sábado, 24 de julho de 2021

Fyodor Dostoevsky, Os Irmãos Karamazov, 2ª Parte

 

(156)

[Aliosha] (...) Incapaz de amar passivamente, a sua afeição pelos outros exprimia-se pelo auxílio. Mas, para isso, tinha de saber o que convinha a cada um e então valer-lhes.

Mais uma perceção lúcida e inspirada de Dostoievsky! Por isso, Paul Gilbert, o investigador, professor e psicólogo criador da Terapia Focada na Compaixão, diz-nos numa entrevista, Compassion is an antidote to cruelty, em 2018:

«Commitment to compassion has two aspects – one is about turning towards suffering, and the second is about finding out how to alleviate and prevent it where possible. That’s important because people often forget the wisdom part of compassion, the desire to discover how to be helpful. For example, if I see someone fall in a river and I think to myself, ‘Ah, I must jump in and save them’, that’s good intention, but if I can’t swim it’s not very helpful. If you wanted to help people as a health professional but you weren’t prepared to study, then there’s not much behind your intention. So having both intentionality and commitment to learn how are really important in compassion. Compassion isn’t just this nice feeling, it’s the preparedness to turn towards difficulty and the commitment to try to work it out by taking action.»


(178)

[Lise] (...) diga-me, Alexei Fiodorovich, não haverá em toda esta conversa... desprezo por esse infeliz. Dissecamos-lhe os sentimentos com certa petulância, se não me engano...

Muito sagaz. É uma questão muito pertinente. De repente, apercebi-me que, quando "disseco" os sentimentos dos outros, há por vezes uma sensação de satisfação e de superioridade que, realmente, torna penetrante esta observação de Lise. Também constituiu uma revelação a resposta de Aliocha:

- Não, Lise, não há tal coisa - respondeu firmemente Aliocha, como se já previsse a objeção. - Pensei nisso pelo caminho. Aprecie por si mesma: que desdém pode existir se somos iguais a ele, se todos o são? Não valemos mais. Ainda que fôssemos melhores, não deixaríamos de ser-lhe iguais na sua situação. Ignoro o que acontece consigo, Lise, mas quanto a mim sinto que, em muitas ocasiões, tenho coração mesquinho. O dele não, antes é bastante delicado. Disse-me uma vez o meu starets: «Devemos tratar os outros como crianças e alguns, até, como doentes.»

Também muito inteligente e chama-nos a atenção para algo que tendemos a esquecer. Mas isto não responde diretamente à questão posta por Lise. Eu posso saber isto tudo e continuar a sentir aqueles sentimentos. O problema aqui é que Aliocha responde num nível cognitivo a uma questão que foi colocada num nível emocional. Embora, um pouco antes do fim, admita que talvez a Lise tenha razão, pelo menos em certas ocasiões. A afirmação final do starets dá para os dois lados: tanto pode servir para termos uma atitude de compreensão e tolerância para com os outros, como para ter a tal atitude de desprezo.

Lise remata de forma deliciosa:

- Alexei Fiodorovich, é tão bondoso! Mas às vezes parece pedante. Contudo, vê-se que o não é. (...)


(188)

[Ivan Karamazov] (...) Sabes o que eu dizia há pouco comigo mesmo? Se perdesse a fé na vida, se duvidasse da mulher amada, da ordem universal, se me persuadisse de que tudo é um caos infernal e maldito, se me dominassem os horrores da desilusão, mesmo assim quereria viver. depois de experimentar a taça encantada , só a deixarei quando estiver vazia. (...) Deseja-se viver e vive-se, mesmo a despeito da lógica. Não acreditarei na ordem universal, mas gosto dos rebentos das plantas na Primavera, do céu azul, simpatizo com certas pessoas, sem saber porquê. (...) A inteligência e a lógica não tomam parte nisto, é o coração que ama, são as entranhas... (...)

Isto liga-me irresistivelmente a algumas passagens de Camus (O Mito de Sísifo, por exemplo?) ou de Vergílio Ferreira. Compreendo, porque o vivi, este encanto pela vida que fica depois de sermos despojados de muitas ideias e crenças; para sermos seduzidos pelas coisas simples que nos são dadas gratuitamente pelo mundo natural.


(193)

- Devo confessar-te uma coisa - principiou Ivan. - Nunca cheguei a compreender como se pode amar o próximo. Na minha opinião, é precisamente o próximo que não podemos amar; pelo menos, só poderemos amá-lo à distância. (...) É preciso que um homem se mantenha oculto para que possam amá-lo; desde que mostra a cara, o amor desaparece.

