocadas – António Pedro Lopes de Mendonça…).
(«António Pedro Lopes de Mendonça (Lisboa, 14 de Novembro de
1826 — Lisboa, 8 de Outubro de 1865), mais conhecido por Lopes de Mendonça, foi
um jornalista, romancista, dramaturgo e folhetinista português, que também se
destacou como activista social, defendendo um socialismo utópico e romântico
como forma de melhorar as condições de vida do proletariado. Escritor eclético
e de causas, foi sobretudo como crítico literário que ficou na história da
literatura portuguesa.»
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Pedro_Lopes_de_Mendon%C3%A7a)
(130)
Interrogo a minha época. Interrogo-a e sinto que dela me
distancio como se nela não vivesse. E não sou eu apenas. Somos nós – uma
geração, (…).
(133)
Esta juvenil imprudência, a paixão generosa que nos
anima, coloca-nos na situação ambígua de desadaptados.
(137)
Enquanto assim medito e escuto lamentações e gritos,
dói-me não transferir esta ânsia do peito para os braços.
(157)
Quero o mundo sem vencedores para que não haja vencidos.
Por isso, detesto quase todos os desportos, incluindo o
futebol.
(158)
Homem autêntico é, se não me engano, o que possui a
mínima consciência da sua particular situação. E aquele que a possui repara que
o mundo se divide: num lado constrói-se a humanidade, no outro aos poucos se
destrói: nós ainda estamos no lado da destruição. Ainda que muitos não se deem
conta desta angustiosa situação não deixaremos por isso de possuir uma consciência
trágica. (…) eu sou do meu tempo… e vivo-o na consciência de que isto que me
cerca e exila é e não é o mundo de amanhã.
(159)
Em cada dia, em cada hora, em cada instante teremos de
permanecer no que somos e, ao mesmo tempo, de prevalecer sobre o que somos. Sem
esta constante perspetiva cada homem pode morrer no íntimo da sua própria
consciência e aí ficar solidificado como o fóssil da crisálida. Sem esta
permanente acuidade cada homem tenderá a esquecer que a vida é algo que ele
merece apenas obtenha a vitória sobre si e os outros. Vitória sobre si:
renunciando ao que o aliena. Sobre os outros: domando o que nos outros conduz à
alienação coletiva. Nada disto se obtém sem coragem.
(204)
Cada vez me furto mais à opressão do convívio gratuito,
sem saber o caminho, recuando às cegas. Como poderei aferir o valor de uma
presença humana? Uma coisa me parece irrefutável: é necessário reduzir os laços
até converter a ligação ao silêncio. Quando se fala e condescende deixamo-nos
invadir por aquilo que nos outros é pobreza.
Sinto isto de forma aguda em relação ao Facebook. Tantas
vezes não se trata de condescendência, mas de cansaço e do reconhecimento que o
adversário tem mais armas e mais violentas à sua disposição do que nós. A tarefa
de não nos deixarmos invadir mantendo-nos no campo de batalha (que os outros
escolheram como tal, não eu) parece de tal forma gigantesca e inútil que dele eu
opto por me retirar e me manter afastado.
A investigação demonstra que quanto mais uma pessoa está
disposta a exprimir certezas acerca de um determinado assunto, maior é a
probabilidade de a sua ignorância sobre esse assunto ser maior. Ou seja, por
outro lado, quem mais e melhor sabe, menos certezas tem e mais dúvidas verbaliza.
Mesmo quando esta última posição de interrogação é a que permite melhor chegar
à verdade (ou pelo menos de nos aproximarmos mais dela), ela é tão facilmente
desbaratada pelos que têm certezas (ou fingem tê-las); e raros são os que resistem
à tentação de o fazer. Também isto cansa infinitamente os que procuram
honestamente a verdade.
A próxima citação de Alberto Ferreira lança mais alguma
luz, infelizmente sem diminuir muito as sombras.
(231)
(…) Não se persuade um desconhecido com a retórica da
justiça, do bem e da verdade. Nem a justiça, o bem e a verdade se inculcam em
dois minutos de conversa. Tudo isto leva uma vida a ensinar. Uma vida e a
própria vida. Respondo, cuidadosamente, como Édipo: estou aqui porque quero ser
«um exemplo vivo de dignidade». Fitamo-nos nos olhos e compreendemo-nos quanto
é possível.
O último período tem o tom inconfundível do “wishful thinking”,
mas pouco provável de se concretizar.
(232)
Gostaria de ter ódio e não tenho. Preferia revoltar-me até
às raízes mais profundas da minha dignidade ofendida, mas não me revolto. Preferia
cuspir o meu desprezo, a minha raiva, e não o faço. Desejaria insultá-los até
ao sentido mais justiceiro do insulto e não insulto. Estou aqui a discutir, a
persuadir, a desfazer, ponto por ponto, as acusações que me atiram como
pedradas. Estou assim porque o ódio, a revolta, o desprezo, a raiva, o insulto
não constituem o profundo sentido da minha força, da minha dignidade e do meu
humanismo. Estou assim porque resisto e resistir não é ofender. Estou assim
porque luto na defesa – ao lado das vítimas… Estou assim porque luto à minha maneira.
