(5)
Qual idade de Aschenbach? Mais de 50 anos, é o que sabemos.
Mas, como em muitos outros aspetos, Thomas Mann deixa-nos numa semi-ignorância,
no vago.
Livro começa com a Primavera, símbolo de juventude, promessa, recomeço e renascimento. Assistiremos,
depois, a mudanças do clima para facetas mais pesadas, mais misteriosas, mais
sombrias, mais isoladoras, como se elas fossem refletindo o que vai acontecendo
a Aschenbach.
(8)
(…) dava-lhe um aspeto estrangeiro e longínquo. (…)
E começam aqui uma série de referências que, se não são
míticas, parecem-no. Neste caso, como se fosse um deus que viesse disfarçado à
Terra para comunicar a vontade dos deuses - sabemos quem é esse deus: é Hermes que, por acaso é o deus das viagens (e dos ladrões também, curiosamente). E que, depois, desaparece tão
misteriosamente como tinha aparecido: (14) Contudo, não foi possível
avistá-lo, dado que não se encontrava nem no lugar onde tinha estado, nem na
paragem seguinte, nem mesmo dentro do elétrico. Para voltar a aparecer no fim do livro, mas com uma função diferente.
(9)
(…), uma sedenta ânsia juvenil de distância – (…) Era um
desejo veemente de viajar, (…).
E essa vontade é-lhe transmitida de forma misteriosa e
tornada absolutamente clara no seu espírito. Curiosamente, isto acontece junto
de um cemitério real – cemitério norte – (6) e de um segundo
cemitério inabitado (7). A fim de reforçar a presença da Primavera e o
caráter misterioso de todo o processo que é posto em movimento no espírito de
Aschenbach.
(11)
O seu impulso tão repentino e tardio foi portanto
rapidamente reprimido e rectificado pela razão e autodisciplina que costumava
exercer desde os seus anos de juventude.
Ou, melhor dizendo, pelo hábito. Veja-se como, apesar de a razão intervir, esta não se liberta do impulso e acaba a
obedecer-lhe, acabando o próprio Aschenbach por ficar completamente convencido: (14) Viajar,
portanto, era isso que devia fazer. Mais uma noção de Freud: a razão, não
senhora, mas serva dos impulsos.
(13)
(…) Seria isto uma vingança do sentimento escravizado
que, abandonando-o e recusando-se a deixar evoluir a sua arte, lhe roubava todo
o prazer, todo o fascínio da forma e da expressão? (…) sentia-se insatisfeito e
parecia-lhe que faltavam à sua obra essas marcas de um humor ardente, resultado
da alegria de quem aprecia o mundo. (…)
Noção freudiana de que a repressão dos impulsos pode matar
uma vitalidade criadora, fonte de profundos prazeres.
(16)
(…) nunca chegara a conhecer a ociosidade e a
despreocupação próprias da juventude. (…)
Aqui, Thomas Mann anuncia-nos o que Aschenbach vai procurar
encontrar em Veneza. E encontrou, mas também encontrou a morte. Será, portanto,
esta uma história moral banal? Quando nos deixamos levar pelos nossos impulsos
mais profundos a destruição é o resultado natural? Ou simboliza-se aqui as
atitudes perante a vida, apolínea e dionisíaca, esta mais conducente à
destruição?
(26)
(…) a responsável destes traços fisionómicos, (…), era a
arte. (…) Ela deixa no rosto do seu servidor os vestígios de aventuras
imaginárias e espirituais (…).
A ideia errada de que “o rosto é o espelho da alma”; ou de
que, pelo rosto, podemos calcular a história da pessoa. Uma ideia muito comum
como resíduo da frenologia (uma pseudociência muito em voga no século XIX). Por
outro lado, talvez outro símbolo da ideia de que a arte e a vida estão
indissoluvelmente ligadas.
(27)
(…) resolveu permanecer numa ilha do Adriático (…) a
chuva e o ar pesado (…)
Começa o tempo a mudar da claridade primaveril para algo de
mais sombrio, a anunciar uma decisão funesta de Aschenbach.
(28)
(…) barco (...) velho, sombrio e sujo de fuligem. Num
cavernoso camarote (…) um homem de barba caprina (…)
Os sinais da decisão de ir para Veneza a prefigurarem o
desastre acumulam-se: até uma espécie de diabo lhe aparece a pela frente a
vender o bilhete para Veneza.
(30/1)
(…) um grupo de jovens (…) palravam, riam, gozavam (…) Um
deles (…) sobressaía em jovialidade (…) reparou com uma espécie de horror que
se tratava de um falso jovem. Era velho, não havia dúvida. (…)
Faz lembrar uma espécie de Dança Macabra, forma como era representada a peste negra na cultura medieval:
Portanto, mais um sinal, agora cada vez mais claro, do que
espera Aschenbach em Veneza.
(33)
(…) sempre esta cidade o tinha recebido em pleno
esplendor de luz. Mas céu e mar permaneceram pardacentos e plúmbeos, e por
vezes caía uma chuva nebulosa. (…)
Outro sinal de mau agoiro. São múltiplos a anunciar a
tragédia.
