Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s/d
Eis mais uma obra que, relida agora
numa idade mais sénior, se me revelou uma experiência muito inteligente e muito
agradável, o que é raro de encontrar, seja em que época que o livro tenha sido escrito – ele foi publicado em 1925, ou seja, tem praticamente 100 anos! Nota-se? Na verdade,
muito pouco. Em termos de factos reais, um pouco, claro; em termos de humanidade, não.
Este livro tem tudo o que é preciso
para ser um clássico. Nomeadamente, claro, por ser uma história muitíssimo bem
contada. Depois, por permitir várias releituras que, uma a uma, não deixam de
nos surpreender (eu vou na 4ª leitura e parece-me sempre que tenho entre mãos um
livro novo).
Mas também por permitir múltiplas
interpretações e modos de olhar. Por exemplo, é uma obra que mostra bem o papel
importantíssimo que as circunstâncias têm sobre as pessoas, desde a sua
infância até à idade adulta.
Que mostra como a inteligência e
a sensibilidade não passam por estudos ou saberes aprofundados; ou seja, de
como uma inteligência intuitiva pode estar perfeitamente à altura de uma
inteligência mais cognitiva ou académica.
Que mostra como a paixão é algo não só de mental como também de corpo; e que o nosso comportamento resulta de uma íntima interação dos dois. Aliás, o neurocientista António Damásio poderia usar este livro para ilustrar as suas conclusões. veja-se, nomeadamente, o que ele diz numa recente conferência online que ele deu, O Mundo de Amanhã — Sentir, Saber e Resistir: A Neurobiologia em Tempos de Peste:
Corpo e sistema nervoso estão interligados e têm ações recíprocas. Aquilo que se passa na mente, através do nosso sistema nervoso, responde àquilo que se está a passar no corpo. E o que está no corpo está a projetar-se naquilo que é a mente. O problema da mente e do corpo está a dissolver-se, daqui a uns anos não vai ter sentido.
O Véu Pintado é também uma obra que mostra como em todos os
seres humanos, independentemente da sua nacionalidade, existe sempre um fundo
de humanidade, com todas as suas falhas e glórias, em que as qualidades e os
defeitos convivem nem sempre pacificamente.
Que mostra que, quando se centra
o amor nas emoções mais apaixonadas, o resultado final é a maior parte das
vezes desastroso. Mais especificamente, acabamos por nos ligar a alguém que nos
faz mal e desprezamos aquele que nos poderia fazer realmente felizes.
Que mostra como as experiências
mais marcantes para o ser humano são o amor e a morte; e que são muitas as
formas como podemos integrar essas experiências nas nossas vidas.
Etc., etc.
Na época em que foi escrito O Véu
Pintado (1925), ainda se associava uma mulher inteligente e bondosa
(Somerset Maugham refere várias vezes ao longo do livro que Dorothy tem ambas
estas características, bem como um «rosto simples e bondoso» ou um «rosto
bondoso, trabalhado pelo tempo») a uma certa ausência de beleza.
Que digo eu? Na verdade, desde
sempre se fez isso. Como todos sabemos, os contos de fadas apresentam as
mulheres boas como bonitas e as más como feias. A única exceção é a rainha má
da Branca de Neve; mas, mesmo aí, ninguém diz que ela é bonita, mas apenas
que é bela (repare-se que há grandes diferenças entre uma mulher que é bonita, que é bela ou que é formosa).
Lembro-me de quando, adolescente,
conheci pela primeira vez uma rapariga muito feia mesmo. Passado algum tempo de
convívio, tive a enorme surpresa de achar que ela era realmente bonita. Porquê?
Porque era uma das pessoas mais excelentes que eu tinha tido a oportunidade de
conhecer até essa altura. Mas toda a cultura da época me levava a acreditar que
quem era feio não podia ser nada de especial (“o rosto é o espelho da alma”,
diziam-nos muito, quer as pessoas à nossa volta, quer a generalidade dos
livros).
