sexta-feira, 28 de maio de 2021

Thomas Mann, A Morte em Veneza - Livro e (possíveis) interrogações para o nosso tempo


A solidão orgulhosa, autoimposta, mesmo autodisciplinada, pode levar à nossa destruição moral e psíquica, senão mesmo física?

 

Um amor impossível e irracional (por isso, Thomas Mann talvez tenha escolhido como objeto da paixão um rapaz, e não uma rapariga, o que contribui para acentuar estes dois traços) pode dar aquele mesmo fatídico resultado?

 

Deixando-nos guiar por Freud, uma excessiva repressão dos nossos impulsos para o prazer pode dar origem à sua irrupção violenta, descontrolada ou distorcida? 

Note-se que a repressão é um mecanismo de defesa em relação à dor emocional, expulsando da consciência desejos, pensamentos ou experiências que perturbam excessivamente o espírito da pessoa. No entanto, podem ficar resíduos da parte afetiva destas componentes; ou seja, o evento fica registado no nosso sistema nervoso, só não fica acessível ao consciente. Portanto, escapa muito mais facilmente ao nosso controlo.

 

Ainda pelo olhar de Freud, Thomas Mann desejará mostrar como o autoconhecimento é impossível, bem como o perfeito autodomínio?

Hoje sabemos que Freud tinha razão: nunca chegamos a conhecermo-nos completamente, nunca nos conseguimos dominar completamente. Aliás, conta-se que Freud dizia de si próprio ser o terceiro grande revolucionário da história da humanidade: o primeiro tinha sido Copérnico, ao demonstrar que o Homem não era o senhor do Universo; o segundo tinha sido Darwin, ao demonstrar que o Homem não era o senhor da Terra; o terceiro tinha sido ele por demonstrar que o homem nem sequer de si próprio era senhor.


Será que Thomas Mann nos sugere que a paixão pela beleza pode ser um caminho destruidor?

Eu acho que sim. Repare-se: não sou contra a beleza, nem contra tentarmos encontrar e criar beleza na nossa vida. Mas apenas na condição de ela não ser de maneira nenhuma escolhida como o único valor, ou o mais elevado, para a nossa vida. Porque aí pode tornar-se destruidora:

·       Começa logo porque divide as pessoas e o mundo entre os belos e os feios, com desprezo e nojo em relação a estes.

·        Segundo, porque habitualmente, ao reconhecermos o belo, sentimos que ele pertence a um outro mundo cuja entrada nos é negada para sempre.

·       Terceiro, porque na nossa época (e a novela de Thomas Mann reforça-o) é fácil associar a beleza à juventude; se já não somos jovens, podemos repetir os passos de Aschenbach (e quantas pessoas vemos fazerem-no, por exemplo, nas revistas da socialite, em que mães se mostra mais “arrojadamente jovens” do que as suas filhas!).

·        A beleza, e o amor por ela, pode ser apenas consequência de uma cegueira, fruto de um conhecimento incompleto ou mesmo errado, o que pode levar à desgraça (ver as revistas anteriormente citadas, onde se sucedem as zangas e as separações entre pessoas que parecem ter tudo para serem as mais felizes do mundo…)

·        E mais razões haverão…

 

Thomas Mann expõe as relações que podem existir entre quem o escritor é como pessoa e o trabalho que publica.

A relação é complexa, porque o que é uma pessoa? Aquilo que ela mostra ao mundo? Não. Aquilo que os outros são capazes de entrever e que ela própria não distingue? Muitas vezes, não. Na verdade, aquilo que a pessoa “é” resulta em algo de tão fluido, de tão difícil de congelar no tempo, que se torna muito difícil de ser observado e definido.

Vergílio Ferreira distinguia os dois, a pessoa e o artista. Dizia que havia um fosso entre o que mostrava ao mundo (e que ele não achava particularmente agradável) e o que ele produzia na sua arte da escrita. E a diferença residia no facto de, quando escrevia, este ato era realizado em solidão e num estado praticamente de transe (ao qual ele, aliás, desejava incessantemente voltar, como se de uma droga se tratasse). Muito longe, portanto, do seu funcionamento normal e em convivência com outros.

Mas Thomas Mann não faz assim uma distinção tão clara. Até porque ele próprio esteve em Veneza e sentiu-se atraído por um jovem de grandebeleza que ali estava. Ou seja, nele próprio baralham-se o escritor, a pessoa e a obra. De formas que ainda hoje, aliás, suscitam amplos debates entre os estudiosos da sua obra.

 

Finalmente, será que Thomas Mann se apercebeu dos primeiros sinais daquilo que se tornou, hoje em dia, numa obsessão e numa indústria florescente, isto é, o desejo patético da juventude eterna?

É certo que, agora, se trata de um patético um pouco menos grosseiro por virtude da cirurgia estética, dos tratamentos estéticos mais refinados e de uma moda mais livre no vestir. Porém, continua a ser uma obediência servil à deusa Hebe, um símbolo antigo do acesso dos mortais à juventude eterna das divindades.

Por outro lado, ao fazer Aschenbach morrer depois de se tentar travestir em jovem, talvez Thomas Mann esteja a sugerir uma certa grandeza na coragem de assumirmos os nossos desejos (mesmo um tão patético como o de ser outra vez jovem), desde que seja ao serviço de um amor pela beleza mais pura. Só que se é verdade que Thomas Mann poupa o ridículo a Aschenbach, fazendo-o morrer, nós, na vida real, não temos provavelmente essa saída digna, restando-nos apenas o grotesco e o ridículo...

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