(...)

Suponhamos, por exemplo, que sofro profundamente; outra pessoa não conhecerá até que ponto sofro, porque é outra pessoa, e não eu. Para mais, é raro que um indivíduo consinta em reconhecer o sofrimento alheio, como se fosse uma indignidade! E porquê? Talvez porque cheiro mal, porque tenho cara de parvo ou porque pisei um calo desse senhor. Por outro lado, existem diversos sofrimentos: o que é humilhante, a fome, por exemplo, esse o meu benfeitor reconhecerá, mas, desde que o meu sofrimento seja mais elevado, se tiver origem numa ideia [ou numa doença mental], suponhamos, então ele não acreditará, porque, observando-me, não vê em mim o semblante que a sua imaginação empresta a um homem que sofre por uma ideia. Logo cessará os seus benefícios, e isso sem maldade. (...)

Que posso dizer? Isto é tão verdade. Porquê? Não sei o caso dos outros, mas, por mim, é por causa do medo que me inspiram as pessoas quando estão ao pé de mim. Penso que este medo estará também por detrás destas atitudes de falta de amor ao próximo. Medo de quem é diferente, ou de quem é feio e está sujo, ou de quem mostra a sua revolta, etc. O meu medo tem só de diferente o estender-se a toda a gente, sem distinção.

É também verdade que é muito mais difícil empatizar com o sofrimento mental do que com o físico. Só assim se explica que a sociedade tenha proibido a dor física nos locais de trabalho, nas escolas e nas famílias, embora se mostre indiferente à dor mental.


(194)

(...) Queria mostrar-te o meu ponto de vista, falar dos sofrimentos da humanidade em geral, mas é preferível limitar-me aos sofrimentos das crianças. A minha argumentação ficará reduzida à décima parte; contudo, será melhor assim. Perco com isso, bem entendido. Em primeiro lugar, pode-se amar as crianças de perto, até as sujas e feias (para mim, aliás, não há crianças feias). Em segundo lugar, se não falo dos adultos, é porque além de serem repelentes e não merecerem amor, comeram o fruto proibido, distinguiram o bem do mal e tornaram-se "semelhantes a deuses". Continuam a comê-lo. As crianças não o comeram e ainda são inocentes. (...)

Aqui se inicia, na longa fala de Ivan Karamazov ao seu irmão Aliocha, uma série de reflexões sobre o mal. Até à página 200, refere em particular aquele que provoca um terrível sofrimento nas crianças. Neste passo da obra, Dostoievsky faz lembrar irresistivelmente Padre Américo com o seu grito "Não há crianças más!"

(...) Compara-se por vezes a crueldade dos homens à das feras; é uma injúria que se faz aos animais. As feras nunca chegam aos requintes dos homens. O tigre dilacera a sua vítima e devora-a, nada mais.  Nunca lhe ocorreria (...)

Tão verdade! O que torna ainda mais desumano e incompreensível o sofrimento que infligimos desnecessariamente aos animais.

— Penso que se o Diabo não existe, se foi criado pelo homem, este o fez à sua imagem.

Normalmente, dizemos isto da criação dos deuses pelos homens. Dostoievsky surpreende-nos para agitar as nossas consciências.


(196)

(...) No nosso país, torturar com pancada constitui uma tradição histórica, um prazer fácil e imediato. (...)

Dostoievsky fala primeiro em espancar animais e, depois, em maltratar crianças com castigos violentos e desumanos, apresentando casos como exemplos. Eu reconheço no meu pai alguns dos traços dos pais aqui descritos. E ontem, tal como hoje, a opinião pública defende os maus-tratos feitos a crianças no ambiente familiar.


(197)

(...) Repito, há muita gente que gosta de torturar as crianças, apenas as crianças. Para com os outros indivíduos mostram-se afáveis, humanos, mas sentem prazer em provocar o sofrimento dos menores: é a sua maneira de os estimar. A confiança angélica destas criaturas indefesas seduz os entes cruéis. Não sabem para onde se voltar nem a quem se dirigir, e isto acirra os maus instintos. Toda a gente contém em si um demónio, que se manifesta por acessos de cólera, sadismo, libertação de paixões ignóbeis, doenças contraídas na luxúria, etc. Assim, estes pais instruídos exercem sevícias sobre a pobre pequena. Chicoteiam-na sem razão. O corpo dela está cheio de nódoas negras. (...) a derramar inocentes lágrimas e a invocar Deus em seu socorro? Percebes tamanho absurdo? Diz-se que todas estas coisas são indispensáveis para estabelecer a distinção entre o bem e o mal no espírito humano. Para quê tal distinção diabólica, paga por semelhante preço? A ciência do homem toda  inteira não vale as lágrimas das crianças. Não falo do sofrimento dos adultos, que comeram o fruto proibido. Leve-os o Diabo! Mas as crianças? (...)

