domingo, 4 de julho de 2021

Michael Cunningham, As Horas

 


Gradiva


Vários paralelismos se podem observar entre esta obra e Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf:

  • Há uma doença que é posta em foco. Em Mrs. Dalloway é aquilo que, mais tarde, se veio a chamar PTSD – Perturbação de Stress Pós-Traumático. Em As Horas, é a SIDA. Em ambas as obras se refere a ineficácia dos tratamentos para estas doenças (mas pior em Mrs. Dalloway, onde nem sequer se reconhece a doença).
  • No título, que retoma uma primeira ideia de Virginia Woolf.
  • Nas personagens:
    • Clarissa: nome, festa, comprar flores, ouve um estrondo na florista e suspeita de aparecimento de uma pessoa famosa, beijo a Vanessa (Sally em Mrs. Dalloway) e uma certa singeleza ou ligeireza, comparada com outras personagens.
    • A filha Julia ligada a Mary Krull, como Elisabeth a Miss Kilman em Mrs. Dalloway. mas em que a filha não está presa a elas como elas estão. E a aversão de ambas a ambas as Clarissas e que é retribuída por estas.
    • Sally cônjuge de Clarissa e Sally que foi apaixonada de Mrs. Dalloway.
  • Estação do ano é a mesma: Junho
  • Etc., etc.

Conclusão: Não será um pouco demais? Acaba por ser divertido, mas eu talvez preferisse uma maior subtileza, um maior apelo à inteligência e à sensibilidade do leitor.

Veja-se um exemplo de como este apelo é bem satisfeito quando Michel Cunningham retrata subtilmente o interdito e a reprovação social a formas não tradicionais de sexualidade.

 

Quais as qualidades do livro minhas preferidas?

 

É uma história bem contada, sem recurso a técnicas óbvias de escrita criativa.

 

O autor usa de uma poeticidade discreta, mas intensa, em grande parte do texto, sem recorrer a floreados de linguagem; ou seja, fá-lo com muita arte.

Um momento alto é a cena de suicídio de Richard: uma cena poética e pungente, sobre algo de sombrio em oposição a um ambiente cheio de transparência e de claridade que não é só de luz física, mas também da luz que emana do diálogo.

 

O autor mostra como nós, seres humanos, não somos uma linha reta, mas vamos vivendo oscilando sempre em tudo, tanto no dia-a-dia, como ao longo de décadas: na segurança pessoal, no amor, na visão ou postura perante a vida.

Em particular, oscilamos no que toca à saúde mental. O livro mostra-nos como é imprecisa a fronteira da perturbação mental. Porque todos temos momentos de irrealidade, de desejos ou impulsos incontroláveis e um pouco selvagens. Na verdade, vemos com este livro que existe apenas um verniz de civilização e de regras sociais que estamos muitas vezes à beira de quebrar. E que, portanto, quebramos várias vezes.

 

Este livro fala também (principalmente as partes Mrs. Woolf e Mrs. Brown) do sufoco que pode ser a vida comum. Embora, na parte Mrs. Dalloway se proponha que ali também estará a sua redenção.

No livro apresentam-se três respostas para este sufoco: quem aguenta, procura sobreviver pela escrita (há muitas reflexões sobre o processo da escrita), tenta uma fuga e, ao não conseguir, recorre ao suicídio (Virginia Woolf); quem aguenta, mas tem a coragem de mudar radicalmente de vida (Mrs. Brown); e quem não só aguentou, mas até se adaptou bem, agarrando-se a algumas transgressões a fim de manter o respeito próprio (Clarissa e Sally).

 

Curiosa uma possível linha narrativa desta obra: Virginia Woolf cria Mrs. Dalloway, que influencia Laura Brown, que afeta profundamente Richard, que tem um impacto significativo em Clarissa, a quem chama de Mrs. Dalloway, fechando assim o círculo. Com a homossexualidade e a SIDA sempre presentes em segundo plano.

Um pouco como nos diz a epígrafe escolhida por Michael Cunningham:

Não tenho tempo para descrever os meus planos. Tinha muitas coisas a dizer a respeito de As Horas e da minha descoberta, de como escavei belas cavernas atrás das minhas personagens; penso que isso dá exatamente o que quero - humanidade, humor, profundidade. A ideia é que as cavernas se ligarão entre si e cada uma vem à luz do dia no momento presente. VIRGINIA WOOLF, no seu diário, 30 de Agosto de 1923

 

Uma interrogação final. A única que teve coragem de se libertar, Laura Brown, procurando minimizar na medida do possível para a época a autodestruição, acaba por ser a personagem mais castigada com a morte trágica dos próximos: marido morto de cancro, a filha de atropelamento e o filho de suicídio. Bem como com uma certa falta de simpatia dos outros. Haverá alguma moral aqui que eu não esteja a discernir bem? Talvez a mensagem de que há sempre um preço a pagar, normalmente muito elevado, por se querer conquistar a liberdade.

