sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 18.

 


O descarte mundial

18. Partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício de uma seleção que favorece um setor humano digno de viver sem limites. No fundo, «as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se “ainda não servem” (como os nascituros) ou “já não servem” (como os idosos). Tornamo-nos insensíveis a qualquer forma de desperdício, a começar pelo alimentar, que aparece entre os mais deploráveis». [Nota à tradução: em “deprecabili”, eu optaria por “condenáveis” (outro dos seus sentidos) em vez da palavra “deploráveis” aqui usada.]

Infelizmente, mesmo figuras públicas ligadas ao poder subscrevem este desprezo generalizado pelos mais vulneráveis. Todos nos recordamos de, na Assembleia da República, um deputado, nosso representante político, falar dos idosos chamando-os de «peste grisalha». Assim contribuindo para incentivar ódios entre segmentos da população, naturalmente sempre a fim de beneficiar os mais poderosos.

Será que pertencemos àqueles que, como o Papa diz, se acham abusivamente dignos “de viver sem limites”? Para responder a esta pergunta, acho que podemos medir o nosso nível de abastança pelos desperdícios que deixamos atrás de nós no nosso dia-a-dia, quer seja nos gastos que fazemos com água, eletricidade, gás, etc.; quer no lixo que produzimos diariamente. Talvez cheguemos à conclusão de que, como o Papa aqui refere, nós, os mais abastados, já nem damos conta do que consumimos em excesso nem do que desperdiçamos em termos de alimentos.

O Papa aflora, neste parágrafo da Encíclica, um ponto muito sensível: a questão da interrupção voluntária da gravidez. Neste caso em particular, não me parece que se trate de desvalorizar a vida humana. A despenalização da interrupção voluntária da gravidez visa, pelo contrário, evitar males maiores e mais trágicos. Podemos, por isso, admitir que esta é, infelizmente, uma medida extrema e desesperada que resulta do fracasso de uma sociedade (política, económica, empresarial) em apoiar e auxiliar positivamente toda e qualquer gravidez. Veja-se, como um exemplo parcial, o artigo de opinião de Susana Peralta (Professora Universitária de Economia na Nova SBE), “Trabalhadoras flexíveis e patrões inflexíveis”, no Público de hoje, dia 27 de Agosto.

Na verdade, quando falamos de desvalorização da vida humana, nunca podemos ficar apenas pelos nascituros e pelos idosos. Na minha opinião, devemos também acrescentar, pelo menos:

- todas as crianças vítimas de crueldades extremas perante a indiferença de muitos: considere-se, por exemplo, que “Uma em cada dez crianças da Área Metropolitana do Porto é vítima de violência grave” (Público online de 28 de Março de 2019);

- os milhões de crianças no mundo que passam fome extrema (veja-se aqui), enquanto nós andamos a desperdiçar alimentos;

- todos os soldados que são enviados para a guerra para matar e morrer (incluindo, ainda, os adversários e os civis mortos por eles);

- todos os supostos (há muitos enganos judiciais) criminosos condenados à morte (o Papa é contra a pena de morte);

- todos os civis inocentes que são feridos e mortos pelas forças de “segurança” (as quais, aliás, em alguns sítios do planeta, recebem ordens para os ferir e matar);

- todos os migrantes vítimas de naufrágios no Mediterrâneo, porque os poderes instituídos se recusam a salvá-los e impedem outros de fazê-lo (o Papa também é contra esta crueldade extrema).

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