Esta a interrogação para mim fundamental que decide completamente da minha (não) adesão a uma religião: existindo deus ou deuses, porquê o sofrimento das crianças? Nunca ouvi uma explicação que revelasse a compaixão desse(s) deus(es). Um deus não compassivo não me serve para nada. Prefiro a inexistência de deus porque, como nos homens é possível encontrar compaixão e também possivelmente não em deus, menos mal me acontecerá.

E não me venham falar do livre-arbítrio concedido por deus. Só consigo pensar num sádico que, tendo criado o homem e, portanto, sabendo do que ele é capaz, lhe dá a liberdade de fazer todo o mal aos inocentes. Eu, que não criei o gato nem o passarinho, não dou essa liberdade ao gato: fazê-lo seria pôr-me do lado do mais forte e mais feroz, pelo que me recuso a fazê-lo e intervenho sempre que vejo o passarinho em risco de ser destruído pelo gato. Mas eu não sou deus, felizmente... E, assim, ao contrário de deus, posso contribuir para que o mal não tenha razão e não se espalhe.


(200)

[Ivan] (...) recuso-me a aceitar essa harmonia superior. Acho que não vale uma lágrima de criança, uma lágrima daquela vitimazinha que invocava Deus no seu canto infecto; não vale, não, porque essas lágrimas não foram resgatadas. Os carrascos sofrerão no Inferno, poderás tu objetar. Mas de que serve esse castigo se as crianças tiveram também o seu Inferno? Aliás, que valor tem essa harmonia que comporta um Inferno? Quero o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. E, se o sofrimento das crianças é para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo que essa verdade não merece tal preço. Não quero que a mãe perdoe ao verdugo; não tem esse direito. Perdoe-lhe o seu sofrimento de mãe, mas não o que sofreu o filho dilacerado pelos cães. Ainda que o filho perdoasse, ela não teria esse direito. Se  não existe o direito de perdoar, onde está a harmonia? (...) Aliás, exageraram o preço dessa harmonia; custa-nos muito cara a entrada. Acho melhor devolver o bilhete... E é o que eu faço. Não me nego a admitir Deus, mas devolvo-lhe respeitosamente o meu bilhete.

(...)

(...) [Ivan] Responde-me com toda a franqueza. Imagina que tens nas tuas mãos o destino da humanidade e que, para tornares definitivamente as pessoas felizes, para lhes proporcionar, enfim, a paz e o repouso, é indispensável martirizar nem que seja um só ente, uma criança, e fundar sobre as suas lágrimas a felicidade futura. Consentirias, em tais condições, em edificar tal felicidade? Responde sem mentir. 

— Não, não consentiria.

— Nesse caso, podes admitir que os homens consintam em aceitar semelhante felicidade a troco do sangue de um pequenino mártir? 

— Não, não posso admitir (...).

Fantástica argumentação! A razão ética para recusar não só a existência de um deus, como a possibilidade de um prémio futuro de felicidade além-túmulo.


Em seguida, na página 201, Dostoievsky dá-nos o famoso (e perturbador!) poema "O Inquisidor-Mor".


(206)

(...) Compreenderão enfim que a liberdade é inconciliável com o pão da terra em abundância, pois nunca saberão reparti-lo entre si! (...)

Porque a liberdade para todos é a liberdade para o banqueiro, para o corrupto e para o ganancioso, ficando completamente posta em causa a distribuição do pão, já nem digo equitativa, mas simplesmente razoável.

Porém, sem liberdade, estamos a falar de uma submissão a um pretenso bem coletivo que, na realidade, se concretiza numa submissão dolorosa a um ou mais ditadores (mesmo que sejam justos na distribuição do pão, o que é altamente duvidoso, dadas as experiências passadas que a História nos mostra e o presente continua a revelar).

Aliás, por causa disso, percebo o argumento das ideologias de direita: se, em qualquer dos casos, há miséria, isto é, nunca há a distribuição razoável do pão, ao menos que se salve a liberdade.

