sexta-feira, 30 de abril de 2021

Ramalho Ortigão, Banhos de Caldas e Águas Minerais

 

Quetzal Editores, 2019


Este livro parece ser um roteiro destinado a quem nunca frequentou estes sítios ou a quem já os frequenta, mas quer saber mais pormenores. E Ramalho mostra que não se poupou a esforços: viajou muito, recorreu com abundância a relatórios de análises clínicas e a livros de defensores das qualidades terapêuticas das águas.

Um primeiro aspeto curioso deste livro reside nalgumas considerações de saúde muito pertinentes e que fazem todo o sentido ainda hoje. Por exemplo:

(23)

Portanto, a primeira coisa que importa fazer ao ir para as Caldas é consultar um bom médico.

 

(23)

(…) Combater, ainda que o mais cientificamente possível, todos os pequenos sintomas irregulares do organismo é tirar à natureza os seus meios de prover à nossa conservação. Em muitos casos, em que a febre é um meio de cura empregado pela natureza, combater a febre é matar o doente. (…)

Esta ideia já é compreendida na medicina física, embora não aceite pelas pessoas: talvez por isso, ainda é brutal a quantidade de medicamentos que o doente exige do médico e que este muitas vezes prescreve às dúzias. Veja-se o livro Less Medicine, More Health, escrito por um médico, professor de medicina e investigador, H. Gilbert Welch.

 

(23)

Igual perigo em atacar os sintomas ostensivos em vez da verdadeira causa do mal em muitas outras enfermidades e principalmente nas doenças do coração.

Só uma interrogação: porque é que ainda hoje não se segue isto na doença mental? Porque é que na doença mental tratamos os sintomas? Por exemplo, se a pessoa se sente deprimida, dá-se-lhe um antidepressivo. Eis um excelente exemplo de como as ideias científicas fazem muito lentamente o seu caminho na sociedade.

 

(24)

(…) a [intervenção - está no original e “caiu” nesta edição] terapêutica compromete o sucesso da cura, sendo o método expectante da escola de Viena o que mais convém à vida do enfermo.

Deu-me vontade de rir a expressão usada: “método expectante”. Vontade de rir pela formulação, pois a ideia que ela expressa parece-me corretíssima (ver livro de H. Gilbert Welch acima referido).

 

Ramalho Ortigão até diz como o médico deve fazer em relação à doença física:

(24)

A obrigação de um médico moderno é socorrer-se de todos os meios de investigação que hoje lhe prestam as ciências positivas, conhecer inteiramente, até onde elas estão descobertas pela fisiologia, as funções de cada órgão, penetrar pela percussão, pela auscultação, pelo exame das secreções, pelo movimento das artérias, pela temperatura exata do corpo, nas profundidades do organismo humano, até descobrir através dos variados e complexos sintomas da doença a causa latente que a determina.

 

(38)

(…); assim o fingirmos que temos saúde é meio auxílio dado à saúde para que ela se estabeleça.

Pensamento positivo em 1875? Sem dúvida. Teremos evoluído muito, entretanto? Se calhar, não.

 

(80/1)

(…), o talento tenderá a abastardar-se sempre que não se inspirar no espírito nacional que o gerou.

É em tal sentido que nos parece duplamente saudável que os que viajam no verão em Portugal, os que percorrem as suas terras de caldas no interior das nossas províncias, se banhem na genuína tradição popular, o específico reconstituinte da adoentada alma portuguesa.

Como se vê, neste livro, Ramalho Ortigão também vai defendendo a ideia, comum após a industrialização, de que o campo é o território por excelência da regeneração do corpo e da alma portuguesa. Uma ideia muito defendida na altura ou à volta dessa época (lembremo-nos de A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós). Esta ideia que vai continuando sempre a aflorar, aqui e ali, em diferentes épocas.

E, apesar de não haver praticamente nenhuma referência à religião, todo o livro assenta sobre uma ideia profundamente religiosa e cristã: a água como purificadora do corpo e da alma, tanto por fora como por dentro, até no próprio título – Banhos de Caldas e Águas Minerais. Eu suspeito que, se não tivéssemos este mito por detrás, este livro perderia muito da sua sedução emocional.

 

(93)

(…) A felicidade consiste em acharmos na vida um destino e em o cumprirmos sempre com dedicação, e quando for preciso – com sacrifício. Desde que a nossa existência se consagra a um fim útil – não digo a um fim brilhante – a soma de felicidade que o mundo pode repartir a cada homem basta para nossa satisfação. Byron, o altivo chefe da escola dos desdenhosos e dos enfastiados, compreendeu afinal que era o sacrifício por uma ideia elevada o que faltava à sua existência e acabou por curar o seu spleen indo bater-se pela liberdade dos gregos. Procura também tu. Ermelinda; e não deixarás de readquirir o gosto da vida, encontrando um ente vivo, uma ideia, um princípio, uma obra a que consagres essa existência, que deixará de te pesar logo que deixe de te ser inútil.