Porque viso demonstrar que o meu ideal é autêntico e o autêntico não pode
deixar de impressionar um homem, mesmo que ele seja – ou pretenda ser – o meu
carrasco.
(252)
Decerto pensava o que escrevia, mas tinha de sentir
fortemente o que pensava para escrever.
E isso vê-se, sente-se em cada palavra, em cada frase ou
parágrafo deste livro…
(254)
Por que não hei-de aceitar alegremente o provisório da
vida se a morte é irremediável? Por que opor à alegria a trágica inquietação da
morte? Por que não hei-de reconhecer o provisório da infância se dela algo me
fica na recordação? Só a morte não recorda a vida…
(254)
Prudentes sábios insinuam-nos que o adolescente não sabe
a vida. Que vozes são essas? Vozes roucas, secas, impuras. Aqui onde eu já
cheguei, passados os anos itinerantes, bem vejo, bem reparo que me não
completei, e, enquanto assim sou, algo da adolescência me sustenta. Orgulha-me
esta condição.
Às vezes interrogo-me que parte de mim rejeita determinadas
ideias áridas que me beneficiariam materialmente no curto e médio prazo (a longo prazo já
não saberei dizer). E que parte de mim, a dominante, pelo contrário, adere a uma
opção de vida pela justiça, pela bondade, pela decência. A fonte de onde nasceu
esta parte sei eu onde está: na adolescência e na juventude, altura em que
descobri que havia uma iniquidade mais geral no mundo, não apenas à minha
volta; e que era possível a dignidade se me mantivesse fiel a uma ideia que me elevasse
para além da minha condição natural (ou da condição que muitos outros me queriam
impor).
(258)
Desistir dos caminhos da interrogação é ignorar
definitivamente – e com essa definitiva desistência nos desarmarmos.
(259)
Quem julgue que tudo se alcança e apreende de uma só vez,
sacrifica a esperança – e todo o lirismo da esperança – no altar de impossíveis
mitos. Quem se proponha a perfeição sem respeitar o imperfeito, jamais tempera
as armas com que se vence a espera desesperada. O absoluto é, sem dúvida, uma
bela ideia mas a sua verdade dorme no relativo. A impassibilidade da ideia
perfeita seduz mas não resolve as nossas contradições fundamentais.
Esperar o imediato ou a perfeição é garantir a certeza de um
fracasso estéril, ou seja, com o qual quase nada se aprende de construtivo. Contentarmo-nos
com o imperfeito também não é a solução. Ela está nesta proposta de Alberto
Ferreira: propor-me a perfeição respeitando sempre o imperfeito.
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Texto que publiquei no Facebook, a 6 de novembro de 2020:
«Não basta afirmarmo-nos como seres. Temos de nos afirmar
como seres humanos.» (Alberto Ferreira, 1965, “Diário de Édipo”, 2ª ed., p. 13)
Hoje, recordo o melhor professor que eu tive em toda a minha
vida. Foi também professor de António Rosa Mendes que lhe dirigiu as seguintes
palavras numa carta de 13 de novembro de 1984 e que faço também absolutamente
minhas:
«Acontece porém que (…) você deixou na minha formação humana
uma marca indelével. (…) Por isso, porque cada um tem o seu momento em que
julga perceber um fulgor, uma vocação – eu tive esse e, queira ou não queira,
foi você que o determinou (…).»
Alberto Ferreira foi professor de História da Cultura
Portuguesa na extensão da Faculdade de Letras, em Faro, de 1979 até 1981.
Faz hoje 100 anos, 1 mês e 1 dia que Alberto Ferreira nasceu.
Podemos encontrar a sua biografia (uma vida interessantíssima) e testemunhos
(como o que transcrevi anteriormente) no livro “Alberto Ferreira, 1920-2000 –
Escrita e Intervenção”, 2010, numa excelente edição da Biblioteca Nacional de
Portugal, da responsabilidade de Maria José Marinho e de Manuela Vasconcelos.
E em
https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/photos/alberto-ferreira-1920-2000foi-um-resistente-antifascista-l%C3%BAcido-e-%C3%ADntegro-a-sua-/716664255109623/
e
https://aviagemdosargonautas.net/2011/09/19/alberto-ferreira-um-filosofo-esquecido-por-antonio-sales/
A propósito do seu valor como escritor-filósofo, e numa
recensão aos livros “Ensaios: da Filosofia para a História” e “Diário de
Édipo”, Óscar Lopes escreveu em 1965, n’O Comércio do Porto:
«Alberto Ferreira é o mais penetrante espírito filosófico
que entre nós se me tem revelado desde que, há cerca de catorze anos, me
responsabilizo por esta secção de crítica. (…)»
Termino por onde comecei. O melhor professor, a ensinar
filosofia mas, principalmente, humanidade e fraternidade. Agora, ao reler
Diário de Édipo, recordei-o e pude continuar a reconhecer-me como discípulo
ainda e sempre de Alberto Ferreira.