sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Julian Barnes, A Única História




Quetzal, 2019

De como uma relação de amor tem um lado suave e luminoso, ao mesmo tempo que tem um lado instável e crítico, acabando este por se sobrepôr ao primeiro.

Ou de como uma família disfuncional se mantém em equilíbrio e quando a pessoa que sofre e é vítima (Susan) se afasta com a possibilidade de ficar finalmente feliz, acaba por se desmoronar completamente. Ou seja, como ela precisava da disfuncionalidade para manter o seu equilíbrio interior.

Um livro bonito e triste.


(46)
Mas a questão, Casey Paul, é que seria assustador, totalmente assustador, que, de uma maneira ou de outra, aquele homem continuasse vivo. E o que não desejas aos teus inimigos não vais imaginar para ti próprio.

Se eu posso ficar vivo depois da morte, também outros poderão. Eu não quero que Hitler, pedófilos, torturadores, etc., fiquem vivos. Se o preço que eu tenho de pagar para que isso aconteça é eu não sobreviver à minha morte, pois que não sobreviva. Eu morro definitivamente para que outros também morram definitivamente.


(48)
Havia algo na brandura dele, e na inclinação para o perdão, que quase provocava nos outros um mau comportamento?

Não me parece que seja assim tão simples. Muitas vezes, a brandura é o preço que pagamos para que não nos façam mal. Infelizmente, acaba sempre por aparecer alguém que, apesar disso, faz. E aí percebemos que não há nada que previna, que pague, que nos faça escapar do mal, a não ser o afastamento mais absoluto (e nem isso é uma garantia total, o infortúnio está sempre ao virar da esquina) ou a nossa própria destruição (o mal, sim, mas pelas nossas próprias mãos, não pelo arbítrio dos outros).


(52)
Susan: [Joan] Aprendeu a passar o tempo. É uma das coisas da vida. Andamos todos à procura de um lugar seguro. E se não o encontramos, então temos de aprender a passar o tempo.

Para nos distrairmos da angústia, para fugir dela, para nos esquecermos que vivemos inseguramente.


(53)
Susan: Mas nunca esqueça, senhor Paul. Toda a gente tem a sua história de amor. Toda a gente. Pode ter sido um fiasco, pode ter-se evaporado, pode nem ter tido pernas para andar, pode ter sido só na cabeça, que isso não a torna menos real. Às vezes torna-a mais real. Às vezes vemos um casal, parecem entediados de morte um com o outro e não conseguimos imaginá-los a terem algo em comum, nem a razão por que ainda vivem juntos. Mas não é só hábito ou indulgência ou conveniência, nada disso. É porque já tiveram uma história de amor. Toda a gente tem. É a única história.


(92)
O primeiro amor marca a vida para sempre: isso descobri eu com os anos. Pode não desqualificar amores futuros, mas eles serão sempre influenciados pela sua existência. Pode servir de modelo ou de exemplo a refutar. Pode obscurecer amores seguintes; mas também pode torná-los melhores, mais fáceis. Só que, por vezes, o primeiro amor calcina o coração e quem procurar depois só encontra cicatrizes.
“Fomos escolhidos pela sorte.” Não acredito no destino, já o devo ter dito. Mas agora acredito que, quando dois amantes se conhecem, já há tanta pré-história que só alguns resultados são possíveis. Mas os próprios amantes imaginam que o mundo está a começar de novo e que as possibilidades são ao mesmo tempo novas e infinitas.

O meu primeiro amor foi um desastre. Mas tinha de ser um desastre: que outra coisa pode acontecer quando se junta um tipo com corpo de 20 anos e idade mental de 8, com uma rapariga com a mesma idade física, mas já uma mulher? Calcinou? Não sei. Influenciou os seguintes? Sem dúvida, para minha infindável vergonha e miséria.


(96)
(…) Às vezes, a seguir, ela murmurava “Bem jogado, parceiro”. Às vezes, mais séria ou mais ansiosa, “Não desistas de mim, Casey Paul”. E eu também não sabia o que responder àquilo.

Esta frase bate-me fundo. Ser eu a dizê-la ou a ouvi-la. Uma tristeza que vem do fim dos tempos. Tanta gente que desistiu de nós. Sobrará alguém, no fim da nossa história? Uma das frases mais tristes, desesperadas e angustiadas do mundo. Porque sentimos em nós forças poderosas que, contra a nossa vontade, tal como aconteceu com Susan (que achava que não prestava), podem vir a provocar a desistência…


(97)
Não vi o pânico que estava dentro dela. Como podia adivinhar? Pensei que era só dentro de mim. Vejo, já tarde, que ele está em toda a gente. É condição da nossa mortalidade. Temos códigos de conduta [e ilusões partilhadas e alimentadas com os outros] para o dissipar e reduzir, anedotas e rotinas e tantas formas de alheamento e diversão. Mas há pânico e desordem à espera de irromper em todos nós, disso estou certo. Vi-o rugir entre os moribundos, como último protesto contra a condição humana e sua tristeza crónica. Está lá, nos mais racionais e equilibrados de nós. Só precisamos das circunstâncias certas, e reaparecerá. Então ficaremos à mercê dele. O pânico encaminha uns para Deus, outros para o desespero, alguns para obras de caridade [ou voluntariado…], outros para a bebida [Susan…], uns para o desapego emocional, outros para uma vida onde esperam que nunca nada de grave volte a perturbá-los [também…].


(141)
Joan: Paul, meu querido, já te disse que não dou conselhos. Segui o meu próprio conselho durante tantos anos e vê onde isso me levou. Isso acabou.

O melhor argumento que já ouvi para sermos modestos, senão mesmo silenciosos, no que respeita a dar conselhos.


(154)
Sexo triste é sempre de longe pior do que bom sexo, mau sexo, sexo solitário e sexo nenhum. Sexo triste é de todos o mais triste.


(194)
Por exemplo, achava que provavelmente não voltaria a ter sexo antes de morrer. Provavelmente. Possivelmente. A menos que. Bem vistas as coisas, achava que não. O sexo envolvia duas pessoas. Duas, primeira pessoa e segunda pessoa: tu e eu, para ti e para mim. Mas, hoje em dia, o ruído da primeira pessoa dentro dele estava silenciado. (…)

A mim, é o ruído ensurdecedor da parte que tem medo dos outros, que muitas vezes quase não deixa nem sequer ouvir a voz da segunda pessoa, quanto mais vê-la.


(235)
As coisas, uma vez acabadas, não se podem trazer de volta: agora sabia-o. Um murro, uma vez dado, não pode ser retirado. As palavras, uma vez ditas, não podem desdizer-se. Podemos continuar como se nada se tivesse perdido, ou feito, ou dito; podemos declarar que tudo esquecemos; mas o nosso íntimo mais íntimo não esquece, porque nos transformámos para sempre.

Julian Barnes – O Papagaio de Flaubert

  Quetzal, 2019 Julian Barnes é o mais continental dos escritores anglo-saxónicos. Entre outras coisas, vê-se isso pelo fascínio que ele dem...