(37/8-43)
A gôndola toda negra e um remador sinistro que, depois de o
conduzir ao seu destino, desaparece, tal como o homem do início do romance que
o leva a decidir-se viajar. Mais uma referência mitológica indireta, aqui
Caronte, o barqueiro do Hades que, talvez não por acaso, é irmão de Hipnos (o
deus do sono) e Tanatos (o deus da morte). Curioso, porque a partir de uma
certa altura, Aschenbach parece perder a vontade própria e ser arrastado por
forças obscuras (à sua volta, no mar, no céu, em tudo), parecendo pensar,
sentir e atuar como se estivesse hipnotizado, sem ver os presságios da desgraça
que vão surgindo no seu caminho. Ideia que pode ser confirmada claramente em:
(41)
(…) Aschenbach – incapaz de alertar os seus pensamentos
para uma defesa ativa. (…)
(44)
Como a solidão cria a arte, mas também cria um estado de
espírito negativo:
(…) Porém cria também o erro, a desproporção, o absurdo e
o ilícito.
Aqui, Thomas Mann já nos está a avisar em que vai Aschenbach incorrer. Aschenbach que viveu toda a vida solitário, que nos surge neste livro sempre em permanente solidão. Por isso, quase logo a seguir a este passo no romance, Aschenbach deixa-se fascinar por Tadzio (46 e 47).
(56/7)
Amava o mar por razões profundas: pela necessidade de calma do artista laborioso que procura refúgio da exigente multiplicidade da sua imaginação no seio das coisas simples e grandiosas; e também por uma procura oposta à sua atividade e talvez por isso mesmo tão sedutora - inorgânico, desmedido, eterno, do nada.
(57)
Do amor ao mar passa para o amor a Tadzio.
É quando ele
reconhece que ama o mar (…) também por uma procura oposta à sua atividade e
talvez por isso mesmo tão sedutora – do inorgânico, desmedido, eterno, do nada.
(…) que Tadzio passa à sua frente, interrompendo aparentemente estes
sentimentos, mas, no fundo, o que acontece é que eles não são interrompidos,
antes continuam, agora com um objeto diferente.
(62)
(…) Uma benevolência paternal – sentimento próprio
daquele que com sacrifício cria a beleza no seu interior perante aquele que
possui a beleza – preenchia e emocionava o seu coração.
Não percebo muito bem este sentido de “afeição paternal”… Aschenbach teve uma filha, agora casada, mas não um filho – porém, duvido que seja a isto que Thomas Mann se queira referir.
Talvez o autor nos queira antes mostrar que o que atrai
Aschenbach não é um desejo carnal, mas antes um fascínio pela beleza que ele
perseguiu durante toda a vida (aos seus olhos, sem um sucesso satisfatório) pela
razão e pela disciplina do espírito. Só que aqui a natureza (com os seus
impulsos cegos) ofereceu-a graciosamente a alguém que não fez nada por isso. E apenas
o facto de ele a poder apreciar livremente atenua este conflito.
No entanto, parece-me haver aqui um erro lógico de
perspetiva: Tadzio não aprecia a sua própria beleza (aliás, ninguém o faz
inteiramente). Por outras palavras, só pode apreciá-la (e só pode criá-la) quem
está de fora, quem no fundo se não acha belo. Essa será talvez uma das
tragédias e felicidades simultâneas e específicas de se ser humano.
(76 e 77)
(…) Aschenbach não amava o prazer. Sempre e onde quer que
estivesse a divertir-se, a descansar ou a gozar uns dias agradáveis, era
impelido por uma inquietante e obstinada força de regresso à enorme fadiga, à
tarefa sagrada e sóbria do seu dia-a-dia. Só este lugar o enfeitiçava,
descontraía a sua vontade, o fazia feliz. (…)
Thomas Mann relata aqui a transformação de Aschenbach, de
estóico em epicurista, de apolínio a dionisíaco.
(86)
Aschenbach escreve, porém sabe que o que serviu de inspiração
para o seu trabalho não é muito recomendável:
(…) É, de certo modo, bom que o mundo conheça apenas a
obra bela e não as suas origens nem as condições em que foi criada, pois o
conhecimento das fontes, das quais brotou a inspiração do poeta, iria confundir
e assustar o público e, desse modo, anular o efeito da sua excelsitude. (…)
Algo a que Quino alude humoristicamente neste cartoon:
(92)
Não há nada mais estranho e mais melindroso do que a
relação entre pessoas que apenas se conhecem de vista, que diariamente e a toda
a hora se encontram, se observam e que, por questões sociais ou mero capricho,
são obrigadas a manter a aparência de mútua indiferença. (…) Pois o homem ama e
venera o seu próximo, quando não pode julgá-lo; o desejo é uma criação do
conhecimento insuficiente.
Quando passamos a conhecer melhor o/a outro/a, seja pela experiência,
ou seja pela idade, ficamos a saber que se trata ou tratou de uma ilusão. Muitas
vezes, então, o desejo fenece.
(94)
(…) Estava mais belo do que é possível dizer e, mais uma
vez, Aschenbach verificou com dor que a palavra apenas pode louvar a beleza e
nunca reproduzi-la.