 

Sra. Dalloway

(…) Clarissa acredita que, hoje em dia, se avaliam as pessoas, primeiro que tudo, pela sua bondade e capacidade de dedicação. Cansamo-nos, às vezes, do espírito e do intelecto, da pequena exibição de talento de toda a gente. (…)

Já vi vários artigos, endossando esta opinião de que «KindnessIs the New Cool». É prometedor, desde que isso não nos afaste daquilo por que é preciso lutar.

 

Sra. Woolf

Não comer é um vício, uma espécie de droga: com o estômago vazio sente-se ativa e limpa, com a cabeça desanuviada, pronta para uma luta. (…)

Este é um dos atrativos perigosos das perturbações alimentares de privação de comida.

 

(…) Esta manhã talvez consiga penetrar no obscurecimento, nos canos entupidos, chegar ao ouro. Sente isso dentro dela, um quase indescritível segundo eu, ou melhor, um eu paralelo e mais puro. Se fosse religiosa, chamar-lhe-ia alma. É mais do que a soma do seu intelecto e das suas emoções, mais do que a soma das suas experiências, embora corra como veias de metal brilhante por todas essas três coisas. É uma faculdade interior que reconhece os mistérios estimuladores do mundo porque é feita da mesma substância, e, quando a sorte a bafeja muito, ela consegue escrever diretamente através dessa faculdade. Escrever em semelhante estado é a mais profunda satisfação que conhece, mas o seu acesso a ele vem e vai sem avisar. Pode pegar na caneta e segui-la com a mão enquanto ela se move pelo papel; pode pegar na caneta e descobrir que é meramente ela própria, uma mulher de roupão segurando uma caneta, receosa e hesitante, apenas moderadamente apta, sem nenhuma ideia acerca de por onde começar ou do que escrever. Pega na caneta. (…)

Vergílio Ferreira também fala disto várias vezes, destes dois eus, o comum da vida do dia-a-dia, e o que escreve a obra de arte. Veja-se, por exemplo:

1985 (Conta-Corrente 5)

«26-Agosto (segunda). A facilidade com que me distraio de ser eu. (…) Não se é autor das próprias obras mas um outro que por acaso tem o nosso nome. É esse um outro que vive apenas por momentos e se desvanece logo depois ao menor motivo de distracção. Distraio-me tanto. (…) Enquanto escrevo romance, sobretudo romance, todo o meu ser se concentra intensamente nesse acto de o escrever. E tão intenso é isso, que não aguento senão excepcionalmente três ou quatro horas. Depois tudo em mim se deslaça em frouxidão e esquecimento. E logo volto a ser o quotidiano que sou, o vulgar e inferior e ridículo que sou. (…) É-se então um outro de nós quando a arte nos visita, algo estranho toma posse de nós como os antigos supunham. Há um demónio que vive em liberdade e encontra em nós de vez em quando uma porta por onde entra. Entra e sai e ficamos de novo libertos, na posse estrita do estrito de nós. Que é que em nós é nós num caso e noutro? Por estranha megalomania penso ser eu quando afinal o não sou. «Isto é maior do que eu», diz mais ou menos Pessoa a propósito de versos seus. E com efeito. Fora dos versos, ele era apenas o alcoólico curtido a aguardente, o desleixado, coalhado de nódoas na gabardina.»

 

Sra. Brown

(…) Ela, Laura, gosta de imaginar (esse é um dos seus segredos mais bem guardados) que também tem um laivo, um lampejo de brilho, apenas um lampejo, embora saiba que a maioria das pessoas provavelmente anda por aí com semelhantes e esperançadas suspeitas fechadas como pequenos punhos dentro delas e nunca reveladas. (…)

Sabê-lo é, de alguma forma, cultivá-lo e, deste modo, manter a esperança.

 

Sra. Dalloway

(…) alguém [Richard] que, embora não estando realmente insano, perdeu a tal ponto o controlo das coisas, se aproximou tanto do abandono por exaustão dos comuns cuidados pessoais uma higiene simples, alimentação regular – que a diferença entre insanidade e a perda da esperança é difícil de precisar. (…)

Mais uma referência à linha fina e muitas vezes impercetível que existe entre loucura e normalidade.