Uma receita para a felicidade que as modernas teorias de psicoterapia e da Psicologia Positiva subscreveriam sem qualquer problema: viver de acordo com um valor mais elevado a que o espírito possa aspirar.

 

Águas que ainda hoje se bebem: Pedras Salgadas (111), Vidago (119), Vimeiro (165), (com 9,5 de pH) Monchique (191)

 

(141 e seguintes)

Sobre as Caldas da Rainha, talvez o capítulo mais interessante até ao momento, Ramalho descreve com ironia, ou até mesmo escárnio, tipos e episódios típicos presentes habitualmente nestas paragens.

 

(197)

Referência breve ao caíque (não uma «lancha») com que marinheiros de Olhão foram ao Brasil dar notícia da derrota dos franceses.

 

(201 até final)

«A Volta»

Um retrato (porque não é uma história, é mais uma sucessão de imagens) muito interessante e divertido, sob a forma de enumeração de quadros muito visuais, que acompanham o movimento da memória.

Destoa positivamente do resto do livro (que mais parece um relatório que lhe poderia ter sido encomendado).

 

(205)

(…) Há talvez um marido de mau génio que ralha com a sua mulher, o que é o espetáculo mais desolador e mais antipático em que se pode cevar a melancolia e o tédio. (…)

 Isto não mudou...


(205)

A teoria do prazer é esta: que é falso e nulo todo aquele que nós não pagamos com uma quantidade proporcional de nobre e bem entendido sacrifício.

A teoria de que o verdadeiro prazer é o que se obtém à custa de sacrifício. O problema aqui é esta palavra “sacrifício”. É que ela está muito associada ao sofrimento e à infelicidade. Eu preferiria a palavra “esforço”. Mas pode ser que, na altura, fosse este um dos significados dela.

Complementarmente a esta ideia, Vergílio Ferreira dizia a 19 de Junho de 1979, no Conta-Corrente 2, p. 274:

Hoje, reunião preparatória de exames. Chacinaram-me com provas de Português Complementar e Latim. Fiquei fulo e, todavia, agradecido: não sou ainda um traste sem préstimo. Mas é sabido: tudo quanto envolve valorização, envolve necessariamente pancada. Não se é homem onde se goza, é-se só onde se apanha. Já o disse não sei onde. Resultado – uma semana ou duas de castigo à banca, para ser da Humanidade. Mas é a lei de Deus desde Adão. Cá estou para aguentar a Bíblia e as chatices que vêm nela.

 

(208)

À leitora (…), que diante da sua fotografia tirada na volta das caldas, tenhamos de exclamar todos profundamente comovidos:

- Era uma linha. É agora um novelo.

Na altura, gordura era formosura?

 

Quais as minhas impressões sobre este livro (deixarei para o fim o que nele mais me desgostou)? Ambíguas, sem dúvida. Ao longo de toda a sua leitura.

Às vezes pensava que Ramalho Ortigão estava a encorajar-me a ir às termas. Depois, vinha com aquelas descrições e números chatos de relatório de contas, e começava eu a suspeitar que ele estava no fundo a gozar comigo.

Depois, falava com entusiasmo, fosse da viagem para as termas, fosse sobre as próprias termas, e lá concluía eu de novo que me estava a encorajar. Depois, punha-se a zombar das pessoas que por lá andavam, ou seja, punha-se a gozar comigo mais uma vez (porque ele sabia que eu iria assumir que aquilo é com os outros, que não pode ser comigo… mas, muito provavelmente, é comigo mesmo!).

Depois, a parte mais literária é a que descreve A Volta, e lá senti que me estava a criar a nostalgia de lá ir, descrevendo poeticamente essa volta. Assim, acabei o livro momentaneamente pacificado com este último capítulo. Só que, quando voltei a pensar no seu todo, fiquei de novo perplexo.

Se tivesse de apostar, eu apostaria na ironia. Isto é, penso que em todo o livro Ramalho Ortigão está a usar de uma profunda e muito subtil ironia com o leitor, uma espécie de “private joke”. Aliás, logo no início com aquela gravura (e a respetiva legenda - «Coitadinhas das que ficaram na cidade… Coitadinhas!»), ele pode ter dado de facto a entender que não é disparatado pensar que o verdadeiro rio subterrâneo do livro é esta ironia.


