sexta-feira, 28 de maio de 2021

Thomas Mann, A Morte em Veneza - Sobre o livro

 


Círculo de Leitores, 1990


Vou distribuir as minhas reflexões sobre esta obra em quatro postagens, às quais se pode aceder individualmente pelos respetivos links ou continuando a ler tudo de seguida:

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Dado que Thomas Mann usa propositadamente de bastante ambiguidade ao longo de todo o livro, de vez em quando fiquei curioso com algumas palavras que o autor teria usado no original alemão.

Nesta obra, senti também agudamente o problema de traduções diferentes darem livros bastante diferentes. Consolei-me pensando que, por outro lado, o mesmíssimo texto é habitualmente lido/“traduzido” de forma diferente por diferentes leitores.

 

Desde o primeiro momento de leitura, fascinou-me uma atmosfera carregada de referências míticas, de arquétipos e de outros símbolos (seja dito de passagem que ponho a hipótese de que a nossa falta de empatia para com Aschenbach se deve a que tudo parece ser um símbolo aqui, incluindo as próprias personagens): uns da Antiguidade, outros da atualidade; muitos nomeados diretamente (Sócrates, Fedro, Sémele, Zeus, Aquiles, Apolo, Posídon, etc.), alguns quase diretamente sem referência a nomes [Dioniso ou Baco, no sonho com o deus estrangeiro (125)], e outros sugeridos indiretamente. Alguns exemplos destes últimos:

·        Decisão de viajar ocorre num dia de Primavera [um falso Estio, (6), a preparar-nos já para descobrirmos que a decisão será trágica porque assente em bases falsas]. Primavera que é habitualmente um símbolo a representar os desejos de juventude, promessa, recomeço e renascimento que irão acometer e dominar Aschenbach.

·        Acho que podemos encarar a viagem que Aschenbach faz como sendo, na realidade, um percurso de autoconhecimento. Então, este livro ecoa à Queda bíblica do Homem depois de provar o fruto da árvore do conhecimento e da inteligência, mas aqui “punida” com a morte.

·        Atendendo a que Aschenbach comete um “crime” e, à medida que vai mergulhando mais nele, a epidemia se vai espalhando em Veneza, esta obra também ecoa Rei Édipo (passado em Tebas), de Sófocles.

·        Podemos também ver Aschenbach a como que ganhar “asas”, pois pela primeira vez na sua vida se está a libertar das amarras do seu espírito austero e disciplinado. Ou seja, quando Aschenbach foge do seu lugar para se libertar do labirinto interior (mas também exterior, pois Veneza é também um labirinto de ruas) em que a sua vida corre o risco de se afundar, ao nosso espírito vêm Dédalo e Ícaro: conforme sobrevive ou não, assim é o primeiro ou o segundo. O caso de Aschenbach é o de Ícaro, pois ele usa as “asas” recém-adquiridas para tentar alcançar o impossível. Resultado: elas desfazem-se, ele “cai” e morre numa praia de Veneza.

·        No barco que o leva a Veneza, a cena com o velho que Aschenbach descobre no meio do grupo de jovens, disfarçado de jovem, faz lembrar a Dança Macabra, isto é, a forma como era representada a peste negra na cultura medieval:


 

·        Esta obra também ecoa bastante uma história de vampiros (mal sucedida): um homem já para lá da meia idade (que nos é mostrado por Thomas Mann como representando valores antigos, não muito felizes nem muito luminosos). Que procura uma renovada vida num jovem virginalmente belo (é muito difícil esquecer o ator sueco Björn Johan Andrésen no papel de Tadzio). Que lhe nega o direito à sua vida (decidindo não avisar a família do risco que corre na cidade com a epidemia) por causa dos seus desejos, necessidades ou razões absolutamente egoístas. Com todo este drama a passar-se num ambiente de crescente peste. Depois, o fracasso em conseguir esse rejuvenescimento e a morte subsequente (esta pode ser uma causa de Thomas Mann ter feito morrer o seu personagem…). Ainda no âmbito desta história de vampiros, podemos talvez ver aqui uma metáfora da sociedade que explora os mais inocentes e os mais fracos, levando-os muitas vezes à morte (não esqueçamos que a novela sai em 1912, dois anos antes do início da Primeira Guerra Mundial onde, pela loucura de alguns políticos, irão ser sacrificadas biliões de pessoas e morrer milhões de homens).

·        O mar, nesta obra, é talvez um dos símbolos mais evidentes (aliás, de muitas coisas: inconsciente, perspetiva de liberdade infinita, desejo de se perder, anseio pelo poder profundo, etc.). Mas aqui faço uma conexão com Afrodite/Vénus, deusa da beleza, do amor e da sexualidade [por acaso (?), o que Aschenbach sente em relação a Tadzio], que nasce da espuma do mar, tal como Tadzio em algumas cenas (e isto é claramente evidenciado no filme).

·        Outro símbolo evidente é Tadzio. Ele surge-nos (e acredito que também a Ascenbach, e não tanto por homossexualidade – que também pode lá estar, mas não é determinante, isto é, não é o elemento da obra que está aqui “à frente”) como símbolo de juventude e de beleza pelas quais Aschenbach tanto anseia que o leva a deixar-se fascinar pelo rapaz até à quase loucura.

 

Uma viagem (literalmente!) de autodescoberta de Aschenbach (que, aliás, não tinha essa intenção, apenas queria descansar).

Ele parte de um mundo regrado por uma disciplina interior fortíssima e claramente bem-sucedida no universo das letras. Nesta obra, a personagem principal aproxima-se de um outro mundo onde a beleza e a sexualidade (no seu sentido mais lato, ligado à vida e ao rejuvenescimento perpétuo) se entrelaçam e reduzem a cinzas todo o edifício construído até aí com tanto esforço e sacrifício.

Não é por acaso que a viagem (14) é decidida ser feita em direção ao Sul de todos os excessos e de todos os desmandos. O Sul, no imaginário dos povos do Norte, é um local indisciplinado, de libertação dos impulsos mais desregrados em direção à aquisição de um prazer desenfreado (ver visão de presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem: “não se pode gastar todo o dinheiro em copos e mulheres e depois pedir ajuda”.) Ou, numa perspetiva mais freudiana, o Sul como palco do inconsciente mais profundo.

A questão é se Aschenbach se aproximou desse autoconhecimento. Na verdade, acho que ficamos sem saber ao certo. Suspeito que ele passou a conhecer a sua faceta mais reprimida e desconhecida para ele, mas não alcançou com isso a sabedoria que só viria pela plena integração de todas as facetas da sua personalidade (isto é, viu outras árvores que existiam sem ele o saber na floresta do seu espírito, mas nunca chegou à visão global dessa floresta).

Não esqueçamos que Gustav é um nome muito comum, talvez mais um símbolo usado por Thomas Mann para significar que Aschenbach pode ser qualquer um de nós. Somos, por isso, também nós, leitores, que podemos com este livro aceder a um melhor autoconhecimento.


Thomas Mann, A Morte em Veneza - Citações e notas de rodapé

 

(5)

Qual idade de Aschenbach? Mais de 50 anos, é o que sabemos. Mas, como em muitos outros aspetos, Thomas Mann deixa-nos numa semi-ignorância, no vago.

Livro começa com a Primavera, símbolo de juventude, promessa, recomeço e renascimento. Assistiremos, depois, a mudanças do clima para facetas mais pesadas, mais misteriosas, mais sombrias, mais isoladoras, como se elas fossem refletindo o que vai acontecendo a Aschenbach.

 

(8)

(…) dava-lhe um aspeto estrangeiro e longínquo. (…)

E começam aqui uma série de referências que, se não são míticas, parecem-no. Neste caso, como se fosse um deus que viesse disfarçado à Terra para comunicar a vontade dos deuses - sabemos quem é esse deus: é Hermes que, por acaso é o deus das viagens (e dos ladrões também, curiosamente). E que, depois, desaparece tão misteriosamente como tinha aparecido: (14) Contudo, não foi possível avistá-lo, dado que não se encontrava nem no lugar onde tinha estado, nem na paragem seguinte, nem mesmo dentro do elétrico. Para voltar a aparecer no fim do livro, mas com uma função diferente.

 

(9)

(…), uma sedenta ânsia juvenil de distância – (…) Era um desejo veemente de viajar, (…).

E essa vontade é-lhe transmitida de forma misteriosa e tornada absolutamente clara no seu espírito. Curiosamente, isto acontece junto de um cemitério real – cemitério norte – (6) e de um segundo cemitério inabitado (7). A fim de reforçar a presença da Primavera e o caráter misterioso de todo o processo que é posto em movimento no espírito de Aschenbach.