 

Sra. Woolf

(…) Gostaria de escrever todo o dia, de encher trinta páginas em lugar de três, mas passadas as primeiras horas alguma coisa vacila dentro dela, e receia, se insistir para além dos seus limites, prejudicar todo o projeto. O deixe transviar-se para um reino de incoerência do qual talvez nunca possa regressar. Ao mesmo tempo, detesta passar qualquer das suas horas límpidas a fazer outra coisa que não seja escrever. (…)

Decide, apreensiva, que por hoje chega. Há sempre estas dúvidas. Deve tentar prosseguir durante mais uma hora? Está a ser sensata ou preguiçosa? Sensata, afirma a si mesma, e quase acredita. Escreveu as suas duzentas e cinquenta palavras, mais ou menos. Contenta-te com isso. Confia que amanhã estarás aqui de novo, reconhecível por ti própria.

Veja-se a citação acima de Vergílio Ferreira.

 

Leonard pode ser autocrático, pode ser injusto, mas é o seu companheiro e zelador, e ela não o atraiçoará, muito menos por causa do atraente e imaturo Ralph ou de Marjorie, com a sua voz de periquito.

A lealdade sem condições, uma das marcas de um grande amor, acho eu.

 

(…) Mas, em vez disso, fechara-se logo no seu escritório, temendo que a escrita do dia (esse impulso frágil, esse ovo equilibrado numa colher) pudesse evaporar-se perante um dos maus humores de Nelly. (…)

Veja-se a citação de Vergílio Ferreira, mais uma vez.

 

Sra. Dalloway

(…) Não tem inveja de Sally, não se trata de nada tão mesquinho, mas, ao ser ignorada por Oliver Sr. Ives, não pode deixar de sentir o declínio do interesse do mundo por ela e, mais intensamente ainda, o fato embaraçoso de que isso tem importância para ela, mesmo agora, enquanto prepara uma festa para um homem que pode ser um grande artista e talvez não sobreviva ao ano que corre. Sou insignificante, pensa, infinitamente insignificante. E no entanto... Não ser convidada parece de algum modo uma pequena demonstração da capacidade do mundo de passar bem sem ela. Ser ignorada por Oliver St. Ives (que se calhar não a excluiu conscientemente, não pensou apenas nela) assemelha-se à morte, do mesmo modo que um improvisado diorama infantil de um acontecimento histórico se assemelha ao próprio acontecimento. É uma coisa pequena, brilhante, sem valor, feita de feltro e cola. Mas mesmo assim. Não é fracasso, diz a si mesma. Não é fracasso estares nesta casa, na tua pele, a cortar as hastes de flores. Não é fracasso, mas exige mais de ti, todo o esforço exige; estar simplesmente presente e grata, ser feliz (terrível palavra). As pessoas já não te olham na rua, ou, se olham, não é com idéias sexuais de natureza nenhuma. Não és convidada para almoçar por Oliver Sr. Ives. (…)

Curioso como este género de pensamentos é capaz de "atacar" toda a gente: alguém banal como eu; alguém verdadeiramente famoso (conheço alguns casos que se queixam amargamente, mas que não vou expor aqui); uma personagem de Vergílio Ferreira como Alberto Soares em Aparição, cap. 9, p. 101:

(…) Sinto que, pouco a pouco, a minha pessoa perde interesse para esta gente - para Ana. A minha presença não é «exemplar» senão de vez em quando. Depois é uma presença neutra, desvendada, nivelada. (…)

 

Sra. Brown

(…) Queria ter feito um bolo que banisse a mágoa, mesmo que apenas por momentos. Queria ter criado uma coisa maravilhosa, uma coisa que fosse maravilhosa mesmo para aqueles que não a amam. Não conseguiu. Desejaria não se importar com isso. Algo, pensa, está errado nela.

Na verdade, nunca conseguimos, exceto talvez alguns privilegiados. Mas o nunca desistir de tentar faz de nós humanos maiores do que pedras.