Nota: Lamentavelmente, esta e todas as outras gravuras que faziam parte da edição original foram apagadas desta edição da Quetzal. Como se vê pelo meu raciocínio acima, elas fazem tão parte da obra como as palavras. Eliminá-las, sem um aviso nem nada, parece-me ser algo próximo de um crime à memória de Ramalho Ortigão. Para quem quiser consultar a edição original, pode recorrer à digitalização feita pelo Google que a disponibiliza gratuitamente aqui.

-

Do que gostei menos neste livro foi algo que o próprio Francisco José Viegas refere no seu prefácio, a saber, a falta de «apontamento social» (8). Por outras palavras, a crítica socioeconómica está praticamente ausente deste livro. Tirando uma breve referência às crianças:

(77)

(…) Crianças barrigudas, em camisa, cobertas de uma imundície sistemática, saem ao caminho e trotam ao vosso lado ao longo da ladeira, pedindo esmola, salmodiando padres-nossos e encomendando-se às almas do purgatório.

 

Pior ainda, é a forma insensível como fala da lavadeira (206 e 207). Pior porque ele olhou, viu e reparou (epígrafe ao Ensaio sobre a Cegueira: «Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.»). Mas não o fez com o coração.

O relato deste episódio faz-me lembrar a falta de compaixão, e até mesmo de empatia, que leva tanta gente a contar histórias de grandes lições aprendidas com o sofrimento de outros, sem se aperceberem que nada fizeram para o minorar, vendo apenas o próprio benefício que daí tiraram.

 

Há quem diga que não devemos julgar as obras literárias com os valores do presente.

Sim, concordo, desde que nessa época não haja quem pense de forma alternativa. Mas isso há sempre, quando tratamos de seres humanos, veja-se a citação a seguir do historiador Manuel Loff (o sublinhado é meu):

[Marcelo Rebelo de Sousa] persiste num dos mais velhos erros metodológicos da leitura reacionária do passado: o de inventar um tempo em que os valores dominantes seriam tão consensuais que nenhuns outros teriam sido enunciados. Em todas as épocas os valores dominantes tiveram alternativas; todas as ordens tiveram resistência; todas as verdades do tempo tiveram quem as denunciasse. (Manuel Loff, Uma história “sem álibis nem omissões”, Público, 27 de Abril de 2021, p. 8)

E quanto ao pensamento alternativo publicado de forma organizada? Aqui é que eu penso que poderá haver épocas em que não existiam essas alternativas organizadas e publicitadas.

Porém, nenhuma destas situações se aplica a Ramalho Ortigão, escritor e jornalista. Este livro foi publicado pela primeira vez em 1875. Nesta data, já tinha sete livros publicados e imensas páginas de crítica que vieram a ser conhecidas sob o nome da sua compilação, As Farpas. Não estamos a falar de um ignorante, nem de um inculto, nem de um conformista.

Ora, o pensamento socialista começa a ser formulado e desenvolvido no séc. XVIII. Em 1875 Karl Marx está a apenas oito anos da sua morte, tendo já publicado o primeiro volume de O Capital em 1867. O Manifesto Comunista tinha sido publicado em 1848. Além disso, o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) foi fundado precisamente em 1875.

Por outro lado, o pensamento filosófico anarquista começa com Pierre-Joseph Proudhon, em 1840, na sua obra O Que É a Propriedade?.

Portanto, Ramalho Ortigão tinha conhecimento de muitas alternativas de pensamento à sua disposição. Escolheu esta e não o fez a partir da ignorância. No que se refere à sensibilidade social para com os mais pobres, posso, portanto, julgá-lo com os olhos da minha época.

 

Há também quem diga que Ramalho Ortigão era um apoiante do regime e, por isso, não o criticava.

Ora, a Wikipedia diz o seguinte:

(...) Subintitulando-se "O País e a Sociedade Portuguesa", os folhetins mensais d'As Farpas constituem um painel jornalístico da sociedade portuguesa nos anos posteriores a 1870, erguido com bonomia, sentido agudo das mazelas sociais, um alto propósito consciencializador, e uma linguagem límpida e variada. (…) (Moisés, Massaud. A Língua Portuguesa através dos textos ,São Paulo, Editora Cultrix, 1ª Edição- 1968, pág.339.)

Em face disto, o argumento de conformismo face ao regime parece que também não se aplica aqui. Mas mesmo que se aplicasse, então ele deveria omitir essas situações de miséria que poderiam representar uma crítica a esse regime. Ora, ele não o fez. Ele escolheu falar delas sem qualquer olhar crítico à sociedade do seu tempo. Quando ele já tinha conhecimento de muito pensamento crítico social.

Em suma, caiu-me muito mal esta insensibilidade social à miséria, no que respeita às crianças e às mulheres.



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