 

(11)

O seu impulso tão repentino e tardio foi portanto rapidamente reprimido e rectificado pela razão e autodisciplina que costumava exercer desde os seus anos de juventude.

Ou, melhor dizendo, pelo hábito. Veja-se como, apesar de a razão intervir, esta não se liberta do impulso e acaba a obedecer-lhe, acabando o próprio Aschenbach por ficar completamente convencido: (14) Viajar, portanto, era isso que devia fazer. Mais uma noção de Freud: a razão, não senhora, mas serva dos impulsos.

 

(13)

(…) Seria isto uma vingança do sentimento escravizado que, abandonando-o e recusando-se a deixar evoluir a sua arte, lhe roubava todo o prazer, todo o fascínio da forma e da expressão? (…) sentia-se insatisfeito e parecia-lhe que faltavam à sua obra essas marcas de um humor ardente, resultado da alegria de quem aprecia o mundo. (…)

Noção freudiana de que a repressão dos impulsos pode matar uma vitalidade criadora, fonte de profundos prazeres.


(16)

(…) nunca chegara a conhecer a ociosidade e a despreocupação próprias da juventude. (…)

Aqui, Thomas Mann anuncia-nos o que Aschenbach vai procurar encontrar em Veneza. E encontrou, mas também encontrou a morte. Será, portanto, esta uma história moral banal? Quando nos deixamos levar pelos nossos impulsos mais profundos a destruição é o resultado natural? Ou simboliza-se aqui as atitudes perante a vida, apolínea e dionisíaca, esta mais conducente à destruição?

 

(26)

(…) a responsável destes traços fisionómicos, (…), era a arte. (…) Ela deixa no rosto do seu servidor os vestígios de aventuras imaginárias e espirituais (…).

A ideia errada de que “o rosto é o espelho da alma”; ou de que, pelo rosto, podemos calcular a história da pessoa. Uma ideia muito comum como resíduo da frenologia (uma pseudociência muito em voga no século XIX). Por outro lado, talvez outro símbolo da ideia de que a arte e a vida estão indissoluvelmente ligadas.

 

(27)

(…) resolveu permanecer numa ilha do Adriático (…) a chuva e o ar pesado (…)

Começa o tempo a mudar da claridade primaveril para algo de mais sombrio, a anunciar uma decisão funesta de Aschenbach.

 

(28)

(…) barco (...) velho, sombrio e sujo de fuligem. Num cavernoso camarote (…) um homem de barba caprina (…)

Os sinais da decisão de ir para Veneza a prefigurarem o desastre acumulam-se: até uma espécie de diabo lhe aparece a pela frente a vender o bilhete para Veneza.

 

(30/1)

(…) um grupo de jovens (…) palravam, riam, gozavam (…) Um deles (…) sobressaía em jovialidade (…) reparou com uma espécie de horror que se tratava de um falso jovem. Era velho, não havia dúvida. (…)

Faz lembrar uma espécie de Dança Macabra, forma como era representada a peste negra na cultura medieval:

Portanto, mais um sinal, agora cada vez mais claro, do que espera Aschenbach em Veneza.

 

(33)

(…) sempre esta cidade o tinha recebido em pleno esplendor de luz. Mas céu e mar permaneceram pardacentos e plúmbeos, e por vezes caía uma chuva nebulosa. (…)

Outro sinal de mau agoiro. São múltiplos a anunciar a tragédia.

 

(37/8-43)

A gôndola toda negra e um remador sinistro que, depois de o conduzir ao seu destino, desaparece, tal como o homem do início do romance que o leva a decidir-se viajar. Mais uma referência mitológica indireta, aqui Caronte, o barqueiro do Hades que, talvez não por acaso, é irmão de Hipnos (o deus do sono) e Tanatos (o deus da morte). Curioso, porque a partir de uma certa altura, Aschenbach parece perder a vontade própria e ser arrastado por forças obscuras (à sua volta, no mar, no céu, em tudo), parecendo pensar, sentir e atuar como se estivesse hipnotizado, sem ver os presságios da desgraça que vão surgindo no seu caminho. Ideia que pode ser confirmada claramente em:

(41)

(…) Aschenbach – incapaz de alertar os seus pensamentos para uma defesa ativa. (…)

 

(44)

Como a solidão cria a arte, mas também cria um estado de espírito negativo:

(…) Porém cria também o erro, a desproporção, o absurdo e o ilícito.

Aqui, Thomas Mann já nos está a avisar em que vai Aschenbach incorrer. Aschenbach que viveu toda a vida solitário, que nos surge neste livro sempre em permanente solidão. Por isso, quase logo a seguir a este passo no romance, Aschenbach deixa-se fascinar por Tadzio (46 e 47).

 

(56/7)

Amava o mar por razões profundas: pela necessidade de calma do artista laborioso que procura refúgio da exigente multiplicidade da sua imaginação no seio das coisas simples e grandiosas; e também por uma procura oposta à sua atividade e talvez por isso mesmo tão sedutora - inorgânico, desmedido, eterno, do nada.

 

(57)

Do amor ao mar passa para o amor a Tadzio.

É quando ele reconhece que ama o mar (…) também por uma procura oposta à sua atividade e talvez por isso mesmo tão sedutora – do inorgânico, desmedido, eterno, do nada. (…) que Tadzio passa à sua frente, interrompendo aparentemente estes sentimentos, mas, no fundo, o que acontece é que eles não são interrompidos, antes continuam, agora com um objeto diferente.

 

(62)

(…) Uma benevolência paternal – sentimento próprio daquele que com sacrifício cria a beleza no seu interior perante aquele que possui a beleza – preenchia e emocionava o seu coração.

Não percebo muito bem este sentido de “afeição paternal”… Aschenbach teve uma filha, agora casada, mas não um filho – porém, duvido que seja a isto que Thomas Mann se queira referir.

Talvez o autor nos queira antes mostrar que o que atrai Aschenbach não é um desejo carnal, mas antes um fascínio pela beleza que ele perseguiu durante toda a vida (aos seus olhos, sem um sucesso satisfatório) pela razão e pela disciplina do espírito. Só que aqui a natureza (com os seus impulsos cegos) ofereceu-a graciosamente a alguém que não fez nada por isso. E apenas o facto de ele a poder apreciar livremente atenua este conflito.

No entanto, parece-me haver aqui um erro lógico de perspetiva: Tadzio não aprecia a sua própria beleza (aliás, ninguém o faz inteiramente). Por outras palavras, só pode apreciá-la (e só pode criá-la) quem está de fora, quem no fundo se não acha belo. Essa será talvez uma das tragédias e felicidades simultâneas e específicas de se ser humano.

 

(76 e 77)

(…) Aschenbach não amava o prazer. Sempre e onde quer que estivesse a divertir-se, a descansar ou a gozar uns dias agradáveis, era impelido por uma inquietante e obstinada força de regresso à enorme fadiga, à tarefa sagrada e sóbria do seu dia-a-dia. Só este lugar o enfeitiçava, descontraía a sua vontade, o fazia feliz. (…)

Thomas Mann relata aqui a transformação de Aschenbach, de estóico em epicurista, de apolínio a dionisíaco.

 

(86)

Aschenbach escreve, porém sabe que o que serviu de inspiração para o seu trabalho não é muito recomendável:

(…) É, de certo modo, bom que o mundo conheça apenas a obra bela e não as suas origens nem as condições em que foi criada, pois o conhecimento das fontes, das quais brotou a inspiração do poeta, iria confundir e assustar o público e, desse modo, anular o efeito da sua excelsitude. (…)

Algo a que Quino alude humoristicamente neste cartoon:


(92)

Não há nada mais estranho e mais melindroso do que a relação entre pessoas que apenas se conhecem de vista, que diariamente e a toda a hora se encontram, se observam e que, por questões sociais ou mero capricho, são obrigadas a manter a aparência de mútua indiferença. (…) Pois o homem ama e venera o seu próximo, quando não pode julgá-lo; o desejo é uma criação do conhecimento insuficiente.

Quando passamos a conhecer melhor o/a outro/a, seja pela experiência, ou seja pela idade, ficamos a saber que se trata ou tratou de uma ilusão. Muitas vezes, então, o desejo fenece.

 

(94)

(…) Estava mais belo do que é possível dizer e, mais uma vez, Aschenbach verificou com dor que a palavra apenas pode louvar a beleza e nunca reproduzi-la.

Como com tudo o que é superiormente humano, claro, não só a beleza. Mas há que admitir que existem alguns escritores que conseguem boas aproximações. Por exemplo, Eça de Queirós a descrever a beleza da Natureza em A Cidade e as Serras.

 

(95)

(…) sussurrou a eterna fórmula do desejo, neste caso impossível, absurda, abjecta, ridícula e, no entanto, sagrada, venerável até: «Amo-te!»