Como com tudo o que é superiormente humano, claro, não só a beleza. Mas há que admitir que
existem alguns escritores que conseguem boas aproximações. Por exemplo, Eça de
Queirós a descrever a beleza da Natureza em A Cidade e as Serras.
(95)
(…) sussurrou a eterna fórmula do desejo, neste caso
impossível, absurda, abjecta,
ridícula e, no entanto, sagrada, venerável até: «Amo-te!»
Aqui, aquilo que poderia ser interpretado como uma admiração
estética passou a ter uma tonalidade mais apaixonada. Aschenbach reconhece
finalmente a paixão que o assola.
Gostava de saber qual a palavra em alemão que Thomas Mann
usou para caracterizar a natureza desta paixão - desejo em português, longing
em inglês -, para poder avaliar com clareza qual o grau de sensualidade na
natureza deste desejo. Penso que Thomas Mann deixou isso propositadamente
ambíguo: por exemplo, sabemos que uma parte carnal da paixão é o desejo de
possuir o outro e isso nunca é referido aqui. A verdade é que Aschenbach
sabe que isso seria impossível; no entanto, para o final, o seu espírito abre-se às esperanças mais absurdas, as quais não chegam a ser especificadas por Thomas Mann.
(98)
(…) Os naturais de outras nações não sabiam visivelmente
de nada, não suspeitavam de nada, ainda não estavam preocupados. «É preciso
manter silêncio!», pensou Aschenbach (…)
Enfim, revela-se aqui a verdadeira natureza dos seus
sentimentos: paixão, mas não amor. Porquê? Porque ele escolhe não avisar a
família de Tadzio (escolhe, portanto, não o salvar da morte) da epidemia que
assola Veneza.
(99)
(…) Mas simultaneamente o seu coração enchia-se de
contentamento pela aventura em que o mundo exterior ia envolver-se. Pois – tal como
no crime – a ordem instituída não é, de modo algum, conveniente à paixão,
qualquer afrouxamento da estrutura burguesa, qualquer confusão e aflição do
mundo era-lhe forçosamente bem vinda, pois nestas circunstâncias podia esperar
alcançar algum proveito. (…)
Mais, ele deseja a epidemia e o caos que se lhe associa,
pois aí ele pode ter a esperança de conseguir obter algo. Trata-se na realidade
de uma paixão egoísta, com tudo o que degradante pode ter esse egoísmo.
(118)
(…) cólera asiática (…)
Um piscar de olho ao futuro que estamos a viver agora…
(122)
(…) Ponderava um acto purificador e sério. (…)
A associação entre epidemia e crime, de que é preciso
purificar-se, tem ressonâncias míticas, nomeadamente com o Rei Édipo de
Sófocles.
(124-127)
(…) Mulheres (…) as suas cabeças atiradas para trás, (…)
O sonho com as bacantes…
… que representa o cair das últimas barreiras morais:
Depois deste sonho acordou enervado, transtornado,
impotente nas mãos do demónio. Já não temia os olhares observadores das
pessoas; era-lhe indiferente que lhes causasse suspeitas. (…)
(130 e 131)
Aschenbach transforma-se, às mãos do barbeiro, numa versão mais digna e contida do velho vestido de jovem que ele tanto desprezara há apenas umas poucas semanas atrás, no barco que o levou a Veneza.
Há quem diga que ele se transformou naquele velho. Eu ponho a hipótese exatamente contrária: ele não se iguala a esse velho. Porquê? Por uma evidência que nos é revelada por Thomas Mann. O velho apresenta uma jovialidade que leva a que Aschenbach o confunda, num primeiro momento, com um jovem igual aos outros. Mas no próprio Aschenbach não há nenhum comportamento de aberta ou ativa jovialidade que o faça poder ser confundido com um jovem alegre e bonacheirão.
Então o que pretende Thomas Mann? Na minha opinião, procura destacar em Aschenbach uma dignidade que o eleva acima do vulgar, por contraste nítido com aquele outro personagem muito mais indecoroso.
(134 e 135)
Aschenbach imagina-se Sócrates a dirigir-se a Fedro. Começa
por elogiar a beleza como o caminho que o homem deve seguir. Depois duvida que
esse caminho chegue à sabedoria. Mas, a seguir renegamos o conhecimento
desintegrador, e volta a elogiar a beleza que, no entanto, pode levar ao
abismo. Thomas Mann, pelo solilóquio de Aschenbach, é ambíguo sobre se a beleza
é uma coisa boa ou má, apesar de considerar que ser poeta é mau. Note-se que
Platão, no seu livro República, considerava com desconfiança a
autoridade que os poetas tinham quando se tratava da educação dos mais jovens.
(140)
(…) No entanto, tinha a sensação de que o pálido e doce
psicagogo lá longe lhe sorria, lhe acenava com a mão; (…)
Mais uma referência mitológica, agora ao guia das almas no reino dos mortos para o Hades, na Antiguidade grega - Aschenbach volta, então, a encontrar Hermes.
É com esta última fantasia que Aschenbach desliza para a sua própria morte.
E assim termina o livro.
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