terça-feira, 24 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 16.

 


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16. Nesta luta de interesses que nos coloca a todos contra todos, onde vencer se torna sinónimo de destruir, como se pode levantar a cabeça para reconhecer o vizinho ou ficar ao lado de quem está caído na estrada? Hoje, um projeto com grandes objetivos para o desenvolvimento de toda a Humanidade soa como um delírio. Aumentam as distâncias entre nós, e a dura e lenta marcha rumo a um mundo unido e mais justo sofre um novo e drástico revés.

Os grandes poderes têm promovido uma sociedade cada vez mais competitiva, seja entre civilizações, entre países ou entre pessoas. Competição, competição e mais competição. Daí o Papa percecionar que, hoje em dia, um projeto comum de justiça para todos soa «como um delírio». Tal como soa também para muitos de nós.

A competição transforma relações que devem ser de cooperação real em relações de luta pelo poder disfarçadas de cooperação (por exemplo, chamar de “colaboradores” os trabalhadores que estão completamente subalternos às chefias é uma forma revoltante de escárnio e de hipocrisia).

Claro que sempre existiram formas de luta entre as pessoas, mas mais sob a forma de relações de energia (criativa, de envolvimento, de ajuda, e de resultados também, claro). Porém, as pessoas eram mais ou menos livres de entrar ou não em qualquer tipo de lutas. Com a implantação de uma avaliação competitiva obrigatória, essa liberdade desapareceu. Nós somos mesmo obrigados a lutar uns contra os outros nos termos estritamente estabelecidos pelo poder.

Sabe-se que uma das piores coisas para a nossa saúde mental é compararmo-nos constantemente uns com os outros. Porque a comparação leva inevitavelmente à autoreprovação; aliás, suspeito que isto constitui uma das razões pela qual esta avaliação a promove até à exaustão.

Como a pessoa passa a ser o que a avaliação diz que ela é, a avaliação serve todas as instâncias de poder, desde as mais elevadas até aos escalões inferiores da hierarquia social e laboral. E serve principalmente porque, quaisquer que sejam as variações que os diferentes tipos de avaliação competitiva possam ter, há uma característica comum e transversal a todas elas: a criação de pessoas submissas e desmoralizadas. Que é no que talvez nos estejamos a tornar a pouco e pouco.

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