Aqui, aquilo que poderia ser interpretado como uma admiração estética passou a ter uma tonalidade mais apaixonada. Aschenbach reconhece finalmente a paixão que o assola.

Gostava de saber qual a palavra em alemão que Thomas Mann usou para caracterizar a natureza desta paixão - desejo em português, longing em inglês -, para poder avaliar com clareza qual o grau de sensualidade na natureza deste desejo. Penso que Thomas Mann deixou isso propositadamente ambíguo: por exemplo, sabemos que uma parte carnal da paixão é o desejo de possuir o outro e isso nunca é referido aqui. A verdade é que Aschenbach sabe que isso seria impossível; no entanto, para o final, o seu espírito abre-se às esperanças mais absurdas, as quais não chegam a ser especificadas por Thomas Mann.

 

(98)

(…) Os naturais de outras nações não sabiam visivelmente de nada, não suspeitavam de nada, ainda não estavam preocupados. «É preciso manter silêncio!», pensou Aschenbach (…)

Enfim, revela-se aqui a verdadeira natureza dos seus sentimentos: paixão, mas não amor. Porquê? Porque ele escolhe não avisar a família de Tadzio (escolhe, portanto, não o salvar da morte) da epidemia que assola Veneza.

 

(99)

(…) Mas simultaneamente o seu coração enchia-se de contentamento pela aventura em que o mundo exterior ia envolver-se. Pois – tal como no crime – a ordem instituída não é, de modo algum, conveniente à paixão, qualquer afrouxamento da estrutura burguesa, qualquer confusão e aflição do mundo era-lhe forçosamente bem vinda, pois nestas circunstâncias podia esperar alcançar algum proveito. (…)

Mais, ele deseja a epidemia e o caos que se lhe associa, pois aí ele pode ter a esperança de conseguir obter algo. Trata-se na realidade de uma paixão egoísta, com tudo o que degradante pode ter esse egoísmo.

 

(118)

(…) cólera asiática (…)

Um piscar de olho ao futuro que estamos a viver agora…

 

(122)

(…) Ponderava um acto purificador e sério. (…)

A associação entre epidemia e crime, de que é preciso purificar-se, tem ressonâncias míticas, nomeadamente com o Rei Édipo de Sófocles.

 

(124-127)

(…) Mulheres (…) as suas cabeças atiradas para trás, (…)

O sonho com as bacantes…


… que representa o cair das últimas barreiras morais:

Depois deste sonho acordou enervado, transtornado, impotente nas mãos do demónio. Já não temia os olhares observadores das pessoas; era-lhe indiferente que lhes causasse suspeitas. (…)

 

(130 e 131)

Aschenbach transforma-se, às mãos do barbeiro, numa versão mais digna e contida do velho vestido de jovem que ele tanto desprezara há apenas umas poucas semanas atrás, no barco que o levou a Veneza.

Há quem diga que ele se transformou naquele velho. Eu ponho a hipótese exatamente contrária: ele não se iguala a esse velho. Porquê? Por uma evidência que nos é revelada por Thomas Mann. O velho apresenta uma jovialidade que leva a que Aschenbach o confunda, num primeiro momento, com um jovem igual aos outros. Mas no próprio Aschenbach não há nenhum comportamento de aberta ou ativa jovialidade que o faça poder ser confundido com um jovem alegre e bonacheirão.

Então o que pretende Thomas Mann? Na minha opinião, procura destacar em Aschenbach uma dignidade que o eleva acima do vulgar, por contraste nítido com aquele outro personagem muito mais indecoroso.

 

(134 e 135)

Aschenbach imagina-se Sócrates a dirigir-se a Fedro. Começa por elogiar a beleza como o caminho que o homem deve seguir. Depois duvida que esse caminho chegue à sabedoria. Mas, a seguir renegamos o conhecimento desintegrador, e volta a elogiar a beleza que, no entanto, pode levar ao abismo. Thomas Mann, pelo solilóquio de Aschenbach, é ambíguo sobre se a beleza é uma coisa boa ou má, apesar de considerar que ser poeta é mau. Note-se que Platão, no seu livro República, considerava com desconfiança a autoridade que os poetas tinham quando se tratava da educação dos mais jovens.

 

(140)

(…) No entanto, tinha a sensação de que o pálido e doce psicagogo lá longe lhe sorria, lhe acenava com a mão; (…)

Mais uma referência mitológica, agora ao guia das almas no reino dos mortos para o Hades, na Antiguidade grega - Aschenbach volta, então, a encontrar Hermes.

É com esta última fantasia que Aschenbach desliza para a sua própria morte. 

E assim termina o livro.


Thomas Mann, A Morte em Veneza - Livro e (possíveis) interrogações para o nosso tempo


A solidão orgulhosa, autoimposta, mesmo autodisciplinada, pode levar à nossa destruição moral e psíquica, senão mesmo física?

 

Um amor impossível e irracional (por isso, Thomas Mann talvez tenha escolhido como objeto da paixão um rapaz, e não uma rapariga, o que contribui para acentuar estes dois traços) pode dar aquele mesmo fatídico resultado?

 

Deixando-nos guiar por Freud, uma excessiva repressão dos nossos impulsos para o prazer pode dar origem à sua irrupção violenta, descontrolada ou distorcida? 

Note-se que a repressão é um mecanismo de defesa em relação à dor emocional, expulsando da consciência desejos, pensamentos ou experiências que perturbam excessivamente o espírito da pessoa. No entanto, podem ficar resíduos da parte afetiva destas componentes; ou seja, o evento fica registado no nosso sistema nervoso, só não fica acessível ao consciente. Portanto, escapa muito mais facilmente ao nosso controlo.

 

Ainda pelo olhar de Freud, Thomas Mann desejará mostrar como o autoconhecimento é impossível, bem como o perfeito autodomínio?

Hoje sabemos que Freud tinha razão: nunca chegamos a conhecermo-nos completamente, nunca nos conseguimos dominar completamente. Aliás, conta-se que Freud dizia de si próprio ser o terceiro grande revolucionário da história da humanidade: o primeiro tinha sido Copérnico, ao demonstrar que o Homem não era o senhor do Universo; o segundo tinha sido Darwin, ao demonstrar que o Homem não era o senhor da Terra; o terceiro tinha sido ele por demonstrar que o homem nem sequer de si próprio era senhor.


Será que Thomas Mann nos sugere que a paixão pela beleza pode ser um caminho destruidor?

Eu acho que sim. Repare-se: não sou contra a beleza, nem contra tentarmos encontrar e criar beleza na nossa vida. Mas apenas na condição de ela não ser de maneira nenhuma escolhida como o único valor, ou o mais elevado, para a nossa vida. Porque aí pode tornar-se destruidora:

·       Começa logo porque divide as pessoas e o mundo entre os belos e os feios, com desprezo e nojo em relação a estes.

·        Segundo, porque habitualmente, ao reconhecermos o belo, sentimos que ele pertence a um outro mundo cuja entrada nos é negada para sempre.

·       Terceiro, porque na nossa época (e a novela de Thomas Mann reforça-o) é fácil associar a beleza à juventude; se já não somos jovens, podemos repetir os passos de Aschenbach (e quantas pessoas vemos fazerem-no, por exemplo, nas revistas da socialite, em que mães se mostra mais “arrojadamente jovens” do que as suas filhas!).

·        A beleza, e o amor por ela, pode ser apenas consequência de uma cegueira, fruto de um conhecimento incompleto ou mesmo errado, o que pode levar à desgraça (ver as revistas anteriormente citadas, onde se sucedem as zangas e as separações entre pessoas que parecem ter tudo para serem as mais felizes do mundo…)

·        E mais razões haverão…

 

Thomas Mann expõe as relações que podem existir entre quem o escritor é como pessoa e o trabalho que publica.

A relação é complexa, porque o que é uma pessoa? Aquilo que ela mostra ao mundo? Não. Aquilo que os outros são capazes de entrever e que ela própria não distingue? Muitas vezes, não. Na verdade, aquilo que a pessoa “é” resulta em algo de tão fluido, de tão difícil de congelar no tempo, que se torna muito difícil de ser observado e definido.

Vergílio Ferreira distinguia os dois, a pessoa e o artista. Dizia que havia um fosso entre o que mostrava ao mundo (e que ele não achava particularmente agradável) e o que ele produzia na sua arte da escrita. E a diferença residia no facto de, quando escrevia, este ato era realizado em solidão e num estado praticamente de transe (ao qual ele, aliás, desejava incessantemente voltar, como se de uma droga se tratasse). Muito longe, portanto, do seu funcionamento normal e em convivência com outros.

