segunda-feira, 15 de julho de 2019

João Tordo, "As Três Vidas"

Quidnovi, 2008

(Primeiras páginas)
O livro começa com um tom de policial “noir”: chuva, espeluncas, viagens noturnas, etc.

(52)
O narrador é um ingénuo, com um olhar sempre mais ou menos perplexo para o que ocorre à sua volta, meio entorpecido nos seus sentimentos.

(64)
Neste ponto, o livro assume um caráter de literatura gótica: noites assustadoras, corcundas, sacos fechados com algo vivo lá dentro, personagens estranhas em locais estranhos, mistério da atividade realmente realizada na quinta e chuvas torrenciais, chuva, sempre chuva até ao fim do livro. Chuva que podia ser um símbolo de lavagem, de recomeço, de revitalização, mas não aqui neste livro: talvez mais de algo que arrasta para a perdição (dilúvio), que destrói, que afoga.

(83/4)
«O destino significa que não fazemos as nossas escolhas, que o livre arbítrio é uma ilusão. Que, mesmo quando julgamos poder escolher, essa escolha já foi feita por outrem. Normalmente, outrem é designado por Deus; mas podes chamar-lhe o que quiseres.»

Esta afirmação não tem sentido, pois não é uma conclusão a que se chegou livremente pelo raciocínio próprio, é algo que a personagem estava destinada a dizer, fosse verdade ou não. Ao aceitar o que esta frase diz, ela pode ser ou não verdadeira.
Aliás, se a ideia de livre arbítrio é uma ilusão, também a ideia de destino não o será menos, já que não fomos nós qua a escolhemos.
Então como sair deste paradoxo? Bom, paradoxo por paradoxo, prefiro ficar nesta posição: quando tendo a acreditar no livre arbítrio, desconfio; quando tendo a acreditar no destino, desconfio.
Sei que os meus movimentos, de espírito e de corpo, são condicionados pela genética, pela educação que recebi, pelo contexto social e cultural em que estou mergulhado. Mas sei também que existe alguém em mim que observa tudo isto e que eu não consigo ver (como os olhos que veem mas que não se podem ver a si próprios). Fica aí esse espaço de um possível livre arbítrio.

(84)
«O passado pode ser alterado subjetivamente, bem como os acontecimentos que o constituem, porque o passado não tem existência física.»

Claro que o que aconteceu não pode ser alterado. Mas a minha perceção do que se passou bem como a memória que guardo disso podem ser modificadas. Porque a perceção é sempre parcial e condicionada pela emoção; e a memória é sempre, e de cada vez, uma reconstrução.

(114)
Encontrar Camila na cama com o irmão Gustavo, desfazer-se do cadáver de um suicida irlandês juntamente com o jardineiro, tudo vai ficando cada vez mais britanicamente gótico. Talvez o maior defeito deste livro, esta mistura – por exemplo, será verosímil uma chuva permanentemente torrencial no Alentejo?

(135)
«Um homem não é uma entidade, são muitas e, se não nos decidimos, a tempo certo, por uma delas, acabamos feitos em retalhos.»

Concordo com a primeira parte da frase, mas não sei se com a segunda. Se for decidir quem fica a coordenar as nossas diferentes partes, já fico mais próximo de concordar.

(147 e seg.)
Sobre a hipnose. João Tordo mostra que investigou sobre o assunto. O uso de comprimidos para vencer a resistência do paciente e hipnotizá-lo mais facilmente é uma prática perigosa e que, no mínimo, revela pouco respeito pela pessoa na sua totalidade.

(154)
«Depois da experiência [hipnótica] (…). Inundado por uma felicidade excessiva, (…). (…) e depois, na segunda manhã, acordei com o peso do mundo sobre os ombros. A felicidade que sentira desaparecera completamente, e sentia-me envenenado (…).»

Este é o preço a pagar por uma felicidade obtida por meios “artificiais”: drogas e instruções hipnóticas. Drogas trazem “ressaca” e a felicidade não foi construída com as nossas forças, passo a passo, dando tempo a uma consolidação feita ao nosso próprio ritmo.

(179)
Atrocidades de Pascal em tempo de guerra. Numa guerra, não há pessoas boas, são todas más. Simplesmente, porque ela apela ao que de mais desumano existe em nós.

(182 e 183)
«Ninguém, no entanto, é imune. (…) Psicologicamente, encontrava-me destruído. (…) e a minha alma saqueada pelas coisas terríveis que fizera.»

Não estamos biologicamente construídos para fazer mal a outros, principalmente a quem nada nos fez ou nada ameaçou fazer.

(198)
«(…) De uma sessão por semana rapidamente passámos a sessões diárias e, sentado no seu escritório, usufruindo das suas técnicas de relaxamento e da sua utilização sensata da hipnose, fui lentamente aprendendo a aceitar aquilo que o destino me tinha reservado. Demorou bastante tempo (…); quando completei um ano desta terapia, (…).»

Mais uma vez, João Tordo mostra saber bastante sobre a prática da hipnose e que não vai atrás de promessas mirabolantes feitas por alguns hipnoterapeutas – que levam muita gente (é a minha experiência) a achar que uma sessão é suficiente para resolver qualquer problema que tenham.


Este livro é narrado por um ingénuo que nunca chega a aperceber-se realmente do ambiente sinistro em que foi envolvido. O assassínio de Luís Garcia, o jovem que tentou salvar o narrador, simboliza o perigo em que este sempre esteve. Ou melhor, o Mal de que nós, leitores, suspeitamos sempre, mas que o narrador nunca vê - e que, por estarmos dependentes do que ele nos conta, também nunca chegamos a perceber bem qual é.

Tantos escritos contemporâneos explicitamente fascinados com a memória, numa época em que rapidamente esquecemos o ontem, ou o passado (veja-se o exemplo do nome dado ao carro da Queima das Fitas dos finalistas do curso de História da Universidade de Coimbra – Alcoholocausto – e que os estudantes não perceberam porque é que era um sinal de impiedade e de crueldade, mesmo depois de lhes explicarem), ou as raízes do que somos, etc.

Este romance é a metáfora de muito do que é a vida: sabemos pouco dos outros (não há uma verdadeira claridade em ninguém aqui); andamos ao sabor do que nos vai acontecendo; e somos irremediavelmente fracos face a forças obscuras muito mais poderosas que nós. Pascal é o símbolo de um mundo opaco em que o que parece não é (mas nem disso temos certeza absoluta) e que nunca se nos revela completamente. Camila simboliza a ilusão da claridade que nos tenta, que nos enleia e que nos deixa acreditar nela para depois desaparecer sem explicações, como uma vela que se apaga.

O narrador acaba por desistir de Camila e casa-se com outra mulher, a que corresponderá talvez a sua 3ª vida. Este casamento fez-me lembrar a canção Tonight Is What It Means To Be Young dos Fire Inc, no filme Streets of Fire:
I've got a dream 'bout an angel on the beach
(…)
But I don't see any angels in the city
I don't hear any holy choirs sing
And if I can't get an angel
I can still get a boy
And a boy'd be the next best thing
The next best thing to an angel
A boy'd be the next best thing




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