terça-feira, 13 de abril de 2021

Somerset Maugham, O Véu Pintado


 Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s/d
 

Eis mais uma obra que, relida agora numa idade mais sénior, se me revelou uma experiência muito inteligente e muito agradável, o que é raro de encontrar, seja em que época que o livro tenha sido escrito – ele foi publicado em 1925, ou seja, tem praticamente 100 anos! Nota-se? Na verdade, muito pouco. Em termos de factos reais, um pouco, claro; em termos de humanidade, não.

 

Este livro tem tudo o que é preciso para ser um clássico. Nomeadamente, claro, por ser uma história muitíssimo bem contada. Depois, por permitir várias releituras que, uma a uma, não deixam de nos surpreender (eu vou na 4ª leitura e parece-me sempre que tenho entre mãos um livro novo).

 

Mas também por permitir múltiplas interpretações e modos de olhar. Por exemplo, é uma obra que mostra bem o papel importantíssimo que as circunstâncias têm sobre as pessoas, desde a sua infância até à idade adulta.

Que mostra como a inteligência e a sensibilidade não passam por estudos ou saberes aprofundados; ou seja, de como uma inteligência intuitiva pode estar perfeitamente à altura de uma inteligência mais cognitiva ou académica.

Que mostra como a paixão é algo não só de mental como também de corpo; e que o nosso comportamento resulta de uma íntima interação dos dois. Aliás, o neurocientista António Damásio poderia usar este livro para ilustrar as suas conclusões. veja-se, nomeadamente, o que ele diz numa recente conferência online que ele deu, O Mundo de Amanhã — Sentir, Saber e Resistir: A Neurobiologia em Tempos de Peste:

Corpo e sistema nervoso estão interligados e têm ações recíprocas. Aquilo que se passa na mente, através do nosso sistema nervoso, responde àquilo que se está a passar no corpo. E o que está no corpo está a projetar-se naquilo que é a mente. O problema da mente e do corpo está a dissolver-se, daqui a uns anos não vai ter sentido.

O Véu Pintado é também uma obra que mostra como em todos os seres humanos, independentemente da sua nacionalidade, existe sempre um fundo de humanidade, com todas as suas falhas e glórias, em que as qualidades e os defeitos convivem nem sempre pacificamente.

Que mostra que, quando se centra o amor nas emoções mais apaixonadas, o resultado final é a maior parte das vezes desastroso. Mais especificamente, acabamos por nos ligar a alguém que nos faz mal e desprezamos aquele que nos poderia fazer realmente felizes.

Que mostra como as experiências mais marcantes para o ser humano são o amor e a morte; e que são muitas as formas como podemos integrar essas experiências nas nossas vidas.

Etc., etc.

 

Na época em que foi escrito O Véu Pintado (1925), ainda se associava uma mulher inteligente e bondosa (Somerset Maugham refere várias vezes ao longo do livro que Dorothy tem ambas estas características, bem como um «rosto simples e bondoso» ou um «rosto bondoso, trabalhado pelo tempo») a uma certa ausência de beleza.

Que digo eu? Na verdade, desde sempre se fez isso. Como todos sabemos, os contos de fadas apresentam as mulheres boas como bonitas e as más como feias. A única exceção é a rainha má da Branca de Neve; mas, mesmo aí, ninguém diz que ela é bonita, mas apenas que é bela (repare-se que há grandes diferenças entre uma mulher que é bonita, que é bela ou que é formosa).

Lembro-me de quando, adolescente, conheci pela primeira vez uma rapariga muito feia mesmo. Passado algum tempo de convívio, tive a enorme surpresa de achar que ela era realmente bonita. Porquê? Porque era uma das pessoas mais excelentes que eu tinha tido a oportunidade de conhecer até essa altura. Mas toda a cultura da época me levava a acreditar que quem era feio não podia ser nada de especial (“o rosto é o espelho da alma”, diziam-nos muito, quer as pessoas à nossa volta, quer a generalidade dos livros).

