sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 35.


 

35. Contudo rapidamente esquecemos as lições da história, «mestra da vida». Passada a crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e em novas formas de autoproteção egoísta. No fim, oxalá já não existam «os outros», mas apenas um «nós». Oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos capazes de aprender. Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de respiradores, em parte como resultado de sistemas de saúde que foram sendo desmantelados ano após ano. Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a Humanidade renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos.»

Não me parece. O ser humano em grupo não muda, por exemplo, com a facilidade com que esquece (para sua grande desgraça, por vezes). E, assim, vamos vendo como não têm surgido grandes mudanças políticas no nosso dia-a-dia, no sentido de uma vida melhor.

Pelo menos, não no que se refere ao nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS) que, a cada mês que passa, vai piorando e piorando – a nossa própria experiência e as histórias que vamos ouvindo, de familiares e amigos, de doentes e de profissionais do SNS, abrem-nos janelas de horror que gostaríamos de pensar que não acontecessem na nossa civilização (ela, tão arrogante das suas conquistas e, no entanto, tão cada vez mais assustadora e vazia de valores humanos!)

É tristemente óbvio que, para todos aqueles que ganham fortunas com a saúde, o desmantelamento do SNS constitui uma prioridade, a fim de terem clientes e de satisfazerem a sua ganância. Ora, a Covid-19 representou, para essas forças sinistras, uma oportunidade de ouro para afundar ainda mais o SNS. Com a colaboração hipócrita e desavergonhada dos governantes e demais políticos, claro, porque sem a ajuda destes eles não o conseguiriam.

Portanto, diz o Papa: “oxalá”? Duvido que o próprio Papa acredite nisto. Mesmo considerando o que ele escreveu no original italiano desta encíclica: “Voglia il Cielo che (…)” Porque se o “Cielo” quisesse, já há muito teria parado com estes horrores e outros muito piores do que estes. E não quis. Por isso, eles continuam aí. Sempre com as fronteiras fechadas aos mais desamparados.

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