Mas Thomas Mann não faz assim uma distinção tão clara. Até porque ele próprio esteve em Veneza e sentiu-se atraído por um jovem de grandebeleza que ali estava. Ou seja, nele próprio baralham-se o escritor, a pessoa e a obra. De formas que ainda hoje, aliás, suscitam amplos debates entre os estudiosos da sua obra.

 

Finalmente, será que Thomas Mann se apercebeu dos primeiros sinais daquilo que se tornou, hoje em dia, numa obsessão e numa indústria florescente, isto é, o desejo patético da juventude eterna?

É certo que, agora, se trata de um patético um pouco menos grosseiro por virtude da cirurgia estética, dos tratamentos estéticos mais refinados e de uma moda mais livre no vestir. Porém, continua a ser uma obediência servil à deusa Hebe, um símbolo antigo do acesso dos mortais à juventude eterna das divindades.

Por outro lado, ao fazer Aschenbach morrer depois de se tentar travestir em jovem, talvez Thomas Mann esteja a sugerir uma certa grandeza na coragem de assumirmos os nossos desejos (mesmo um tão patético como o de ser outra vez jovem), desde que seja ao serviço de um amor pela beleza mais pura. Só que se é verdade que Thomas Mann poupa o ridículo a Aschenbach, fazendo-o morrer, nós, na vida real, não temos provavelmente essa saída digna, restando-nos apenas o grotesco e o ridículo...

Thomas Mann, A Morte em Veneza - Diferenças entre livro e filme


O título do livro tem o artigo definido “A” antes de “Morte” (Der Tod in Venedig). Uma possível razão é Thomas Mann pretender alertar-nos que o livro não é sobre uma morte qualquer, abstrata ou indefinida, não, é "a" morte do protagonista; ele quer que nós saibamos o que vai acontecer ao personagem principal do livro. Ele consegue, assim, colocar-nos num estado de recetividade diferente daquele que teríamos se não soubéssemos como a história iria acabar. Muito interessante.


Mas é diferente no filme, onde o artigo definido não aparece (o título original italiano é Morte a Venezia, traduzido para inglês, Death in Venice, para francês Mort à Venize, e para alemão Tod in Venedig). Terá sido por acaso, ou intencional? Acredito mais na hipótese de ter sido intencional, a marcar o filme como um objeto inspirado pelo livro, mas diferente dele.


Por exemplo, a atmosfera sonhadora, quase hipnótica, do livro é transformada no filme em algo muito mais carnal e terra-a-terra, perdendo-se muito do caráter simbólico e ambíguo do livro.

Mas este pode ser o problema de o veículo usado ser o cinema, que trabalha muito mais com o concreto do que o livro que é todo ele constituído logo por si só de símbolos, isto é, de letras, palavras e frases.

Como diz o filósofo canadense Marshall McLuhan, "o meio é a mensagem", isto é, o meio é um elemento importante da comunicação e não somente um canal de passagem ou um veículo de transmissão. (…) Cada meio de difusão tem as suas características próprias, e, por conseguinte, os seus efeitos específicos. Qualquer transformação do meio é mais determinante do que uma alteração no conteúdo.

 

O filme, ao começar com a chegada a Veneza, também suprime o que, pelo livro, sabemos que desencadeia a vontade de viajar em Aschenbach. Ou seja, inicia-se no terceiro capítulo, fazendo-nos perder muito do que nos explica o que está por detrás da escolha da ida de Aschenbach para o Sul e do seu fascínio por Tadzio.

 

No filme, Aschenbach não é escritor, mas músico. O que não é despropositado, dado o peso que a música tem no filme. Mas, por outro lado, assim perde-se o lado mais filosófico e racional de Aschenbach. Aliás, o carácter profundamente intelectual de Aschenbach desaparece no filme. Raramente nos apercebemos desta componente no filme, tornando a personagem mais superficial e mundana do que Thomas Mann nos revela no livro.

 

Aschenbach surge-nos no filme como um pouco repulsivo, ou até ridículo, alguém com quem nos é difícil empatizar. No livro, melhora um pouco, até por causa dos dois primeiros capítulos que não aparecem no filme. Logo, no livro, a obra perturba-nos muito mais, porque aí Aschenbach está muito mais próximo de nós. Já agora, perturbar era certamente uma das intenções de Thomas Mann (senão, porque havia, por exemplo, de escolher uma paixão homoerótica, se não fosse para realmente perturbar?).

 

Finalmente, no livro, Tadzio não é nada sedutor. Mesmo quando isso parece ser sugerido, percebemos claramente que se trata de uma fantasia de Aschenbach. Por isso, talvez seja essa a razão por que Thomas Mann escolhe um rapaz e não uma rapariga: porque com esta última teríamos muitos acrescentos de sedução à beleza pura: malícia, sorrisos cúmplices ou desafiantes, gaiatice, suscitar o desejo com toques eróticos, etc. Com Tadzio, nada disto acontece. Tadzio aparece-nos como uma simples criança; no máximo, e com muito esforço de imaginação, enigmática, mas nunca sedutora.

Ao contrário do filme. O que me leva  a acrescentar duas referências, estas verdadeiramente perturbadoras, ao ator sueco Björn Johan Andrésen, a propósito deste filme:

a notícia

Quem roubou a felicidade ao "rapaz mais bonito do mundo"?

a propósito de um documentário de 2021, intitulado "The Most Beautiful Boy In The World", cujo trailer se apresenta a seguir:



sexta-feira, 21 de maio de 2021

Somerset Maugham, Servidão Humana

 


 Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s/d


Romance de 1915 que relata o percurso de autoconhecimento de um jovem, desde a infância até à idade adulta. Um livro muito interessante que revela a inteligência, a lucidez, o amor pela arte e a busca de respostas por parte de Somerset Maugham.

 

Prefácio de Carlos Vogt

Servidão Humana inscreve-se num gênero de romance de longa tradição, o do romance de formação, de adolescência ou de aprendizagem (…)

Servidão humana é também, no próprio sentido da educação e da aprendizagem do herói adolescente, um romance realista-naturalista, no qual as forças de escravização do ser humano — físicas, psicológicas, religiosas e morais — vão sendo superadas e as provações por que ele passa vão dando medida do processo progressivo de seu amadurecimento e de suas conquistas sobre si mesmo e sobre o mundo. (…) mas é também um romance moderno, se não tanto pela forma, ao menos pela ousadia dos conteúdos e pela formulação narrativa da aventura da busca inútil e da venturosa inutilidade da descoberta do vazio da metafísica: a vida não tem sentido e a morte, nenhuma consequência.

(…) aos três pilares da sabedoria dos tempos de que nos fala o autor em Summing up. Dos três — Verdade, Beleza e Bondade — Somerset Maugham elege a última como tendo valor intrínseco e permanência porque associado ao amor-afeição (loving-kindness). É por ele e com ele que podemos nos libertar do fardo da servidão, se pudermos, humana.

 

(29)

(…) [Mrs. Carey] Amou-o, a partir de então, com um novo amor porque ele a tinha feito sofrer.

O que será aqui “sofrer”? Philip ter dado a ideia de que não a amava? E, depois de um gesto de ternura, mostrar-lhe que havia afeto? Possivelmente. O “novo amor” é o que nasce da perda e da sua recuperação, agora mais forte por causa da revelação da sua fragilidade.

 

(32)

Certo dia a sorte favoreceu-o, pois deu com As Mil e Uma Noites, na tradução de Lane. A primeira coisa que lhe chamou a atenção foram as ilustrações. Para começar, leu primeiro as histórias de fundo mágico, e em seguida passou às outras. Lia e relia aquelas que lhe agradavam. Nada mais tinha importância para ele. Esquecia-se da própria vida que o cercava. Era preciso chamá-lo duas ou três vezes para que fosse jantar. Contraía, sem dar por isso, o mais delicioso hábito do mundo — o hábito da leitura. Ignorava que assim construía um refúgio para os momentos amargos da vida; por outro lado, ignorava também estar a criar um mundo irreal que transformaria o mundo real de todos os dias numa fonte de cruéis decepções.

Aqui nasce o sonho de viajar, nomeadamente ao Oriente, que o vai acompanhar toda a vida. Por isso, é um pouco inverosímil o final do livro, em que Philip abdica desse sonho para casar com uma mulher que não ama com particular paixão.

Sim, a leitura como refúgio contra a infelicidade. Porque para mim a felicidade passa muito pela segurança; e o mundo criado por muitos livros (não infelizmente todos) faz-me sentir seguro e em paz a maior parte do tempo (33 – Sempre que iniciava a leitura de um livro com dois viajantes solitários cavalgando à beira de perigoso abismo, sentia-se mais seguro do que nunca.).

