domingo, 17 de outubro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 34.

 


34. Se tudo está interligado, é difícil pensar que este desastre mundial não tenha a ver com a nossa maneira de encarar a realidade, pretendendo ser senhores absolutos da própria vida e de tudo o que existe. Não quero dizer que se trate de uma espécie de castigo divino. Nem seria suficiente afirmar que o dano causado à natureza acaba por se cobrar dos nossos atropelos. É a própria realidade que geme e se rebela… Vem à mente o conhecido verso do poeta Virgílio evocando as lágrimas das coisas, das vicissitudes da história.

(Cf. Eneida I, 462: «Sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt» – São lágrimas das coisas, as peripécias dos mortais confrangem a alma.)

Mas se muitos dos nossos políticos até para o sofrimento dos animais, visível e audível, são cegos e surdos, quanto mais para a natureza em geral!

Veja-se o que se passa com as touradas e a defesa que eles fazem do direito ao divertimento com o sofrimento sangrento dos touros. Ou da defesa do direito de caçar seres vivos com o mesmo fim, isto é, sem ser para o sustento e sobrevivência.

Tratam-se de manifestações claras de como achamos que somos donos de tudo, sem qualquer respeito pela vida, como se tudo fossem objetos mecânicos postos sob o nosso domínio para dispormos deles à nossa vontade e segundo os nossos apetites mais bárbaros.

Eu defendo o respeito pela vida de todos os seres vivos. Mas, argumentam muitos, não temos de matar para sobreviver? Por enquanto, temos. O que não temos é o direito de fazer dessa matança (e muito menos da tortura de um animal) um modo de divertimento.

Esta mentalidade de que tudo existe para satisfazer os nossos apetites é algo de cujas consequências trágicas larguíssimas faixas da população mundial já estão a sofrer (por exemplo, com as secas, com a exaustão dos solos, com o extermínio da diversidade da flora e da fauna, etc., resultando tudo num sofrimento extremo que não se consegue debelar).

O que as pessoas se esquecem (e o Papa nos recorda aqui) é que, mais tarde ou mais cedo, a natureza vai exigir de nós uma inapelável prestação de contas dos nossos abusos. E todos estes políticos e demais pessoas famosas de hoje irão ser inevitavelmente objeto do opróbrio das gerações vindouras.

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Para quem estiver interessado em aprofundar os seus conhecimentos científicos, repito, conhecimentos científicos sobre o sofrimento animal, recomendo o informativo e acessível livro "Touro como Nós - A Ciência da Vida e o Espetáculo da Dor", do neurobiólogo português, Luís M. Vicente (2021, Editora Pergaminho).

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