Mas, mais uma vez, que digo eu? Ainda
hoje em dia, na maior parte dos filmes e séries que são feitos nos E.U.A. (os
europeus, aqui, tendem a ser um bocadinho mais sábios), esta associação entre
beleza e excelência de qualidades ainda é mantida.
Ora, Somerset Maugham começa a divergir
destes preconceitos (e de outros, para algum escândalo na época, nomeadamente
quando decide fazer uma crítica social feroz, como vemos acontecer neste livro). Por
exemplo, já descreve um homem bonito e bem sucedido [Charles] como
moralmente corrupto. Dorothy revela excelentes qualidades. Waddington é feio e,
com as suas fraquezas, é muito perspicaz e bastante generoso.
Quanto a Kitty, Maugham descreve-a,
claramente manipulada pela educação que recebeu, como inicialmente fútil e
pouco inteligente (mas não propriamente uma pessoa maldosa). E apenas
inicialmente. Porque assistimos nela, pela mão magistral de Maugham, a um
processo interessantíssimo, doloroso e verosímil de recuperação de humanidade e
de inteligência (no sentido mais nobre deste termo).
E o final do romance, não acabando
mal para a heroína, na verdade, não é tão bom para ela como desejaríamos.
Aliás, eu dispensaria as últimas palavras de Kitty porque são de uma banalidade
demasiado teatral para o meu gosto (Maugham foi também um dramaturgo de sucesso
e, aqui, neste final, assistimos a uma certa “contaminação” infeliz).
(141)
(…) chegava a reconhecer-lhe [a Walter]
uma grandeza estranha e sem atrativos. Era curioso que não pudesse amá-lo e que
ainda amasse um homem [Charles] cuja
falta de valor via agora tão claramente. (…) Apenas ela não vira os seus
méritos [de Walter]. Porquê? Porque a amava e ela não o amava. Havia no
coração humano algo que fazia uma mulher desprezar um homem porque ele a amava?
(…) ele era diferente com as mulheres: apesar da sua timidez, sentia-se nele uma
delicada bondade.
(147)
(…) Era estranho que, sendo ele [Walter]
tão simpático quanto honesto, digno de confiança e talentoso, ela nunca
tivesse podido amá-lo. (…)
Também me tenho interrogado sobre
isto tanta e tanta vez. Mais genericamente, porque é que as pessoas boas não só
são menos amadas, mas chegam a ser mais desprezadas que as outras?
Bom, uma primeira resposta é que
não sabemos se de facto isto é assim. Seria preciso uma investigação com
caráter científico para tirar o assunto realmente a limpo.
No entanto, é uma ideia que está há
muito tempo estabelecida: para uma mulher, um homem bom é um homem chato. Uma amiga
minha, há muitos anos atrás, queixava-se de só ter relações amorosas complicadas
e abusivas; e acrescentava, no entanto, que só a atraíam os homens que lhe davam
“pica”.
E vice-versa: uma mulher boa é uma chata. Daí o fascínio das “mulheres fatais” (repare-se que não é por acaso que aparece aqui este termo “fatal”)!
Porquê? Eu também não sei responder
com a segurança da verdade, mas posso dar uma explicação pessoal que será,
admito-o, muito difícil de provar.
Penso que a bondade está associada
na mente das pessoas, embora erradamente, a uma certa fraqueza de caráter.
Portanto, nos primeiros tempos de um encontro entre duas pessoas, momentos que
estabelecem o padrão do que vai ser a relação no futuro (quer consolidando-a,
quer destruindo-a por se revelar como uma desilusão), se um dos parceiros se
mostrar bom, ou seja, associado a fraco, (e quando alguém gosta mesmo de outro
procura ser bom para ele) suscitará no outro aborrecimento; ou, na melhor das
hipóteses, apenas alguma surpresa.
