O título do livro tem o artigo definido “A” antes de “Morte” (Der Tod in Venedig). Uma possível razão é Thomas Mann pretender alertar-nos que o livro não é sobre uma morte qualquer, abstrata ou indefinida, não, é "a" morte do protagonista; ele quer que nós saibamos o que vai acontecer ao personagem principal do livro. Ele consegue, assim, colocar-nos num estado de recetividade diferente daquele que teríamos se não soubéssemos como a história iria acabar. Muito interessante.
Mas é diferente no filme, onde o artigo definido não aparece (o título original italiano é Morte a Venezia, traduzido para inglês, Death in Venice, para francês Mort à Venize, e para alemão Tod in Venedig). Terá sido por acaso, ou intencional? Acredito mais na hipótese de ter sido intencional, a marcar o filme como um objeto inspirado pelo livro, mas diferente dele.
Por exemplo, a atmosfera sonhadora, quase hipnótica, do
livro é transformada no filme em algo muito mais carnal e terra-a-terra,
perdendo-se muito do caráter simbólico e ambíguo do livro.
Mas este pode ser o problema de o veículo usado ser o
cinema, que trabalha muito mais com o concreto do que o livro que é todo ele
constituído logo por si só de símbolos, isto é, de letras, palavras e frases.
Como diz o filósofo canadense Marshall McLuhan, "o meio
é a mensagem", isto é, o meio é um elemento importante da comunicação e
não somente um canal de passagem ou um veículo de transmissão. (…) Cada meio de
difusão tem as suas características próprias, e, por conseguinte, os seus efeitos
específicos. Qualquer transformação do meio é mais determinante do que uma
alteração no conteúdo.
O filme, ao começar com a chegada a Veneza, também suprime o que, pelo livro, sabemos que desencadeia a vontade de viajar em Aschenbach. Ou seja, inicia-se no terceiro capítulo, fazendo-nos perder muito do que nos explica o que está por detrás da escolha da ida de Aschenbach para o Sul e do seu fascínio por Tadzio.
No filme, Aschenbach não é escritor, mas músico. O que não é despropositado, dado o peso que a música tem no filme. Mas, por outro lado, assim perde-se o lado mais filosófico e racional de Aschenbach. Aliás, o carácter profundamente intelectual de Aschenbach desaparece no filme. Raramente nos apercebemos desta componente no filme, tornando a personagem mais superficial e mundana do que Thomas Mann nos revela no livro.
Aschenbach surge-nos no filme como um pouco repulsivo, ou
até ridículo, alguém com quem nos é difícil empatizar. No livro, melhora um
pouco, até por causa dos dois primeiros capítulos que não aparecem no filme. Logo,
no livro, a obra perturba-nos muito mais, porque aí Aschenbach está muito mais
próximo de nós. Já agora, perturbar era certamente uma das intenções de Thomas Mann
(senão, porque havia, por exemplo, de escolher uma paixão homoerótica, se não
fosse para realmente perturbar?).
Finalmente, no livro, Tadzio não é nada sedutor. Mesmo quando isso parece ser sugerido, percebemos claramente que se trata de uma fantasia de Aschenbach. Por isso, talvez seja essa a razão por que Thomas Mann escolhe um rapaz e não uma rapariga: porque com esta última teríamos muitos acrescentos de sedução à beleza pura: malícia, sorrisos cúmplices ou desafiantes, gaiatice, suscitar o desejo com toques eróticos, etc. Com Tadzio, nada disto acontece. Tadzio aparece-nos como uma simples criança; no máximo, e com muito esforço de imaginação, enigmática, mas nunca sedutora.
Ao contrário do filme. O que me leva a acrescentar duas referências, estas verdadeiramente perturbadoras, ao ator sueco Björn Johan Andrésen, a propósito deste filme:
a notícia
Quem roubou a felicidade ao "rapaz mais bonito do
mundo"?
a propósito de um documentário de 2021, intitulado "The Most Beautiful Boy In The World", cujo trailer se apresenta a seguir:
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