Refúgio também para manter viva a esperança de um futuro melhor – mesmo agora, que já não devo ter nenhum futuro diferente do presente em que vivo.

Refúgio para tocar a beleza num mundo em que muita gente se esforça por a fazer desaparecer do dia a dia.

E para nos pôr em contacto com o mais elevado de nós, havendo arte que nos estimule a fazer isso. É por isso que a arte contemporânea me é tão estranha, isto é, não a sinto como arte porque, precisamente, não me eleva para lá da mesquinhez e da violência do dia a dia.

 

(50)

(…) As línguas mortas eram ensinadas com tanta exigência que o aluno sentia indizível enfado ao lembrar-se, mais tarde, de Homero ou Virgílio. (…)

Isto é tão verdade, já que se refere a um tipo estéril de exigência. Porque existe um outro tipo que eu usava como professor. Primeiro, relação afetiva com alunos. Segundo, fazê-los sentir que eu estava do lado deles. Terceiro, procurava ver em cada matéria como é que ela podia ser interessante aos seus olhos, não aos meus (Exemplo: ler os Maias procurando descobrir com quem estaria e como a gozar o Eça em cada episódio). Quarto, procurar pôr desafios ao seu alcance de modo a terem a satisfação de os vencer; mas tornando-os a pouco e pouco mais difíceis. Quinto, promover a entreajuda para tornar as aulas uma extensão do convívio de lá de fora, mas agora com um fim mais sério. Sexto, fazer testes um pouco menos exigentes do que a aplicada nas aulas.

 

(56)

Foi descoberto então que o novo diretor tinha a mania dos conhecimentos gerais. Alimentava dúvidas sobre a utilidade dos exames cujos temas eram preparados de antemão. Apreciava o senso comum.

Posição curiosa sobre os exames como instigadores de um ensino e consequente aprendizagem afunilados, formando os chamados idiots savants. Tendo a concordar. Era preciso que os exames fizessem pensar e que dessem liberdade para se ser criativo; isto é, que tivessem perguntas divergentes.

 

(63)

— Parece-me que você é muito sensível a respeito de sua infelicidade. Já pensou em agradecê-la a Deus?

(…)

— Enquanto a aceitar com rebeldia só sentirá aumentar a sua vergonha. Se, por outro lado, a considerasse como uma cruz que fosse obrigado a carregar porque a resistência de seus ombros assim o permitia — e aí está o favor de Deus —, então a transformaria numa fonte de venturas ao invés de uma desgraça.

Bem visto. Sem precisar da ideia de Deus: isto é, se eu faço isto porque é o que sou capaz de fazer, então estou bem. Não ótimo, não de acordo com os meus desejos – mas não importa, já que esta insatisfação existirá sempre, por melhor que eu esteja!

 

(92)

(…) lhe tivessem ensinado que os homens não eram talhados para a liberdade; (…)

E talvez não sejam. Porque, se aspiram a ela, é porque a não têm – e nós estamos sempre a desejá-la, não só em relação aos constrangimentos que os outros nos impõem, como às limitações com origem na nossa própria mente e que sentimos a pesar sobre nós.

Depois, por outro lado, veja-se como rapidamente e sem pensar caímos em inúmeras situações em que a nossa liberdade fica mais limitada do que anteriormente. O que faz com que, ao longo da vida, vamos caminhando sempre no sentido do cerceamento crescente da nossa liberdade, na imobilização cada vez mais densa e definitiva. Por exemplo, o meu último momento de liberdade efetiva foi aos 50 anos quando abandonei a Função Pública.

 

(93)

(…) Era tão jovem que ainda não sabia quão menor é o senso da obrigação por parte dos que recebem favores do que nos que os prestam. (…)

O que é natural, já que não estavam à espera de receber o favor. Além de que o seu infortúnio, que eles não consideram merecido, lhes faz sentir que têm direito a uma reparação. E, portanto, não há nada de que agradecer.

 

(104)

— Um unitário, muito simplesmente, não acredita em quase nada daquilo que constitui a crença dos outros, guardando, por outro lado, uma fé inabalável em algo que não sabe bem o que seja.

Gosto desta frase, principalmente da primeira parte (porque não existe isso de “fé inabalável”).

 

(111)

(…) Possuía, no entanto, o dom infeliz de ver tudo como na verdade era, e a realidade diferia terrivelmente do ideal de seus sonhos.

 

(111)

Não sabia como é vasto, árido e escarpado o país que o viajante da vida tem de atravessar para poder aceitar a realidade. É uma ilusão pensar que a mocidade seja feliz, uma ilusão daqueles que a perderam. Os jovens sabem que são miseráveis, pois alimentam os falsos ideais que lhes foram incutidos e todas as vezes que entram em contato com o real sentem-se magoados e contundidos. Dir-se-ia serem vítimas de uma conspiração. Os livros que leem, livros ideais pela necessidade de seleção, e a conversa dos mais velhos, que olham para o passado através da nuvem rosada do esquecimento, preparam-nos para uma vida irreal. São obrigados a descobrir por si próprios que tudo o que leram e tudo o que lhes ensinaram é mentira, mentira, pura mentira. Cada nova descoberta é mais um prego que lhes fixa o corpo à cruz da vida. O estranho é que as próprias pessoas que sofreram esses amargos desenganos trabalham inconscientemente, movidas por irresistível força íntima, para criar essa mesma atmosfera. (…)

Esta foi a minha vivência (nasci em 1958 e, na biblioteca do meu pai estavam muitos livros cuja leitura me era proibida). Hoje, penso que é diferente. Porque, desde crianças que todos têm acesso aos aspetos mais sórdidos e doentios da realidade e da fantasia do mundo (no entanto, não esqueçamos que tudo o que possamos ler, livros realistas ou não, tudo é sempre irreal porque 1) é a perspetiva singular de quem está a escrever; 2) as palavras não espelham a realidade nunca). Quem fica ou ficou melhor? Não sei responder. Mas avento a hipótese de que a sociedade, essa, fica pior. Pois parece-me que uma sociedade evolui principalmente devido àqueles que não aceitam as deformidades que ela revela, isto é, àqueles que (muito provavelmente com a leitura que dá mais espaço à reflexão) criaram dentro de si um ideal e que não se resignam.

 

(111)

[Hayward] Era um homem que nada sabia ver com os próprios olhos, mas só através do prisma literário; um homem perigoso porque se iludira a si mesmo, a ponto de se tornar sincero. Confundia honestamente o seu sensualismo com a emoção romântica, a sua indecisão com temperamento artístico e o seu ócio com a calma filosófica. O seu espírito, vulgar apesar da ânsia de perfeição, via tudo com dimensões maiores do que as da realidade, e os contornos apareciam mal definidos, imersos na névoa doirada do sentimentalismo. Mentia e no entanto nunca sabia que mentia. Quando lhe chamavam a atenção para isso, dizia que as mentiras eram belas. Era um idealista.

Não seremos todos assim, uns menos, outros mais? Claro que sim. Eu, pelo menos, enfio esta carapuça (note-se, sem comprazimento nenhum, embora, admito-o, com um certo bom humor) – exceto no achar que as mentiras são belas.

 

(118/9)

Quatro exemplos da ironia e dos seus matizes em Maugham, em alguns casos quase sarcástica se não fosse também compassiva, e a maior parte das vezes deliciosa:

Foi a iniciação de Philip na filosofia. Possuía um espírito prático e por isso movimentava-se com dificuldade no reino do abstrato: sentia, porém, inexplicável fascinação em acompanhar investigações metafísicas. Enchiam-no de pasmo; era o mesmo que observar um dançarino de corda bamba a fazer proezas sobre um abismo. Mas era empolgante.

Percebo lindamente, sinto o mesmo, embora eu goste de abstrações.

  

O pessimismo seduziu-lhe a mocidade; acreditava ser o mundo, no qual em breve penetraria, um tenebroso antro de misérias de onde a piedade fora banida. Nem por isso estava menos ansioso por conhecê-lo. (…)

Também me lembro de ser assim em jovem.


(…)

Afinal, deixou Heidelberg. Havia três meses que não pensava senão no futuro. Não levava saudades. Nunca se deu conta de que fora feliz ali.

Quantas vezes isto nos acontece! Principalmente, quando somos tomados pela vertigem do futuro que não nos deixa ver o presente.


Fräulein Ana ofereceu-lhe um exemplar de Der Trompeter von Sackingen e ele, em retribuição, brindou-a com um volume de William Morris. Muito acertadamente, nenhum dos dois chegou a ler o presente do outro.

