sábado, 8 de dezembro de 2018

Rui Nunes & Helena Pereira de Melo, "Testamento Vital", Almedina, 2011

(p.36)
«(...) Note-se que a não atribuição de dignidade aos animais (e, portanto, de verdadeiros direitos), não implica a aceitação de práticas claramente condenáveis, desde logo quando esteja em causa infligir sofrimento desnecessário e brutal (por exemplo no âmbito da experimentação animal). De facto, o conceito de dignidade humana é compatível com uma ética animal (e mesmo ambiental) de cariz antropocêntrico, aceitando-se que simbolicamente o tratamento brutal dos animais põe em causa a nossa própria humanidade por revelar maus sentimentos, como seja a preferência por comportamentos violentos e degradantes. (...)»

Esat ideia de que aquilo que fazemos é o que acaba por nos definir parece-me útil em determinadas condições. Eu não posso considerar-me um ser sensível e compassivo se exulto com o espetáculo de uma tourada; porque o ato de exultar à custa do sofrimento desnecessário de um outro ser vivo e também sensível (não falo só do touro: tendemos a esquecer o stress que é para o cavalo ser obrigado a provocar o touro e os seus chifres) não me define como ser sensível e compassivo. Por outro lado, noutros domínios mais inócuos da vida, eu sei que o que faço nem sempre me define: porque eu sei que não sou perfeito, que cometo erros, que sou levado a comportar-me como não quero e de forma às vezes contrária à que eu acho correta.

Para mim, que sou contra as touradas, parece-me que pôr a discussão sobre a sua proibição como um conflito entre cultura (tese defendida pelos defensores das touradas) e civilização (a dos que pretendem acabar com elas) não pode dar bom resultado. Porque usar o argumento da civilização deixa implícito um insulto aos defensores da cultura tauromáquica. Estes, naturalmente, entricheiram-se numa defesa violenta da sua honra. E o bom resultado aqui é convencê-los, não sentirmo-nos moralmente superiores.
Eu proporia o uso de "humanidade", termo que apela para os sentidos de ser próprio do ser humano e de possuir uma visão bondosa e compassiva para com todos os seres vivos.


(p.38)
«(...) De facto, na visão kantiana "Seres racionais estão pois todos submetidos a esta lei que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si... Mas um ser racional pertence ao reino dos fins como seu membro quando é nele em verdade legislador universal, estando porém também submetido a estas leis." Mais ainda refere Immanuel Kant (1995), "No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade." (...)»
(Kant I: Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Textos Filosóficos, Edições 70, Lisboa, 1995.

... Eu já vou começando a achar que um cão ou um gato estão acima de todo o preço... Obviamente que a um ser humano com deficiência mental e/ou física profundas não me passa pela cabeça atribuir-lhe um preço. Mas sei que a sociedade atual fá-lo ao nível da política económica e empresarial - o que terá de ser sempre considerado inaceitável, dado que será desta maneira que o risco de acabarmos  todos por ser tratados como coisas ou como meios aumentará exponencialmente.

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