Círculo de Leitores, 1990
Vou distribuir as minhas reflexões sobre esta obra em quatro postagens, às quais se pode aceder individualmente pelos respetivos links ou continuando a ler tudo de seguida:
- Sobre o livro (a presente)
- Citações e notas de rodapé
- Livro e (possíveis) interrogações para o nosso tempo
- Diferenças entre livro e filme
-
Dado que Thomas Mann usa propositadamente de bastante ambiguidade ao longo de todo o livro, de vez em quando fiquei curioso com algumas palavras que o autor teria usado no original alemão.
Nesta obra, senti também agudamente o problema de
traduções diferentes darem livros bastante diferentes. Consolei-me pensando que,
por outro lado, o mesmíssimo texto é habitualmente lido/“traduzido” de forma
diferente por diferentes leitores.
Desde o primeiro momento de leitura, fascinou-me uma
atmosfera carregada de referências míticas, de arquétipos e de outros símbolos
(seja dito de passagem que ponho a hipótese de que a nossa falta de empatia para com Aschenbach se deve a que tudo parece ser um símbolo aqui, incluindo as próprias personagens): uns da Antiguidade, outros da
atualidade; muitos nomeados diretamente (Sócrates, Fedro, Sémele, Zeus,
Aquiles, Apolo, Posídon, etc.), alguns quase diretamente sem referência a
nomes [Dioniso ou Baco, no sonho com o deus estrangeiro (125)], e outros
sugeridos indiretamente. Alguns exemplos destes últimos:
· Decisão de viajar ocorre num dia de Primavera [um
falso Estio, (6), a preparar-nos já para descobrirmos que a decisão será
trágica porque assente em bases falsas]. Primavera que é habitualmente um símbolo a representar os desejos de
juventude, promessa, recomeço e renascimento que irão acometer e dominar
Aschenbach.
· Acho que podemos encarar a viagem que Aschenbach
faz como sendo, na realidade, um percurso de autoconhecimento. Então, este
livro ecoa à Queda bíblica do Homem depois de provar o fruto da árvore do conhecimento
e da inteligência, mas aqui “punida”
com a morte.
· Atendendo a que Aschenbach comete um “crime” e,
à medida que vai mergulhando mais nele, a epidemia se vai espalhando em Veneza,
esta obra também ecoa Rei Édipo (passado em Tebas), de Sófocles.
· Podemos também ver Aschenbach a como que ganhar “asas”, pois pela primeira vez na sua vida se está a libertar das amarras do seu
espírito austero e disciplinado. Ou seja, quando Aschenbach foge do seu lugar
para se libertar do labirinto interior (mas também exterior, pois Veneza é
também um labirinto de ruas) em que a sua vida corre o risco de se afundar,
ao nosso espírito vêm Dédalo e Ícaro: conforme sobrevive ou não, assim é o primeiro ou o
segundo. O caso de Aschenbach é o de Ícaro, pois ele usa as “asas” recém-adquiridas
para tentar alcançar o impossível. Resultado: elas desfazem-se, ele “cai” e
morre numa praia de Veneza.
· No barco que o leva a Veneza, a cena com o velho
que Aschenbach descobre no meio do grupo de jovens, disfarçado de jovem, faz
lembrar a Dança Macabra, isto é, a forma como era representada a peste negra na
cultura medieval:
· Esta obra também ecoa bastante uma história de vampiros (mal sucedida): um homem já para lá da meia idade (que nos é mostrado por Thomas Mann como representando valores antigos, não muito felizes nem muito luminosos). Que procura uma renovada vida num jovem virginalmente belo (é muito difícil esquecer o ator sueco Björn Johan Andrésen no papel de Tadzio). Que lhe nega o direito à sua vida (decidindo não avisar a família do risco que corre na cidade com a epidemia) por causa dos seus desejos, necessidades ou razões absolutamente egoístas. Com todo este drama a passar-se num ambiente de crescente peste. Depois, o fracasso em conseguir esse rejuvenescimento e a morte subsequente (esta pode ser uma causa de Thomas Mann ter feito morrer o seu personagem…). Ainda no âmbito desta história de vampiros, podemos talvez ver aqui uma metáfora da sociedade que explora os mais inocentes e os mais fracos, levando-os muitas vezes à morte (não esqueçamos que a novela sai em 1912, dois anos antes do início da Primeira Guerra Mundial onde, pela loucura de alguns políticos, irão ser sacrificadas biliões de pessoas e morrer milhões de homens).
· O mar, nesta obra, é talvez um dos símbolos mais evidentes (aliás, de muitas coisas: inconsciente, perspetiva de liberdade infinita, desejo de se perder, anseio pelo poder profundo, etc.). Mas aqui faço uma conexão com Afrodite/Vénus, deusa da beleza, do amor e da sexualidade [por acaso (?), o que Aschenbach sente em relação a Tadzio], que nasce da espuma do mar, tal como Tadzio em algumas cenas (e isto é claramente evidenciado no filme).
· Outro símbolo evidente é Tadzio. Ele surge-nos
(e acredito que também a Ascenbach, e não tanto por homossexualidade – que
também pode lá estar, mas não é determinante, isto é, não é o elemento da obra
que está aqui “à frente”) como símbolo de juventude e de beleza pelas quais
Aschenbach tanto anseia que o leva a deixar-se fascinar pelo rapaz até à quase loucura.
Uma viagem (literalmente!) de autodescoberta de Aschenbach (que, aliás, não tinha essa intenção, apenas queria descansar).
Ele parte de um mundo regrado por uma
disciplina interior fortíssima e claramente bem-sucedida no universo das letras.
Nesta obra, a personagem principal aproxima-se de um outro mundo onde a beleza
e a sexualidade (no seu sentido mais lato, ligado à vida e ao rejuvenescimento
perpétuo) se entrelaçam e reduzem a cinzas todo o edifício construído até aí
com tanto esforço e sacrifício.
Não é por acaso que a viagem (14) é decidida ser feita em
direção ao Sul de todos os excessos e de todos os desmandos. O Sul, no
imaginário dos povos do Norte, é um local indisciplinado, de libertação dos
impulsos mais desregrados em direção à aquisição de um prazer desenfreado (ver
visão de presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem: “não se pode gastar todo
o dinheiro em copos e mulheres e depois pedir ajuda”.)
Ou, numa perspetiva mais freudiana, o Sul como palco do inconsciente mais
profundo.
A questão é se Aschenbach se aproximou desse
autoconhecimento. Na verdade, acho que ficamos sem saber ao certo. Suspeito que
ele passou a conhecer a sua faceta mais reprimida e desconhecida para ele, mas
não alcançou com isso a sabedoria que só viria pela plena integração de todas
as facetas da sua personalidade (isto é, viu outras árvores que existiam sem
ele o saber na floresta do seu espírito, mas nunca chegou à visão global dessa
floresta).
Não esqueçamos que Gustav é um nome muito comum, talvez mais um símbolo usado por Thomas Mann para significar que Aschenbach pode ser qualquer um de nós. Somos, por isso, também nós, leitores, que podemos com este livro aceder a um melhor autoconhecimento.
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