Mas, mais uma vez, que digo eu? Ainda hoje em dia, na maior parte dos filmes e séries que são feitos nos E.U.A. (os europeus, aqui, tendem a ser um bocadinho mais sábios), esta associação entre beleza e excelência de qualidades ainda é mantida.

Ora, Somerset Maugham começa a divergir destes preconceitos (e de outros, para algum escândalo na época, nomeadamente quando decide fazer uma crítica social feroz, como vemos acontecer neste livro). Por exemplo, já descreve um homem bonito e bem sucedido [Charles] como moralmente corrupto. Dorothy revela excelentes qualidades. Waddington é feio e, com as suas fraquezas, é muito perspicaz e bastante generoso.

Quanto a Kitty, Maugham descreve-a, claramente manipulada pela educação que recebeu, como inicialmente fútil e pouco inteligente (mas não propriamente uma pessoa maldosa). E apenas inicialmente. Porque assistimos nela, pela mão magistral de Maugham, a um processo interessantíssimo, doloroso e verosímil de recuperação de humanidade e de inteligência (no sentido mais nobre deste termo).

E o final do romance, não acabando mal para a heroína, na verdade, não é tão bom para ela como desejaríamos. Aliás, eu dispensaria as últimas palavras de Kitty porque são de uma banalidade demasiado teatral para o meu gosto (Maugham foi também um dramaturgo de sucesso e, aqui, neste final, assistimos a uma certa “contaminação” infeliz).

 

(141)

(…) chegava a reconhecer-lhe [a Walter] uma grandeza estranha e sem atrativos. Era curioso que não pudesse amá-lo e que ainda amasse um homem [Charles] cuja falta de valor via agora tão claramente. (…) Apenas ela não vira os seus méritos [de Walter]. Porquê? Porque a amava e ela não o amava. Havia no coração humano algo que fazia uma mulher desprezar um homem porque ele a amava? (…) ele era diferente com as mulheres: apesar da sua timidez, sentia-se nele uma delicada bondade.

(147)

(…) Era estranho que, sendo ele [Walter] tão simpático quanto honesto, digno de confiança e talentoso, ela nunca tivesse podido amá-lo. (…)

Também me tenho interrogado sobre isto tanta e tanta vez. Mais genericamente, porque é que as pessoas boas não só são menos amadas, mas chegam a ser mais desprezadas que as outras?

Bom, uma primeira resposta é que não sabemos se de facto isto é assim. Seria preciso uma investigação com caráter científico para tirar o assunto realmente a limpo.

No entanto, é uma ideia que está há muito tempo estabelecida: para uma mulher, um homem bom é um homem chato. Uma amiga minha, há muitos anos atrás, queixava-se de só ter relações amorosas complicadas e abusivas; e acrescentava, no entanto, que só a atraíam os homens que lhe davam “pica”.

E vice-versa: uma mulher boa é uma chata. Daí o fascínio das “mulheres fatais” (repare-se que não é por acaso que aparece aqui este termo “fatal”)!

Porquê? Eu também não sei responder com a segurança da verdade, mas posso dar uma explicação pessoal que será, admito-o, muito difícil de provar.

Penso que a bondade está associada na mente das pessoas, embora erradamente, a uma certa fraqueza de caráter. Portanto, nos primeiros tempos de um encontro entre duas pessoas, momentos que estabelecem o padrão do que vai ser a relação no futuro (quer consolidando-a, quer destruindo-a por se revelar como uma desilusão), se um dos parceiros se mostrar bom, ou seja, associado a fraco, (e quando alguém gosta mesmo de outro procura ser bom para ele) suscitará no outro aborrecimento; ou, na melhor das hipóteses, apenas alguma surpresa.