Portanto, como conciliar liberdade e pão, mas para todos? Deve haver uma solução...


(207)

(...) Porque não há, para o homem, tornado livre, cuidado mais constante, mais ardente que procurar um ser perante quem se inclinar. (...)

Um? Normalmente, vários. Porque se trata de uma fraqueza que nasce da dependência que temos do grupo (e, portanto, de quem o chefia). Esta fraqueza acentua-se quando deixamos de poder confiar no grupo em si. Aumenta, então, desmesuradamente o fascínio por pessoas autoritárias que, simultaneamente, parecem distantes e, portanto, superiores daquilo que achamos que é o povo. Veja-se, em Portugal, o fascínio por figuras como Salazar, Cavaco Silva e José Sócrates.


(207)

(...) Esqueceste que o homem prefere a paz e mesmo a morte à liberdade de distinguir entre o bem e o mal? Não há nada para ele mais sedutor do que o livre arbítrio, mas igualmente nada de mais doloroso. E em lugar dos princípios sólidos que teriam tranquilizado para sempre a consciência humana, tu escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, (...)

É muito interessante, porque todos sentimos um prazer perverso em sermos juízes dos outros, principalmente se estiver em perspetiva uma condenação. Mas o que Dostoievsky aqui diz é diferente: liberdade para distinguir o bem do mal. E esta distinção só é clara nas histórias para crianças. Já é muito menos clara na literatura para adultos, onde a ficção, para ser aceitável pelo leitor, tem de fazer algum sentido. A vida, pelo contrário, raramente se nos apresenta clara à nossa interpretação. Aliás, quando isso acontece, devemos suspeitar que alguém nos está a tentar enganar (e que nós estamos a gostar de sermos enganados).

A liberdade absoluta deixa a culpa toda do nosso lado, quando as coisas correm mal. Por outro lado, se não formos livres, mesmo que só parcialmente, aí podemos aliviar o nosso mal-estar atirando as culpas para alguém que não nós.

Ora, o livre arbítrio é doloroso precisamente porque ele nunca existe completamente, por mais que acreditemos nele. Nós somos irremediavelmente condicionados pela genética e pela nossa propensão biológica para a sociabilidade: ambas limitam as nossas escolhas de vida, a maior parte das vezes inconscientemente (é isso que leva alguns a acreditarem no livre-arbítrio), mas algumas vezes conscientemente. Como nos diz Sophia de Mello Breyner Andresen: Pudesse eu não ter laços nem limites / Ó vida de mil faces transbordantes / Pra poder responder aos teus convites / Suspensos na surpresa dos instantes.

Dostoievsky alude também à questão de que problemas complicados, ao contrário do que todos desejamos, não podem ter formulações simples e, muito menos, soluções simples. Mas estas atraem irresistivelmente o ser humano. E quem as fornece estará, infelizmente, sempre em vantagem em relação aos mais honestos e sérios.


(210)

(...) A independência, o livre pensamento, a ciência tê-los-ão desviado num tal labirinto, posto em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes furiosos, destruir-se-ão a si mesmos, e os outros, rebeldes, porém fracos, multidão covarde e miserável, se arrastarão a nossos pés, gritando: 'Sim, tínheis razão, somente vós possuíeis seu segredo e nós voltamos a vós; salvai-nos de nós mesmos!' Sem dúvida, recebendo de nós os pães, verão bem que tomamos os deles, ganhos com seu próprio trabalho, para distribuí-los, sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão; mas o que lhes causará mais prazer que o próprio pão será recebê-lo de nossas mãos! (...)

Os que veem a complexidade, mergulharão nela, incapazes de ver a floresta e de fazer pontes com as pessoas que têm outros pontos de vista. Fazer pontes, não é abdicar dos seus princípios, pelo menos não daqueles que são essenciais à sua identidade. Os que não conseguem suportar a complexidade abraçarão quem quer que seja que lhes diga que tem a solução e os ilude dizendo que ela é simples.

Finalmente, este é o perigo da extrema-direita: acenar com a liberdade individual para submeter o coletivo com uma ditadura pior do que aquela que foram levados a crer que viviam, mas que os irá aliviar de todo o peso de serem livres (a extrema-esquerda acena com a justiça para todos, mas com a mesma finalidade em vista, mas não é dela que Dostoievsky aqui trata).


