terça-feira, 24 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 15.

 

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Sem um projeto para todos

15. A melhor maneira de dominar e avançar sem entraves é semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante, mesmo disfarçada por detrás da defesa de alguns valores. Usa-se hoje, em muitos países, o mecanismo político de exasperar, exacerbar e polarizar. Com várias modalidades, nega-se a outros o direito de existir e pensar e, para isso, recorre-se à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los. Não se acolhe a sua parte da verdade, os seus valores, e assim a sociedade empobrece-se e acaba reduzida à prepotência do mais forte. Desta forma, a política deixou de ser um debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e [d]o bem comum, limitando-se a receitas efémeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro. Neste mesquinho jogo de desqualificações, o debate é manipulado para o manter no estado de controvérsia e contraposição [nota à tradução: eu optaria por “confronto”, outro dos sentidos do original “contrapposizione”].

Está aqui resumido todo um programa levado a cabo pelo poder nas democracias “adoecidas” ou “enfraquecidas”, como preferirem, do ocidente.

Trata-se de semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante para nos manter num estado permanente de sobrevivência precária e frágil.

É com as táticas aqui descritas pelo Papa que se alcançam estes objetivos. Acrescentaria apenas mais três táticas: silêncio a ser-nos agressivamente dirigido (mas com muita “gritaria” nos meios de comunicação social e nas redes sociais a ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los); insensibilidade às pessoas; e recusa de diálogo com elas. Deixando-as a falar sozinhas e em total desamparo.

Alguns de nós ainda se lembram de todos aqueles governantes portugueses de má memória que diziam "Estamos em democracia, toda a gente tem o direito de se manifestar. Que se manifestem à vontade. Mas nós temos também o direito de continuar a fazer o que fazemos." Ignorando sobranceiramente o que os manifestantes tinham a dizer, e esvaziando assim de qualquer substância o discurso e a participação destes na vida política. De forma a conseguirem que todo o poder de abusar não só se mantivesse intocado, mas mesmo reforçado.

Em suma, se nos sentirmos desanimados (individual, social e politicamente), é bem possível que estejamos a ser manipulados pelo poder para nos sentirmos assim.

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