Ora, evolutivamente, as probabilidades de sobrevivência pessoal aumentam consideravelmente se nos associarmos a pessoas fortes, ou vistas como fortes pelos outros. Daí nos desinteressarmos quase sempre por aqueles que surgem aos nossos olhos como potencialmente fracos.

Por isso, Kitty não se apaixona por um socialmente insignificante Walter, nem quando este se revela em toda a sua bondade. Mas sente-se irresistivelmente atraída por Charles que é alguém que já é poderoso, que promete sê-lo ainda mais no futuro, e que desde o princípio revela que é o mais forte e independente na relação.

Sim, eu sei que há aqui nesta explicação um determinismo que nos revolta. Eu também sinto esse mal-estar. Mas a verdade é que temos uma genética e um corpo que nos condicionam imenso, muito para além do que desejamos ou aspiramos.

Felizmente, temos um cérebro que tem a propriedade extraordinária de estar consciente de si próprio e que, por isso, fica com alguma margem de manobra para exercer algum grau de liberdade nas escolhas que faz durante a sua vida. Se soubermos como estes processos inconscientes se desenrolam em nós, ficamos mais preparados para não nos deixarmos arrastar por eles indefesos.

 

(166)

[Madre Superiora:] (…) A beleza também é um dom de Deus, um dos mais raros e preciosos, e devemos ser gratos se temos a sorte de possuí-lo, e, se não o temos, gratos porque outros o possuam para nosso prazer.

Não sei se é um dom assim tão precioso possuir beleza. Conheci mulheres muito bonitas que me disseram que, por vezes, a sua beleza era uma maldição. Porque era como ter muito dinheiro, ficava sempre a dúvida se o amor que eles sentiam por elas era genuíno ou se era apenas uma forma de adquirir algo que podiam exibir aos outros.

Agora, quanto à parte final da afirmação, aprovo-a absolutamente e procuro viver de acordo com ela no meu dia-a-dia.

 

(192)

[Waddington:] (…) Alguns procuram o Caminho no ópio e outros em Deus, alguns no whisky e outros no amor. Tudo é o mesmo Caminho e não leva a parte alguma.

Não, possivelmente todos estes caminhos não levam a parte alguma. Porém, oferecem diferenças muito significativas enquanto são percorridos e aí está todo um mundo a separá-los entre si.

 

(218)

[Kitty:] – E se não há vida eterna? Pense no que isso representa, se a morte for realmente o fim de todas as coisas. [As freiras] Terão abandonado tudo por nada. Terão sido ludibriadas. Nada mais que tolas.

Waddington refletiu um instante.

- Não sei. Não sei se importa que seja ou não uma ilusão aquilo a que elas aspiram. As suas vidas são belas em si. Às vezes, penso que a única coisa que torna possível viver sem repugnância neste mundo é a beleza que, de quando em quando, os homens criam do caos. Os quadros que pintam, as músicas que compõem, os livros que escrevem, as vidas que levam. E em tudo isto o que encerra maior beleza é uma vida bela. Essa é que é a perfeita obra de arte.

(…)

[Waddington:] – Cada membro da orquestra toca o seu instrumento, e que sabe ele das complicadas harmonias que se desenrolam no ar indiferente? Só lhe interessa a sua pequenina parte. No entanto, sabe que a sinfonia é bela, e continua a ser bela mesmo que não haja ninguém para ouvi-la, e ele sente-se contente por tocar a sua parte.

Umas das partes mais belas e com mais significado para mim neste romance.

 

(228)

[Madre Superiora:] – Lembre-se que cumprir o seu dever não é nada, pois isso é-lhe exigido e não é mais meritório que lavar as mãos quando sujas. A única coisa que importa é o amor ao dever. Quando o amor e o dever se confundem, a graça é-lhe concedida e gozará uma felicidade que ultrapassa toda a compreensão.

Esta é a segunda parte deste romance mais bela e com mais significado para mim.

 

No todo, sem dúvida nenhuma, um excelente romance!


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