quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Ian McEwan, A Balada de Adam Henry

 


Livro

Livro de informação e de alguma denúncia (incluindo do que as crianças sofrem, os maus tratos a crianças, como o ser humano pode ser horrível para crianças). Mas dá visão equilibrada dos juízes, nem muito boa, nem muito má.

Livro de dilemas:

  • possibilidade de julgar mal e de cometer erros. Mas alguém tem de o fazer senão é a lei da selva ou de Talião. Pode ser um sistema de justiça injusto, parcial e falível, mas qual a alternativa? Conferir Euménides de Ésquilo que se revela como uma espécie de Antigo e Novo Testamento: por um lado, a lei dos deuses antigos, com aplicação e punição cegas, rígidas e absolutas; por outro, os novos deuses que admitem falibilidade (julgamento fundado por Atena é realizado por coletivo) e que existem circunstâncias alheias à vontade do criminoso que condicionam a sua ação.
  • conciliar religião com o bem ou com o melhor bem ou com o menor mal ou ainda com o evitar o maior mal.
  • questão de até onde pode ir o poder dos pais em relação aos seus filhos.
  • ficar ou não com o marido, 
  • separar os gémeos, libertar as 2 miúdas ou deixá-las presas à religião, etc

Livro de subentendidos debaixo de muitos silêncios, a maior parte dos quais não são da plenitude, pelo que são destrutivos das relações. É o que acontece a Fiona, pessoa muito reservada e distante, que opta demasiadas vezes pelo silêncio que recusa ao outro o reconhecimento: o marido aguenta, persiste e sobrevive; Adam não o suporta e não sobrevive. 

Reflexão sobre o envelhecimento e a falta de filhos (esta formulação já implica lamentavelmente uma crítica), triste porque o sucedido ativa a comparação com Melanie e com o resto da família, que se torna num jogo antecipada e inevitavelmente perdido.

Livro sobre a felicidade e o bem-estar: tanto da juíza, como das crianças de quem ela deve cuidar primordialmente.

Mais um escritor a defender que a bondade é o ingrediente humano mais essencial, embora aqui Ian McEwan o faça por intermédio de uma personagem (o que, por isso, não implica necessariamente que essa seja a sua opinião pessoal), juntando-se a José Saramago, Somerset Maugham e outros.



Filme

No livro, apesar de na 3a pessoa, relato é íntimo e a nossa identificação com Fiona é muito maior do que no filme.

No filme, o ponto de vista deixa de ser só o da juíza, o olhar passa a ser exterior. Deixa de ser tão intimista. Ela surge mais agressiva e com muito menos silêncios. Tanto Jack como Adam são também mais agressivos (no livro este é retratado como mais infantil, ingénuo e entusiasta com a vida – porque é desta forma que Fiona o vê).

No livro, há muito mais subtilezas (por exemplo, ela não pergunta a Jack se houve sexo e isso é algo que nunca ficamos a saber). Ou seja, Ian McEwan, que é o argumentista do filme, faz muitas concessões para não afastar público.

Segundo Vergílio Ferreira, há duas limitações em Arte que a tornam mais pequena e limitada, se é que não a destroem mesmo: contar e fornecer imagens.

No livro, como é contado do ponto de vista interior da juíza, há poucas imagens e as que aparecem servem mais para percebermos a personagem do que para percebermos o real - não é por acaso que, apesar de ser verão, Ian McEwan faz a chuva ser omnipresente como um fundo de melancolia na vida que adivinhamos solitária de Fiona (repare-se como o sol aparece na memória do início da relação com Jack.

No filme, chega-se a explicitar por palavras coisas que no livro eram no máximo sugeridas: há um excesso de contar e de imagens que sufoca o espetador e não deixa aquela margem fundamental no prazer da arte que é tentarmos imaginar e pensar o que lá falta, o que não é dito, no fundo, o que foi silenciado ou foi simplesmente deixado no silêncio.

Se o filme não é uma banalidade é por causa da excelente interpretação de Emma Thompson que procura e consegue criar esse silêncio. Mas, como é a única, o filme acaba por falhar a obra em que se baseia. Embora Jason Watkins, no papel de Nigel Pauling, seja também muito bom.

O final do livro é mais desesperado e põe mais a nu a fragilidade do ser humano: Fiona nada pode fazer senão aceitar o amor do marido pq Adam já morreu há 1 mês.


Julian Barnes – O Papagaio de Flaubert

  Quetzal, 2019 Julian Barnes é o mais continental dos escritores anglo-saxónicos. Entre outras coisas, vê-se isso pelo fascínio que ele dem...