 

(227)

(…) A gente só pinta por não poder deixar de fazê-lo. É uma função semelhante a qualquer das outras funções do corpo, com a diferença de que apenas um número relativamente pequeno de pessoas a possui. Quem pinta, pinta para si próprio; do contrário, suicidar-se-ia. Pensa um pouco nisto. Passar sabe Deus quanto tempo a tentar prender alguma coisa numa tela, suando, pondo nisso toda a alma, e qual é o resultado? Nove vezes em dez, uma recusa do Salon. Quando é aceite, os visitantes olham para ela dez segundos, de passagem. Se tiver sorte, algum tolo ignorante compra-a, pendura-a nas suas paredes, para olhar para ela só quando está à mesa do jantar. (…)

(…)

— No artista, a visão traduz-se por uma sensação particular! Ele é impelido a exprimi-la sem saber porquê, só pode fazê-lo com traços e cores. (…) Nós pintamos de dentro para fora. Se impomos a nossa visão ao mundo, ele chama-nos grandes pintores; se não, ele ignora-nos, mas nós continuamos os mesmos. Não atribuímos qualquer sentido às palavras grandeza e mediocridade. O que acontece posteriormente ao nosso trabalho não tem a menor importância: tirámos dele tudo quanto podíamos, enquanto o realizávamos.

Vergílio Ferreira subscreveria, certamente. Eu subscrevo! Sei que não sou nada de especial, mas fazê-lo é o que me dá mais satisfação. Claro, ter um público a aplaudir parece ser agradável. Mas tudo tem um preço. Aqui, o preço é vir também no “pacote” todos os que não gostam, que nos acham medíocres, e que não têm qualquer pejo em comunicá-lo aos quatro ventos. Aliás, devo dizer que a fama me assusta. Já assustava Séneca: (...) Consagrei todos os meus cuidados a sair da multidão e a fazer-me notar por um mérito qualquer. Que fiz senão expor-me aos ataques e mostrar à malevolência o local onde pode morder? (...) (Carta Sobre a Felicidade e Da Vida Feliz, tradução de João Forte (1994), Relógio d'Água Editores, p. 43). E acho que percebo perfeitamente a frase atribuída a Keith Richards, dos Rolling Stones: Everybody want to be famous until they are. Eu prefiro não querer .

 

(228)

(…) Ultimamente, Philip andava preso à ideia de que, vivendo o homem apenas uma vida, deve procurar fazer com que ela seja bem-sucedida. Para ele, porém, triunfar não significava adquirir fama ou dinheiro. Não sabia ao certo como definir o êxito, mas talvez consistisse no maior número possível de experiências ou no pleno desenvolvimento de suas faculdades. (…)

Questão interessante esta, a do êxito. Os existencialistas (por exemplo, com Camus e O Mito de Sísifo), falavam na primeira hipótese, a de multiplicação de experiências. Hoje, a Psicologia, daria mais ênfase à segunda hipótese. E eu? Os momentos em que sinto que tenho êxito? Quando era jovem, talvez pela variedade e pelo número de experiências originais. Mais velho, pelas alturas em que consegui realizar aquilo que sinto serem as minhas potencialidades, e não sentir que fiquei aquém; posso não ter sido nada de excecional, mas não senti que fiquei aquém.

 

(240)

(…) Diziam-no despido de emoções, mas ele sabia que estava à mercê delas: uma bondade inesperada comovia-o tanto que, às vezes, não se aventurava a falar, para que não lhe notassem a insegurança da voz. (…)

Ou uma vergonha imensa. Ou outra qualquer emoção negativa que se procura conter. Mas o que as pessoas veem é uma espécie de impassibilidade que confundem com indiferença. E como, muitas vezes, estão enganados! Eu cometi esse erro uma vez com o Francisco, era este pequeno ainda. Hoje sinto vergonha de ter pensado que ele tinha ficado indiferente. É que, de repente, não aguentando conter-se mais, comigo a criticá-lo, desata num choro angustiado que ainda hoje me pesa toneladas…

 

(240)

Quando Philip deixou de crer no cristianismo, sentiu que um grande peso lhe era tirado dos ombros; despejando-se da responsabilidade que sobrecarregava cada ato, quando cada ato era de infinita importância para a salvação de sua alma imortal, experimentou uma viva sensação de liberdade. Mas agora sabia que isso fora uma ilusão. Ao abandonar a fé em que tinha sido criado, mantivera intata a moral que era sua parte integrante. (…)

Por exemplo, as pessoas que deixaram de ser crentes e que se indignam com o comércio que é feito em Fátima à volta do que ela representa (e, uma vez que já não são católicas, lhes devia ser indiferente).

 

(241/2)

(…) que o pensamento de cada filósofo está inseparavelmente ligado ao homem que ele fora. Conhecendo-se-lhe a vida, era fácil imaginar em grande parte a filosofia que escrevera. Dir-se-ia que não agimos de certa maneira por pensar assim, mas antes pensamos de certa maneira por assim termos sido feitos. A verdade nada tem que ver com isso. Não existe a verdade. Cada homem é o seu próprio filósofo, e os primorosos sistemas que os grandes homens do passado construíram só foram válidos para os seus autores.

O importante, pois, é descobrir o que somos e o nosso sistema filosófico construir-se-á por si mesmo. (…)

Na filosofia não sei, mas na psicologia parece que é assim. Mais uma vez, a ideia de que as nossas escolhas e criações decidem-se num lugar ignorado de nós mesmos; só depois é que arranjamos razões para as sustentar.

Agora, a ideia interessante aqui é a de que, conhecendo-nos bem, automaticamente acabamos a construir o nosso sistema pessoal pelo qual a nossa vida se orientará. Portanto, pensar sim, mas não em conceitos abstratos e fora de nós, criados por outros. Porque o resultado inevitável, acabado o período de encantamento, é o envelhecimento e a perda de sentido daquilo que nos foi inculcado.

 

(242)

A grandeza da luta pela vida parecia-lhe emocionante e a regra moral que ela sugeria concordava com as suas predisposições. Dizia que a força era o direito.

Atenção a esta última frase que foi traduzida de forma um pouco ambígua. O original é:

He was intensely moved by the grandeur of the struggle for life, and the ethical rule which it suggested seemed to fit in with his predispositions. He said to himself that might was right.

Porquê atenção? Porque eu diria que Maugham quer dizer que Philip acha que, na sociedade, a força é que tem razão. E depois explica porquê.

De um lado está a sociedade, um organismo com as suas leis de desenvolvimento e auto-preservação e, do outro, o indivíduo. A sociedade classifica de virtuosas as ações que redundam em seu proveito, e de viciosas as que prejudicam. Bem e mal não significam mais do que isso.

Não bem a sociedade. Se fosse ela, há muito que se teriam acabado as injustiças que se exercem sobre a grande maioria da população, isto é, da sociedade. Aliás, Maugham põe Philip a ser lúcido na observação (a força é que tem razão), mas depois escapa-lhe a conclusão lógica: não é a sociedade que classifica, mas quem detém o poder e quer mantê-lo ou aumentá-lo é que classifica o que é bom e o que é mau. É por isso que, acertadamente outra vez, Philip convida-nos a desconfiar do que nos dizem ser o bem e ser o mal.

De qualquer modo, uma reflexão muito estimulante.

 

(243)

(…) Sim, porque é evidente que o Estado e o indivíduo consciente de si mesmo são irreconciliáveis. Aquele se serve do indivíduo para fins próprios, espezinhando-o se é contrariado, recompensando-o com medalhas, honras e pensões se é fielmente servido; este, forte somente na sua independência, move-se no seio do Estado, pagando (por conveniência) certos benefícios recebidos, em dinheiro ou serviços, mas sem sentir a menor obrigação; indiferente às recompensas, pede apenas que o deixem em paz. É um viajante independente que faz uso dos bilhetes Cook porque lhe poupam incômodos, mas olha com um desprezo bem-humorado para os grupos que se entregam ao guia. O homem livre não pode agir mal. Faz tudo o que deseja... quando pode. Sua força é o único estalão de sua moral. Reconhece as leis do Estado e pode infringi-las sem se sentir em falta, mas, quando punido, aceita o castigo sem rancor.

A força está com a sociedade.

Aqui estão em embrião as ideias anarquistas, para quem o inimigo é o Estado. Hoje, infelizmente, sabemos que a realidade é mais complexa que isso. Há a suspeita fundamentada de que o Estado é apenas um testa-de-ferro de outros interesses e de outros poderes. Quando ambos coincidem com os da população que afirma defender, tudo bem. Quando não, são os da população que são sistematicamente sacrificados. E nunca a ganância dos poderosos fica satisfeita. É por isso que desde sempre oiço dizer que o povo precisa de fazer sacrifícios para ter um futuro melhor… só que esse futuro nunca chegou, nem vai chegar! José Mário Branco, 1982(?), em F.M.I.: (…) Sempre a merda do futuro, a merda do futuro! E eu ah? Que é que eu ando aqui a fazer? Digam lá, e eu? José Mário Branco, 37 anos! (…) Entretanto, o número de ricos vai aumentando sempre, o fosso entre ricos e pobres idem, e há até um banqueiro que era conhecido em Portugal como o D.D.T. (porque era igualmente tóxico, como se veio depois a descobrir): Ricardo Salgado, o Dono Disto Tudo.