(233)

(...) Direi ainda que cada um de nós é culpado perante todos e por tudo, e eu mais do que os outros.» Nesse momento a mãe sorria entre lágrimas: «Como podes ser mais culpado do que os outros?», perguntava. «Há assassinos, ladrões; que pecados cometeste para te acusares desse modo?» «Querida mãe, saiba que, em boa verdade, cada um é culpado perante os demais e por tudo. Não sei como explicar-lhe, mas sinto que é assim mesmo, e isso atormenta-me. (...)

Estranha afirmação! Será um disparate? Não o sinto como tal, pelo contrário, mas também me vejo em dificuldades para explicar porque sinto isto assim.

Será porque, não fazendo nada para parar os crimes dos outros, acabo por ser um cúmplice longínquo.

Ou que, por não fazer nada para prevenir esses crimes, me torno num seu causador, mesmo que longínquo? O que fazer? Por exemplo, se não reclamo contra as iniquidades dos governos, não estarei a colaborar com eles. Porque sabemos que, onde há agressão, a neutralidade é pormo-nos do lado do mais forte, logo somos culpados.


(244)

- (...) Para renovar o mundo, é necessário que os próprios indivíduos mudem de atitude. Enquanto cada qual não for a valer o irmão do próximo, não existirá fraternidade. Jamais poderão, em nome da ciência ou do interesse, repartir em paz, entre si, a propriedade e os direitos. Ninguém se confessará satisfeito, todos murmurarão, invejando-se e exterminando-se mutuamente. Pergunta quando será o advento do Reino dos Céus? Há de vir, todavia apenas quando terminar o período de isolamento humano.

- Que isolamento? - inquiri.

- Reina por toda parte hoje em dia, mas não está acabado, o seu termo ainda não chegou. Presentemente, cada qual aspira a separar dos outros a sua personalidade, cada um pretende gozar a plenitude da vida. Entretanto, longe de atingir esse fim, todos os esforços dos homens se dirigem unicamente para um suicídio total; em vez de afirmarem toda a sua personalidade, caem em completa solidão. De facto, neste século, todos se sentem fracionados em unidades, todos se isolam no seu buraco, afastando-se uns dos outros, escondendo-se, a si e aos seus bens. Acumulam para eles sósfelicitam-se do seu poderio, da sua opulência; ignoram, insensatos, que quanto mais acumulam mais se enterram na sua impotência fatal. O homem está habituado a contar consigo apenas, afastando-se assim da coletividade. Acostumou-se a não crer no socorro mútuo, no próximo, na humanidade, e treme só à ideia de perder a riqueza e os direitos que ela confere. Por toda parte, atualmente, o espírito humano começa de modo ridículo a perder de vista que a verdadeira garantia do indivíduo consiste não no esforço pessoal isolado, mas na solidariedade. Este isolamento terrível acabará decerto um dia, todos compreenderão ao mesmo tempo quanto a sua separação recíproca era contrária à Natureza, (...)


(252)

(...) Porque o mundo diz: "Tu tens necessidades, satisfá-las, porque possuis os mesmos direitos que os grandes e os ricos. Não temas satisfazê- las, aumenta-as mesmo". Eis o que se ensina atualmente. Tal é a concepção deles de liberdade. E que resulta desse direito de aumentar as necessidades? Entre os ricos, a solidão e o suicídio espiritual; entre os pobres, a inveja e o crime, porque se conferiram direitos, mas ainda não se indicaram os meios de satisfazer as necessidades. Assegura-se que o mundo, abreviando as distâncias, transmitindo o pensamento pelos ares, unir-se-á sempre cada vez mais, que a fraternidade reinará. Ai! não acrediteis nessa união dos homens. Concebendo a liberdade como o aumento das necessidades e sua pronta satisfação, alteram-lhes a natureza, porque fazem nascer neles uma multidão de desejos insensatos, de hábitos e imaginações absurdos. Não vivem senão para invejar-se mutuamente, para a sensualidade e a ostentação. Dar jantares, viajar, possuir carruagens, cargos, lacaios, passa tudo como uma necessidade à qual sesacrifica até sua vida, sua honra e o amor à humanidade, matar-seão mesmo, na  impossibilidade de satisfazê-la. O mesmo ocorre entre aqueles que são ricos; quanto aos pobres, a insatisfação das necessidades e a inveja são no momento afogadas na embriaguez. Mas em breve, em lugar de vinho, embriagar-se-ão de sangue, é o fim para que os conduzem. Dizei-me se tal homem é livre. (...) Nada de admirar que os homens tenham encontrado sua servitude em lugar da liberdade, e que em lugar de servir à fraternidade e à união, tenham caído na desunião e na solidão, como mo dizia outrora meu visitante misterioso e mestre. De modo que a idéia do devotamento à humanidade, da fraternidade e da solidariedade desaparece gradualmente do mundo; na realidade, acolhem-na mesmo com derrisão, porque como desfazer-se de seus hábitos, aonde irá aquele prisioneiro das necessidades inumeráveis que ele próprio inventou? Na solidão, preocupa-se muito pouco com a coletividade. Afinal de contas, os bens materiais aumentaram e a alegria diminuiu. (...)