 

Sra. Dalloway

Sally e Clarissa não são parcimoniosas com os seus sentimentos e isso, claro, é bom, mas agora Sally sente necessidade de ir para casa e dizer mais alguma coisa, alguma coisa que ultrapasse não só o terno e reconfortante, mas vá também além da própria paixão. O que ela quer dizer relaciona-se com todas as pessoas que morreram, relaciona-se com os seus próprios sentimentos de enorme ventura e iminente e devastadora perda. Se acontecer alguma coisa a Clarissa, ela, Sally, continuará a viver, mas sobreviver, exatamente, não sobreviverá. Não ficará bem. O que quer dizer relaciona-se não só com felicidade, mas também com medo, o medo pungente, constante, que é a outra metade da felicidade. Pode suportar a idéia da sua própria morte, mas não a da morte de Clarissa. Este amor delas, com a sua domesticidade tranquilizadora e os seus silêncios confortáveis, com a sua estabilidade, em suma, jungiu de imediato Sally ao mecanismo da própria mortalidade. Agora há uma perda que transcende o imaginável. Agora há um cordão que ela pode seguir a partir deste momento, ao dirigir-se para a estação do metro de Upper East Side, até ao dia de amanhã, e ao seguinte, e ao seguinte, todo o caminho até ao fim da sua vida e da vida de Clarissa.

Belíssimo! Algo que também sinto com a Adriana.

 

- Não sei se posso enfrentar isto – diz [Richard]. - A festa e a cerimónia, sabes, e depois a hora a seguir, e a outra depois dessa.

- Não tens de ir à festa. Não tens de ir à cerimónia. Não tens de fazer nada, absolutamente nada.

- Mas ainda há as horas, não é verdade? Uma e depois outra, e nós suportamo-las e depois, meu Deus, há mais outra. Estou tão doente!

- Ainda te restam dias bons. Tu sabes que sim.

Sim, mas horas – não. Como Richard bem sabe.

 

(…) Pronto, acabou a história. Agora vem para dentro.

- Pura, como se destinada a crianças numa praia - comenta Richard.

- Sim, podes dizê-lo.

- Como uma manhã quando fomos jovens juntos.

- Sim. Como isso.

- Como a manhã em que saíste daquela casa velha, quando tinhas 18 anos e eu tinha, bem, eu acabara de fazer 19, não acabara? Eu tinha 19 anos e estava apaixonado pelo Louis, e estava apaixonado por ti, e pensei que nunca tinha visto nada belo como tu a saíres por uma porta envidraçada de manhãzinha cedo, ainda ensonada e em roupa interior. Não é estranho?

É - responde Clarissa. - Sim, é estranho.

- Falhei.

- Pára de dizer isso. Não falhaste nada.

- Falhei. Não estou à procura de compaixão. Não, palavra. Sinto-me apenas muito triste, tão triste! (…)

(…)

- Tens sido muito boa para mim, sra. Dalloway.

- Richard...

- Amo-te. Isso parece-te banal?

- Não.

Richard sorri. Abana a cabeça.

- Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.

Chega-se um pouco para a frente, escorrega devagar do parapeito e cai.

- Não!... - grita Clarissa.

Ele parece tão seguro, tão sereno, que momentaneamente ela imagina que aquilo não aconteceu. (…)

Esta é, para mim, a cena mais bela e poética de todo este livro.

 

Sra. Brown

Podia, neste momento, não ser mais do que uma inteligência flutuante: nem sequer um cérebro dentro de um crânio, apenas uma presença que sente, que apreende, como um fantasma poderia apreender. Sim, pensa, esta é provavelmente a sensação que causa ser um fantasma. É um pouco como ler, não é? - A mesma sensação de conhecer pessoas, ambientes, situações, sem desempenhar nenhum papel especial além do de observador voluntário.

Uma descrição muito original do ato de leitura. Mas que ressoou profundamente em mim.

 

Sra. Dalloway

(…) Talvez, pensa, se possa começar a morrer assim: os cuidados de uma filha crescida, os confortos de uma sala. Aqui está, pois, a velhice. Aqui estão os pequenos consolos, o candeeiro e o livro. Aqui está o mundo, cada vez mais governado por pessoas que não são nós, que tanto podem sair-se bem como mal, que não nos olham quando passam por nós na rua. (…)

Sim, pensa Clarissa, já é tempo de o dia acabar. Damos festas, abandonamos as nossas famílias para vivermos sós no Canadá, batalhamos para escrever livros que não mudam o mundo apesar das nossas dádivas e dos nossos imensos esforços, das nossas absurdas esperanças. Vivemos as nossas vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns atiram-se de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginamos, embora todos, exceto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito mais negras e mais difíceis. Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais.

Michael Cunningham a mostrar-nos o avançar implacável da idade, as mudanças inevitáveis e não muito boas, porém podendo sempre estarem acompanhadas por um amor pela vida que não se transforma em ânsia, mas que é capaz de proporcionar paz.

 

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