 

(250)

Contraía amizades casuais, mas não amigos íntimos, pois não lhe parecia que tivesse alguma coisa de particular para dizer aos companheiros. Quando procurava interessar-se nos problemas destes, tinha a impressão de que o achavam com ares protetores. Não era desses que conseguem falar das suas predileções sem cuidar de saber se isso aborrece ou não o interlocutor. Um colega que alimentava pretensões artísticas, ao ouvir que ele estudara arte em Paris, tentou discutir o assunto com ele. Philip, porém, não era indulgente com as opiniões que discordavam da sua; e, percebendo que as ideias do outro eram convencionais, limitou-se a responder por monossílabos. Desejava travar relações mas não se decidia a tomar a iniciativa. O temor da má acolhida impedia-o de ser afável e ele ocultava a sua timidez, que ainda era grande, por trás de um exterior frio e taciturno. (…)

Como a literatura pode dar um retrato quase exato do que nós somos… no meu caso, tirando as últimas palavras, está lá tudo.

 

(299)

— Não vejo a utilidade de andar lendo e relendo a mesma coisa — disse Philip. — Isso não passa de uma forma laboriosa de preguiça.

[Hayward] — Acaso julga ter um espírito tão grande que pode compreender à primeira leitura o mais profundo dos pensadores?

— Não quero compreender, não sou crítico. Não me interesso pelos escritores senão por minha causa.

— Então por que você lê?

— Um pouco por prazer, porque é um hábito, e eu me sinto tão inquieto quando não leio como quando não fumo; e outro pouco para me conhecer. Quando leio um livro, tenho a impressão de que o faço apenas com os olhos, mas às vezes encontro uma passagem, talvez uma única frase que tem sentido para mim, e que se torna parte de mim mesmo. Tirei do livro tudo quanto me era útil e nada mais poderei extrair dele, ainda que torne a lê-lo uma dúzia de vezes. Tenho a impressão de que nós somos como um botão de flor: a maior parte de nossas leituras desliza sobre nós sem produzir o menor efeito, mas certas coisas, que têm para nós um sentido especial, abrem uma pétala: uma a uma as pétalas desabrocham e por fim surge a flor.

Philip não estava satisfeito com essa comparação, mas... como traduzir melhor um sentimento tão impreciso?

Diria que ambos têm razão. Ler e reler tanto serve para se nos abrirem novas perceções, como pode ser sintoma de uma certa preguiça (por exemplo, eu ler westerns). Mas que mal tem isso? Não temos talvez de estar sempre ler livros elevados. É certo que isso nos rouba tempo para as leituras que realmente nos importam. No entanto, quando decidimos pegar num livro mais ligeiro, não é pondo-o de lado que vamos pegar num tratado de filosofia: quando precisamos de uma leitura mais leve, não conseguimos fazer uma mais pesada. Ou seja, pararíamos de ler e iríamos fazer qualquer outra coisa, mas não ler algo de complexo. Assim, mais vale ler um livro ligeiro.

Sim, eu também leio por aquelas razões. Confesso que também não viso cultivar o meu espírito, mas ter prazer e aprender alguma coisa sobre mim, sobre as minhas deficiências e sobre como superá-las.

Agora, se o livro for bom (chamo de boa aquela obra que deixa um espaço grande de criação e de descoberta ao leitor), as releituras fazem surgir novos aspetos das quais não tínhamos dado conta anteriormente. Novos e relevantes para nós, claro. Mas, tirando este aspeto, Philip/Maugham é certeiro. Até na dificuldade de definir o que pode estar por detrás do gosto da leitura.

 

(300)

[Hayward] Podia ainda falar com delícia sobre literatura; o seu gosto era refinado, e elegante o seu julgamento. Manifestava um constante interesse pelas ideias, o que fazia dele um companheiro agradável. Na realidade essas ideias nada significavam para ele, uma vez que não lhe produziam o menor efeito. Tratava-as como teria tratado belas porcelanas numa sala de leilão. Manuseava-as com prazer, sentia-lhes a forma e o brilho, avaliava-as mentalmente para depois tornar a pô-las nas prateleiras, esquecendo-as de todo.

Bom, em relação às ideias em geral, também reajo assim. Acompanho-as admiro-as como acompanho um trapezista de circo. Mas, há algumas que rompem esta barreira e soltam múltiplos significados e reações dentro de mim. Portanto, nem todas vão parar esquecidas na prateleira. Mas algumas, admito que sim. E nem sempre a razão é o desinteresse. Muitas vezes, é a cobardia de as pôr em prática que mas faz rejeitá-las como desinteressantes.

 

(301)

Havia muito chegara à conclusão de que nada era mais divertido do que a metafísica, mas não estava certo da sua eficácia nos assuntos da vida. O pequeno e bem elaborado sistema que construíra em resultado das suas meditações em Blackstable de nada lhe servira durante o seu capricho por Mildred. Não podia afirmar com segurança que a razão prestasse grande serviço como norma de conduta. Parecia-lhe que a vida não dependia dela. Lembrava-se com muita nitidez da violência da comoção que dele se assenhoreara e da sua incapacidade de reagir, como se estivesse manietado e por terra. Lia muitas coisas sábias nos livros, mas só podia julgar por experiência própria. Não sabia se era diferente dos outros. Ao agir, não calculava os prós e os contras, os benefícios que lhe adviriam do ato ou o prejuízo que pudesse resultar da omissão; mas todo o seu ser era irresistivelmente impelido. Não agia com uma parte de si mesmo, mas com toda a sua pessoa. A força que o dominava nada parecia ter de comum com a razão: esta limitava-se a indicar os métodos de obter aquilo por que a sua alma ansiava.

Mais uma vez, e com Vergílio Ferreira, a razão como serva das emoções ou de algo que está aquém do consciente.

 

(378)

(…) Sou um homem dotado, por sorte, de sentidos muito agudos e entreguei-me a eles de toda a alma. Agora é preciso pagar o tributo, e estou pronto a isso.

Philip contemplou-o por um instante.

— E não tem medo?

Durante alguns segundos Cronshaw não respondeu. Parecia pensar no que ia dizer.

— Às vezes, quando estou só. — Olhou para Philip. — Pensas que isso é uma condenação? Estás enganado. Não tenho medo do meu medo. A doutrina cristã, de que a gente deve viver sempre com os olhos postos na morte, é uma loucura. A única maneira de viver é esquecer a morte. A morte não tem importância. O temor dela jamais devia influenciar a menor das ações de um homem sábio. Sei que vou morrer lutando para respirar e sei que hei de ter um medo horrível. Sei também que não me será possível evitar o amargo arrependimento do género de vida que me levou a tais circunstâncias; mas desde já desautorizo esse arrependimento. E agora, alquebrado, velho, doente, pobre, moribundo, tenho ainda nas mãos a minha alma e não me arrependo de coisa alguma.

Primeiro aspeto: encarar o medo, aceitá-lo e não ter medo do medo (que nos leva a fazer coisas de que nos envergonhamos).

Segunda ideia: Ter medo só é condenação se tivermos medo de ter medo.

Terceiro aspeto: saber, com um saber de olhos abertos, que pode acontecer o pior no momento de morrer. Mas recusar ficarmos dominados por essa imagem de um futuro provável, mas não certo, ou condicionarmos as nossas decisões atuais a ela. Por isso, exclamamos, entre revoltados e resignados:

(516)

Que preço pagamos por sermos diferentes dos animais!

 

(390)

E por que agiam as pessoas desta maneira e não daquela? Portavam-se de acordo com os seus sentimentos, mas esses sentimentos podiam ser bons ou maus. Parecia questão de puro acaso levarem ao triunfo ou ao desastre. A vida afigurava-se-lhe uma inextricável confusão. Os homens corriam dum lado para o outro, apressados, impelidos por forças que desconheciam. E o objetivo daquilo tudo escapava-lhes. Dava a impressão de se apressarem apenas por amor à pressa.

É interessante notar que a Psicologia Evolucionista e a Neuropsicologia vieram aclarar muitos motivos pelos quais os homens se movem. O objetivo é a sobrevivência da espécie, que passa pela sobrevivência pessoal e pela reprodução. E todo o nosso sistema nervoso está desenhado e construído para cumprir essas finalidades. Atente-se que, dentro delas, cabem (talvez não de modo muito óbvio) os valores mais elevados que a nossa espécie foi capaz de elaborar.

