segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 31.

 

31. Neste mundo que corre sem um rumo comum, respira-se uma atmosfera em que «a distância entre a obsessão pelo próprio bem-estar e a felicidade da humanidade partilhada parece aumentar: até fazer pensar que entre o indivíduo e a comunidade humana já esteja em curso um cisma. (...) Porque uma coisa é sentir-se obrigado a viver juntos, outra é apreciar a riqueza e a beleza das sementes de vida em comum que devem ser procuradas e cultivadas em conjunto». A tecnologia regista progressos contínuos, mas «como seria bom se, ao aumento das inovações científicas e tecnológicas, correspondesse também uma equidade e uma inclusão social cada vez maior! Como seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor!»

Preocuparmo-nos com o nosso bem-estar e o dos nossos familiares não tem mal em si mesmo (desde que não seja uma obsessão que nos leve a prejudicar os outros e a infringir leis). Até porque as condições de vida atuais não são particularmente boas para a nossa saúde física e mental, em especial na maioria das empresas e organizações. Além de que, como toda a gente sabe por experiência própria, nós somos melhores para os outros (nomeadamente, estamos mais disponíveis e compreensivos para as suas necessidades) se estivermos mais descansados e menos tensos, isto é, no fundo, se tivermos algum cuidado com o nosso bem-estar.

O ambiente toxicamente competitivo e consumista das sociedades atuais vai fazendo desaparecer o prazer e o repouso que deveria resultar normalmente da vivência em comunidade.

Talvez por isso, também em mim esse “cisma” existe em algum grau. Isto é, tenho consciência de viver em comunidade, sei o muito que devo a esta comunidade (educação, saúde, proteção, etc.), mas reconheço que me sinto cada vez mais distante dela. Distante em relação aos seus valores, à sua sensibilidade e à sua postura em relação a todos os seres vivos mais fracos e desamparados, nomeadamente crianças, idosos, pobres, refugiados e animais.

Eu reconheço o quanto isto é mau e tento combater esta tendência. Mas é difícil, principalmente porque as pessoas inspiram-me cada vez mais medo, e o medo em mim alimenta o fechamento, a defesa, a fuga e o desalento (e nem sequer televisão tenho, caso contrário ainda estaria muito pior).

Por outras palavras, está a ser-me muito difícil apreciar a riqueza e a beleza das sementes de vida em comum que devem ser procuradas e cultivadas em conjunto». Esta aproximação à humanidade tem sido, desde há alguns anos, tema da minha meditação diária. Mas, depois, quando chego ao contacto real com esta humanidade, surge por vezes algo que acaba por me chocar. E isto é o suficiente para o efeito da meditação desaparecer.

A propósito disto, lembro aqui as palavras do starets Zósimas, em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky:

— É nem mais nem menos – retorquiu aquele - o que me contava, já há muito tempo, certo médico meu amigo, homem de meia-idade e bastante inteligente. Exprimia-se sem rebuço, como a senhora, e com ar triste, embora gracejando. «Amo», dizia ele, «a humanidade, mas, com grande surpresa minha, quanto mais amo a humanidade em geral, menos o faço em relação às pessoas individualmente consideradas. (…)» (Círculo de Leitores, 1981, p. 52)

Razões para isto também acontecer comigo? Primeiro, já senti na pele como as pessoas individualmente e os políticos no poder são capazes de espalhar à sua volta muito mal e sofrimento (muitas vezes escudando-se por detrás de argumentos tecno económicos). Segundo, sei a minha idade e tenho uma crescente consciência do desamparo que é consequência de uma sociedade que deprecia os mais velhos. Terceiro, porque tive de aprender muito cedo que as pessoas em geral não são de confiar (nem me lembro de alguma vez na minha infância ter confiado em quem quer que seja; ainda tentei Deus, mas não deu em nada).

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