terça-feira, 1 de março de 2022

Thomas Wolfe, O Rapaz Perdido seguido de Sem Porta

 

Dois Dias, 2019


Nunca tinha ouvido falar de Thomas Wolfe. Uma muito agradável surpresa, numa idade em que já não as espero. Adorei e identifiquei-me com muitas passagens, mas é-me muito difícil defini-lo pelo que sinto as minhas interpretações como estando entre muitas outras possíveis.

Eis algumas características deste livro:

Originalidade, por exemplo, na variedade de estilos a que recorre.

Grande riqueza e complexidade do que é narrado, em que o não dito tem tanta importância como o que é expresso.

Recurso a um tipo muito específico de corrente de consciência, onde as perceções pessoais estão mescladas com o que é contado e descrito.

É uma  escrita de evocação (de que gosto muito e de que Vergílio Ferreira foi um grande cultor).

Fez-me lembrar Ray Bradbury (que ali foi beber inspiração, sem dúvida) na energia, força, alegria de viver, exuberância, foco em crianças. Comparando o que o não é, considero Ray Bradbury mais imaginativo nas histórias, Thomas Wolfe melhor nas soluções estilísticas, e um bocadinho melhor na poesia.

Há uma busca sempre frustrada da palavra que traga uma redenção (tal como em Vergílio Ferreira), daí a exuberância, a linguagem poética e a variedade de estilos que permitam chegar lá, embora indiretamente

É uma escrita onde os cinco sentidos são usados com exuberância: visão, audição, cheiro (capaz de evocar grandes emoções, como na mercearia em Rapaz Perdido), sensações (de temperatura, por exemplo) e sabor (almoço em Sem Porta).

Sendo uma escrita muito rica e prolixa, surpreende a existência de poucos lugares-comuns – por exemplo, apresentando Outubro como um mês de começo, em vez de Janeiro ou da Primavera.

Há um pormenor que causa algum incómodo: aparecer uma certa misoginia (ao referir a falsidade das mulheres, ou nas descrições que faz delas) e um certo racismo.


Sobre O Rapaz Perdido

Parece tratar-se de uma busca e compreensão pelo irmão perdido e que mãe revela ser o seu preferido.

Veja-se a variedade de estilos de narrador em cada uma das quatro partes deste conto:

  1. 3ª pessoa sobre uma hora (à tarde) na vida de Grover: rua da terra natal e intervenção do pai
  2. Mãe de G. a contar memória da ida no comboio para a Feira Mundial de St Louis em 1904.
  3. Irmã mais velha relata ida a restaurante com G.
  4. 1ª pessoa, Autor visita a casa onde G. morreu, em St. Louis.


Sobre Sem Porta

Mais uma vez parece ser sobre a busca de uma porta pela qual pudesse entrar, depois da expulsão do Paraíso consubstanciada tanto na perda do pai (igual a rio tumultuoso que tudo destrói e arrasta, com a esperança de um retorno impossível em Outubro), como na preferência da mãe pelo irmão.

Identifico-me imenso com a suave embriaguez depois do almoço, um raro momento em que a solidão se atenua e ele se sente integrado com outras pessoas, embora por pouco tempo.

Também me identifico com a sensação de um Outubro onde se pode respirar de novo depois do horror do Verão.

Mais uma vez, observemos a variedade de estilos de narrador em cada uma das quatro partes deste conto:

  1. 10/1931 - O autor descreve a sua vida ao um ricaço entediado e vê que nunca pode pertencer aquele meio, porque o ricaço não percebe o sofrimento do autor – esta perte é cronologicamente a última.
  2. 10/1923 – O autor está na casa da mãe onde Grover morreu, no meio de uma tempestade, onde ele propõe que Outubro é o mês do recomeço, do retorno (em particular, daquela pessoa que ele mais desejaria, o seu pai).
  3. 10/1926 – Agora, o autor encontra-se em Inglaterra, Merton ("one of the oldest and most beautiful colleges in Oxford"), onde a solidão é mitigada no meio da companhia, mas acaba por se tornar ainda mais aguda.
  4. 4/1928 – O autor observa os motoristas de camião e vê que eles são o exemplo da solidão e da aceitação dessa condição. Entre o homem que se encontra diariamente a ver tudo por detrás de uma janela e aqueles que vivem a vida (na noite, tal como os motoristas), o autor inclina-se para estes últimos. Em 1931, na primeira parte do conto, vemos que mesmo esta opção falhou, pois o desejo e a insatisfação não abrandaram.

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