terça-feira, 24 de agosto de 2021

Papa Francisco, Fratelli Tutti, 14.

 


(14)

14. São as novas formas de colonização cultural. Não nos esqueçamos de que «os povos que alienam a sua tradição e – por mania imitativa, violência imposta, imperdoável negligência ou apatia – toleram que se lhes roube a alma, perdem, juntamente com a própria fisionomia espiritual, a sua consistência moral e, por fim, a independência ideológica, económica e política». Uma maneira eficaz de dissolver a consciência histórica, o pensamento crítico, o empenho pela justiça e os percursos de integração é esvaziar de sentido ou manipular as «grandes» palavras. Que significado têm hoje palavras como democracia, liberdade, justiça, unidade? Foram manipuladas e desfiguradas para utilizá-las como instrumento de domínio, como títulos vazios de conteúdo que podem servir para justificar qualquer ação.

Este roubo da alma de um povo de que o Papa Francisco fala é promovido em grande parte pelo estabelecimento de um crescente isolamento entre as pessoas. A «colonização cultural» é tremendamente facilitada com o desaparecimento do diálogo, principalmente do diálogo vertical entre gerações, mas também do horizontal que inclua as mais diversas tradições, embora todas pertencentes a uma humanidade comum.

Vergílio Ferreira, em 1959, no seu livro "Aparição" (páginas da 15ª edição de 1980, Livraria Bertrand), alerta-nos para uma forma de esvaziar de significado as palavras:

(pág. 67)

- Mastigar as palavras?

- Bem... É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois, pedra já não quer dizer nada.

Como, Carolino? Sabes então já a fragilidade das palavras, (...)?

(pág. 111)

Voltava a relatar-me a sua curiosa destruição da linguagem:

- A gente quando fala não pensa nas palavras, - dizia -, mas depois tornamos a dizer as mesmas palavras muitas vezes, muitas vezes, e já não são nada, é como que uma fala de doido.

- Sim.

- A gente diz por exemplo: “Esta cidade é bonita”. E depois repete: “Esta, esta, esta, esta” assim muitas vezes. E no fim já não é nada, é só som. Mesmo que se repita a frase toda. Primeiro a gente fica com uma ideia na cabeça. Depois já não há nada.

Eu olhava-o: sim. As palavras são pedras, Carolino; o que nelas vive é o espírito que por elas passa.

E é isto que é feito: usar e abusar das palavras «democracia, liberdade, justiça, unidade» para elas perderem o seu poder encantatório e motivador. E deste uso e abuso somos todos culpados, uns mais, outros menos: nós, jornalistas, políticos, “fazedores de opinião”, etc.

No entanto, apesar de tudo, não tenho uma visão tão negativa. Mas eu evito a televisão e sou muito seletivo nas minhas leituras. Quando os que têm voz na praça pública se apropriam destas palavras e as usam distorcida e repetidamente até ao seu desgaste e desfiguramento, eu não estou lá a ouvi-los. Mas nem toda a gente se protege desta usura como eu; e, se calhar muito menos os jovens.

Ganhei o fascínio por estas palavras através da leitura de muitos autores preocupados com uma sociedade melhor, na qual fosse permitido às pessoas verdadeiramente florescerem. A título de exemplo, refiro aqui dois, Vergílio Ferreira e Albert Camus, que desde sempre têm sido fontes inesgotáveis para mim, nos quais ainda hoje me inspiro abundantemente. Mas há muitos mais para além destes, felizmente.

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