Ora, evolutivamente, as
probabilidades de sobrevivência pessoal aumentam consideravelmente se nos
associarmos a pessoas fortes, ou vistas como fortes pelos outros. Daí nos
desinteressarmos quase sempre por aqueles que surgem aos nossos olhos como
potencialmente fracos.
Por isso, Kitty não se apaixona por
um socialmente insignificante Walter, nem quando este se revela em toda a sua
bondade. Mas sente-se irresistivelmente atraída por Charles que é alguém que já
é poderoso, que promete sê-lo ainda mais no futuro, e que desde o princípio revela que é
o mais forte e independente na relação.
Sim, eu sei que há aqui nesta
explicação um determinismo que nos revolta. Eu também sinto esse mal-estar. Mas a
verdade é que temos uma genética e um corpo que nos condicionam imenso, muito
para além do que desejamos ou aspiramos.
Felizmente, temos um cérebro que
tem a propriedade extraordinária de estar consciente de si próprio e que, por
isso, fica com alguma margem de manobra para exercer algum grau de liberdade nas
escolhas que faz durante a sua vida. Se soubermos como estes processos inconscientes
se desenrolam em nós, ficamos mais preparados para não nos deixarmos arrastar
por eles indefesos.
(166)
[Madre Superiora:] (…) A beleza também
é um dom de Deus, um dos mais raros e preciosos, e devemos ser gratos se temos
a sorte de possuí-lo, e, se não o temos, gratos porque outros o possuam para
nosso prazer.
Não sei se é um dom assim tão precioso possuir beleza. Conheci mulheres muito bonitas que me disseram que, por vezes, a sua
beleza era uma maldição. Porque era como ter muito dinheiro, ficava sempre a
dúvida se o amor que eles sentiam por elas era genuíno ou se era apenas uma
forma de adquirir algo que podiam exibir aos outros.
Agora, quanto à parte final da
afirmação, aprovo-a absolutamente e procuro viver de acordo com ela no meu dia-a-dia.
(192)
[Waddington:] (…) Alguns
procuram o Caminho no ópio e outros em Deus, alguns no whisky e outros no amor.
Tudo é o mesmo Caminho e não leva a parte alguma.
Não, possivelmente todos estes
caminhos não levam a parte alguma. Porém, oferecem diferenças muito
significativas enquanto são percorridos e aí está todo um mundo a separá-los
entre si.
(218)
[Kitty:] – E se não há vida eterna?
Pense no que isso representa, se a morte for realmente o fim de todas as
coisas. [As freiras] Terão abandonado tudo por nada. Terão sido ludibriadas.
Nada mais que tolas.
Waddington refletiu um instante.
- Não sei. Não sei se importa
que seja ou não uma ilusão aquilo a que elas aspiram. As suas vidas são belas
em si. Às vezes, penso que a única coisa que torna possível viver sem
repugnância neste mundo é a beleza que, de quando em quando, os homens criam do
caos. Os quadros que pintam, as músicas que compõem, os livros que escrevem, as
vidas que levam. E em tudo isto o que encerra maior beleza é uma vida bela.
Essa é que é a perfeita obra de arte.
(…)
[Waddington:] – Cada membro da
orquestra toca o seu instrumento, e que sabe ele das complicadas harmonias que
se desenrolam no ar indiferente? Só lhe interessa a sua pequenina parte. No
entanto, sabe que a sinfonia é bela, e continua a ser bela mesmo que não haja
ninguém para ouvi-la, e ele sente-se contente por tocar a sua parte.
Umas das partes mais belas e com
mais significado para mim neste romance.
(228)
[Madre Superiora:] – Lembre-se
que cumprir o seu dever não é nada, pois isso é-lhe exigido e não é mais
meritório que lavar as mãos quando sujas. A única coisa que importa é o amor ao
dever. Quando o amor e o dever se confundem, a graça é-lhe concedida e gozará
uma felicidade que ultrapassa toda a compreensão.
Esta é a segunda parte deste
romance mais bela e com mais significado para mim.
No todo, sem dúvida nenhuma, um excelente romance!
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