O capitalismo criou o consumismo. Este é uma atividade profundamente solitária. Daí que seja mais difícil de perceber que o consumismo é mantido vivo pela criação imparável de necessidades que a própria pessoa nem sabia que tinha. É a promessa da sua pronta satisfação que constitui o cerne da liberdade que o capitalismo nos oferece. Um presente envenenado, pois jamais alguém atinge a liberdade por via do consumismo. Muito menos os pobres. Além disso, não esqueçamos que nunca, nunca há almoços grátis, pelo que, para consumir, muitos têm de aceitar a canga de um trabalho embrutecedor e, muitas vezes, indigno: a palavra-chave é “têm”, o que significa ausência de liberdade.


(254)

(...) é isto que convém às crianças? Precisam de sol, dos jogos da sua idade, de bons exemplos e de um mínimo de simpatia. Religiosos, meus irmãos, é necessário pôr cobro aos sofrimentos das crianças. Pregai nesse sentido.


(256)

(...) Amai toda a criação no seu conjunto e nos seus elementos, cada folha, cada raio de luz, os animais, as plantas. E, amando cada coisa, compreendereis o mistério divino nas coisas e acabareis por amar o mundo inteiro. Amai os animais, porque Deus lhes deu o embrião do pensamento e uma alegria pacífica. Não os atormenteis tirando-lhes essa alegria, não vos oponhais ao plano de Deus. Homem, não te eleves acima dos animais; estão isentos de pecado, ao passo que tu, com toda a tua grandeza, manchas a terradeixas atrás de ti um rastro de podridão. É a sorte de quase todos nós, infelizmente! Amai em especial as crianças, pois também não têm pecado; existem para nos tocar o coração e purificá-lo, são para nós como uma indicação. Maldito o que ofende um desses pequeninos! (...)

Relativamente aos animais, como Dostoievsky se deu conta de que há um pensamento simples neles. e os argumentos dele sobre o plano de Deus e com a comparação em termos de pecado são excelentes! Não satisfeito, ele ainda acrescenta:


(256/257)

(...) Meu irmão pedia perdão às aves; parece tolice, mas está certo, porque tudo se parece com o oceano, onde tudo desagua e comunica; toca-se num lugar e o gesto repercute-se no outro extremo do mundo. Direis que é loucura pedir perdão às aves, mas as aves, e as crianças, e todos os animais que nos rodeiam sentir-se iam mais à vontade, se fosseis mais dignos do que sois atualmente. (...)


(257)

Meus amigos, pedi a Deus alegria. Sede alegres como as crianças, como as aves do céu. Não vos deixeis perturbar pelos pecados, no apostolado que iniciardes, não receeis que eles manchem a vossa obra e vos impeçam de a cumprirdes. Não digais: "O pecado, a impiedade, o mau exemplo são poderosos, ao passo que nós somos fracos e estamos isolados; o mal triunfará e expulsará o bem". Não desanimeis dessa maneira, meus filhos! Só existe um meio de salvação: tomar para si os pecados dos outros. Com efeito, meu amigo, desde que respondas sinceramente por todos e por tudo, logo verás que realmente é assim, que és culpado por todos e por tudo. Mas, lançando sobre os outros a tua preguiça e a tua fraqueza, tomar-te-ás por fim de um orgulho satânico e murmurarás contra Deus. (...)

Duas ideias. a primeira que é não nos deixarmos abater pelo mal no mundo, quando nos propusermos a mudá-lo, seja de que forma for. A segunda é como conseguir isto: assumindo a culpa por todos os culpados e por tudo o que existe de mal. Penso que Gandhi seguia este princípio. Quando ele fazia um jejum não era para exercer uma chantagem sobre os homens injustos, mas era para se castigar e purificar por ele se sentir responsável por essa injustiça ainda existir. De qualquer maneira, é uma ideia difícil de entender, esta de sermos culpados por tudo e por todos.


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