 

(435)

(…) Tinham os Athelny uma qualidade que ele não se lembrava de ter encontrado noutras pessoas, e que era a bondade. Só agora percebia isso, mas era evidentemente a beleza daquela bondade que o atraía. Em teoria, não acreditava em semelhante coisa: já que a moral era simples questão de conveniência, bem e mal não tinham sentido. Não gostava de ser ilógico, mas tinha ali, diante de si uma bondade simples, natural, espontânea, e ele achava-a bela. (…)

Interessante encarar a bondade pelo seu lado estético. Ver a bondade não como coisa insonsa, não como uma espécie de imperativo ético ou moral, mas como algo que pode ser apreciado pela sua beleza.

 

(455)

(…) Era como se os homens fossem títeres nas mãos de uma força desconhecida que os impelia a proceder de um modo ou de outro. Faziam algumas vezes uso da razão para justificar as suas ações. E quando isso era impossível, procediam da mesma maneira, a despeito da razão.

— A humanidade é muito esquisita... — disse Philip. (…)

Novamente, a velha perplexidade face ao pouco poder real da razão. À sua função de “bengala” para justificar até o injustificável.

 

(489)

Que desproporção entre o esforço e o resultado! As brilhantes esperanças da juventude tinham de ser pagas pelo preço amargo da desilusão. Como a dor, a doença e a desgraça pesavam na balança! Que significava tudo aquilo? Pensou na sua própria vida, nas vivas esperanças com que entrara nela, nas limitações que lhe eram impostas pelo corpo, na falta de amigos e na ausência de afeição que lhe cercara a juventude. Sempre fizera o que lhe parecia melhor, mas que desastre o seu! Outros homens, sem maiores vantagens do que ele, triunfavam e outros ainda, com muito mais predicados, falhavam! Parecia pura questão de sorte. A chuva caía tanto sobre o justo como sobre o ímpio, e para nada neste mundo havia motivo ou causa.

(…) A resposta era evidente. A vida não tem sentido. Sobre a Terra, satélite dum astro que viaja velozmente pelo espaço, seres vivos surgiram sob a influência de condições criadas pela história do planeta. E, tendo assim havido um começo de vida na Terra, sob a influência de outras condições haverá um fim. O homem, criatura não mais importante do que as outras formas de vida, não surgiu como o ponto culminante da criação, mas como uma reação física ao meio ambiente. (…)

(490)

(…) A vida não tem nenhum sentido. E, vivendo, o homem não cumpre finalidade alguma. É indiferente que ele nasça ou não nasça, viva ou deixe de viver. A vida é insignificante e a morte, sem consequência. (…) Era ele a criatura mais insignificante naquela massa pululante da humanidade que, por breve espaço, ocupa a superfície da Terra. E era todo-poderoso porque arrancara ao caos o segredo da sua inanidade. (…)

(…) Assim como o tecelão desenha o tapete sem outro cuidado que não o prazer estético, pode também um homem viver a sua vida; ou, para quem acredita que os seus atos não dependem da vontade, nada impede de contemplar a própria existência como um desenho. Mas não entra nessa procura nem necessidade nem utilidade. É simplesmente a busca de uma satisfação pessoal. Acontecimentos diversos, ações, sentimentos, pensamentos podem traçar um desenho regular, trabalhado, complicado ou belo. (…) A vida afigurara-se-lhe horrível quando medida pelo padrão da felicidade, mas agora tinha a impressão de ganhar forças ao descobrir que ela podia ser aferida por outros padrões. A felicidade importava tão pouco como a dor. Uma e outra contribuíam, como todos os demais pormenores da sua vida, para a elaboração do desenho. Por um instante, teve a impressão de pairar acima dos acidentes da sua existência e sentia que eles já não podiam atingi-lo como antes. O que quer que lhe acontecesse agora, seria apenas mais um motivo a acrescentar à complexidade do padrão. E quando o fim se aproximasse, ele rejubilar-se-ia pelo seu acabamento. Seria uma obra de arte e nem por ser ele o único a conhecê-la deixaria de ser bela; e com a sua morte essa obra de arte cessaria de existir.

Philip sentia-se feliz.

O sem-sentido da vida. Como ele pode ser salvo pela beleza (que deve ser aferida apenas pelos nossos próprios olhos, para haver possibilidade de salvação). Como a felicidade não deve ser um valor a dominar e a condicionar os outros. Como tudo, mas tudo mesmo, pode contribuir de forma positiva para esta visão da vida. Ou seja, para a sua plena aceitação, mas esta sempre para nos elevarmos a nós mesmos e à nossa existência aqui na Terra, não para nos diminuirmos ou nos destruirmos.

Destaco ou, para quem acredita que os seus atos não dependem da vontade, nada impede de contemplar a própria existência como um desenho. Isto é, mesmo que eu não tenha sido artista a modelar a obra da minha vida, posso observá-la como se fosse um filme que não foi feito por mim (mas pelas circunstâncias materiais e humanas) e apreciar a sua beleza.

 

(524)

Philip descobriu que a maior tragédia da vida daquela gente não era a separação nem a morte, coisas naturais cuja dor podia ser acalmada pelas lágrimas: era, sim, a perda do emprego. (…)

(525)

Conhecia a procura desesperada de trabalho e o desânimo, que é mais duro de suportar do que a fome. Dava graças por não ter de acreditar em Deus, pois, perante semelhante estado de coisas, isso seria intolerável. A gente só podia reconciliar-se com a existência pela certeza de que ela não tinha sentido.

Outra vez o sem-sentido da vida. E o levantar da suspeita de que nenhuma ação assistencialista compensa em dignidade o ter-se um emprego. Mas nada é pior do que a fome e do que ver-se os filhos com fome, isso posso garantir – Maugham aqui não tem razão.

 

(565)

(…) Cronshaw dissera-lhe que os fatos da vida não têm importância para aquele que, pelo poder da fantasia, se mantém senhor dos reinos gémeos do tempo e do espaço. Era verdade. Ama sempre, e que ela seja sempre bela!

Será? A fantasia conseguirá fazer-nos senhores da vida mental (penso que é a isto que Cronshaw se refere)? Talvez com a ajuda de livros, como aconteceu comigo nos anos de chumbo da infância e da juventude.

 

(565)

Pensando na longa odisseia de seu passado, aceitava-a alegremente. Aceitava a própria deformidade que tão dura lhe fizera a vida. Sabia que ela lhe deformara também o caráter, mas percebia agora que graças a ela tinha adquirido aquele poder de introspeção que tanto prazer lhe dava. Sem isso, jamais teria possuído a sua aguda apreciação da beleza, a paixão da arte e da literatura, o interesse no variado espetáculo da vida. O ridículo e o desprezo de que tantas vezes fora alvo haviam lhe dado vida interior e feito desabrochar aquelas flores que, sabia-o ele, jamais perderiam a fragrância. Via, depois, que a normalidade era a coisa mais rara do mundo: todos tinham algum defeito de corpo ou de espírito. Lembrou-se de toda a gente que conhecera (O mundo inteiro parecia-se com um hospital, não tinha pés nem cabeça). Via uma longa procissão deformada física e mentalmente, uns com doença do corpo, coração ou pulmões débeis, e outros com doença do espírito, fraqueza de vontade ou tendência para a embriaguez. Naquele momento podia sentir por todos eles uma santa compaixão. Eram desamparados instrumentos nas mãos de um acaso cego. Podia perdoar a Griffiths a sua traição e a Mildred a dor que lhe infligira. Não eram responsáveis pelas suas ações. A única atitude razoável era aceitar a parte boa dos homens e ter paciência com as suas faltas. As palavras do Deus agonizante atravessaram-lhe a memória:

Perdoai-lhes, Pai, porque eles não sabem o que fazem.

Sim, o que o me aconteceu na infância e na juventude também deformou o meu caráter. Não uso isso para desculpar-me de alguma infâmia da minha autoria, mas sei que não a fiz com intenção de a cometer. Toda a minha vida se centrou em tentar escapar-me à crueldade do mundo, da real, mas principalmente da imaginada e antecipada. Sei que todo o mal que realizei, a maior parte do qual terá sido por omissão, tem a sua génese aí. Não me desculpo, mas compreendo-me e procuro aceitar-me, porém sabendo que nunca o conseguirei. Mas aí, mais uma vez, não serei único: milhões, biliões me acompanham nesta forma especificamente humana de solidão.


Julian Barnes – O Papagaio de Flaubert

  Quetzal, 2019 Julian Barnes é o mais continental dos escritores anglo-saxónicos. Entre outras coisas, vê-se isso pelo fascínio que ele dem...